CIBERCULTURA – Persistir e Adaptar 10 anos depois

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Persistir e adaptar considero serem as palavras-chave a ter em mente após a Semana Laudato Si’, dedicada à celebração do décimo aniversário desta disruptiva Carta Encíclica do Papa Francisco. Uma década depois, estamos melhores no comportamento ecológico pessoal, e nacional, como expressão do nosso relacionamento com a criação?

Imagem do GPT-4o com prompt de Miguel Panão

Dois investigadores da Universidade de Graz na Áustria propuseram um modo mais preciso de obter a temperatura média da superfície do ar num recente artigo publicado na prestigiada revista Nature, e, no final das contas, parece que iremos ultrapassar o limiar estabelecido nos acordos de Paris de limitar esse aumento apenas em 1.5°C acima do valor na Revolução industrial já em 2028. Existe uma década de intervalo entre os Acordos de Paris assinados no mesmo ano da Laudato Si’, e 2025. Aparentemente, grande parte da humanidade continua a dormir.

Em 2007, o filósofo canadiano Charles Taylor recebeu o prémio Templeton que celebra a síntese da curiosidade científica com a espiritual. Na altura, fiquei impressionado com uma ideia que poderá ter passado despercebida para muitas pessoas. Na ânsia da procurar respostas aos problemas sérios que vivemos, a tentação de esquecer as questões era o alerta que Taylor fazia no seu discurso ao receber o prémio. Já esquecemos o que levou o Papa Francisco a escrever a Laudato Si’?

A Laudato Si’ foi motivada pela profunda urgência ética e espiritual de despertar a humanidade para uma conversão ecológica integral, em que cuidar da Terra se torna inseparável do cuidado pelos mais vulneráveis e do reconhecimento da interligação profunda entre todas as criaturas e o Criador. Se não formos capazes de acolher e gravar no coração a realidade da família da criação, cada ano que passa, cada COP realizado, representa uma humanidade que prefere ficar onde está sem sair da sua zona de conforto, ou que está a contar que a engenharia resolva todos os problemas que ameaçam o nosso estilo de vida e achar que a solução passa por isolar-se do mundo criando uma redoma climatizada. As coisas não funcionam assim.

«Tudo está interligado» ou …relacionado» é repetido 11 vezes ao longo da Laudato Si’. Nada no mundo sobrevive isolado. Os relacionamentos são a forma da evolução persistir. Os relacionamentos não são estruturas fixas e cristalizadas, mas adaptáveis. Sem adaptar é impossível persistir e superar as dificuldades que estamos a viver no relacionamento com a criação que reage aos nossos estilos de vida. Ninguém persiste sozinho, mas cada um precisa de fazer a sua parte para que o todo persista. Ninguém se adapta sozinho, mas em interacção com o mundo e os outros que o rodeiam, adaptamo-nos juntos.

A leitura que fazemos daquilo que se está a passar no mundo entre aqueles que têm muito poder económico e os que têm muito pouco pode levar-nos a pensar em desistir e resignar. Não é difícil fazê-lo porque os meios de informação e entretenimento que temos fazem-me lembrar o título de uma excelente obra de Neil Postman (ainda não traduzida)—”Divertimo-nos até à morte”—ou seja, mantêm-nos entretidos e adormecidos em relação a tanta coisa insustentável que se passa pelo mundo. O desafio será sempre: como podemos fazer a nossa parte.

Nem todos têm as condições de persistir e adaptar ao clima para poder criar um corredor humanitário com a intenção de levar mantimentos e medicamentos até Gaza, como está a fazer a jovem Greta Thunberg e vários membros da organização Freedom Flotilla Coalition, tendo partido de Catania, na Sicília em Itália, de barco rumo às margens incertas daquele lugar de guerra. E sabemos que o planeta possui uma inércia grande que não se compadece com a velocidade com que estamos digitalmente habituados a ver as coisas acontecer e a mudar. Persistir e adaptar leva tempo até fazer o seu efeito. Está à responsabilidade de cada um fazer um exame de consciência para perceber o que pode mudar na sua vida. Por vezes falta-nos a inspiração, mas vale a pena relembrar o alerta de Charles Taylor de não esquecer as questões. Tenho uma: lembram-se daquele texto que um dia tivemos ou pediram-nos para decorar?

Quando crianças, lemos muitas vezes poemas, diálogos de um teatro, entre outras peças a decorar, até conseguirmos sentir que éramos nós os escritores daquele texto. Por isso, um gesto que pode ajudar neste caminho de aprender a persistir e adaptar talvez seja reler a Laudato Si’. Quem sabe se não descobriremos aquela frase que ontem nos disse menos, hoje, a dizer-nos muito mais. Talvez seja, precisamente, essa frase que nos pode orientar a dar um passo que não sabíamos que podíamos dar, nem que seja dez anos depois.


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