Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Em 23 de março, Luísa Semedo escreve um artigo; de opinião para o Público onde chama a atenção que — «A questão das palavras importa, porque as palavras são o reflexo de mentalidades, de estruturas. Em França, aos poucos também se vai abandonando o termo pedofilia para passar a falar de pedocriminalidade e de pedocriminosos.» — Há décadas que usamos a palavra errada e só agora é que nos damos conta disso? Que impacte pode ter a recuperação do sentido e significado etimológico da palavra pedofilia?
Quem abusa dos menores não é um pedófilo, mas um pedocriminoso. A etimologia de pedofilia vem de pedo- que significa crianças e -filia que significa amigo. Há alguém que não seja amigo das criança e, por isso, um pedófilo? Quem abusa sexualmente das crianças é tudo menos amigo delas. Comete um crime e, por isso, precisamos de iniciar uma onda que corrija a linguagem e procurar as fontes que induzem alguém como um sacerdote, religioso ou leigo a enveredar pelo drama da pedocriminalidade.
Um dos primeiros passos para corrigir a linguagem seria alterar a definição de pedofilia. Neste momento, o dicionário apresenta para “pedofilia” algo também estranho — «atracção sexual patológica de um adulto por crianças». Parece-me estranho porque não seria antes esta a definição de um predador pedossexual? Desde 2014 que o Papa Francisco apelou à mudança desta palavra quando instituiu a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores. Passada quase uma década desde a criação desta comissão, ainda se usa a palavra pedofilia para algo contrário ao seu significado. De onde vem a resistência a adoptar pela palavra pedocriminalidade?
A pedocriminalidade inclui também crimes de outra natureza que não seja, exclusivamente, de natureza sexual. Talvez por esse motivo a palavra esteja ainda a encontrar o seu espaço na linguagem do tempo presente. Curiosamente, uma das primeiras vezes que esta palavra é usada reporta a um artigo; científico publicado em 2010 por Gérard Niveau, investigador da Faculdade de Medicina em Geneva na Suíça, onde afirma
«Com o advento da internet, surgiu um novo modo de comunicação caracterizado por uma capacidade sem precedentes de trocar informações instantaneamente, um domínio imenso e a ausência geral de quaisquer regras, uma situação que alguns descreveram como anárquica. Esse meio de comunicação relativamente amplo deu origem à pedocriminalidade cibernética, uma nova forma de comportamento criminoso que compreende a exibição online, troca, venda e compra de arquivos contendo pedopornografia.»
Ou seja, parece existir uma ligação entre a emergência do mundo cibercultural e a criação de condições para alimentar o desejo desordenado que leva ao abuso sexual de um menor. Quando penso no caso dos sacerdotes, seria interessante avaliar se os que abusaram viviam sozinhos e que tipo de uso faziam da internet. Quando experimentamos alguma solidão, o recurso à internet permite a muitas pessoas ligarem-se ao mundo e às imagens que saciam o olhar. Porém, da solidão pode passar-se ao vício, justificando a necessidade de purificar o coração.
Na “Arte de Purificar o Coração”, o Cardeal Tomáš Špidlík (1919-2010) refere que prestar atenção a um coração puro é um processo psicológico com cinco fases que precisamos de ultrapassar:
- Sugestão — uma simples ideia orientada para o mal.
- Conversa — um colóquio com a ideia sugerida em vez de a esfumar da mente.
- Combate — uma reacção da alma (todo o nosso ser) que procura libertar-se do pensamento que não nos larga a mente.
- Consenso — quando ficamos cansados de combater, cedemos à ideia.
- Vício — depois do consenso, a ideia orientada para o mal cria raíz em nós e repetimos o que impede ter um coração puro.
Poderíamos questionar se este processo resulta pensando que Marko Rupnik, jesuíta excomungado por abuxos sexuais, trabalhou com Špidlík em diversas ocasiões. Porém, purificar o coração não é um exercício de prescrição, mas de persuasão da vontade. Nada resulta se não dermos passos na direcção da purificação do coração começando por reconhecer a sua necessidade constante. Por outro lado, a linguagem é uma característica humana essencial na formação de ideias, e começarmos por chamar as coisas pelos nomes, neste caso — pedocriminalidade —, seria também um passo importante.
Pedofilia não é pedocriminalidade. Quando na catequese dizemos a uma criança que Jesus é teu amigo, fazemos de Jesus um pedófilo no sentido puro do termo que o tempo e a cultura humana deformou ao longo de muito anos. É preciso purificar a linguagem, assim como é fundamental purificar o coração. Ambos estão profundamente ligados e oxalá que o mundo cibercultural de hoje pudesse tornar essa ligação viral, a começar por re-orientar os dicionários da palavra pedofilia para a pedocriminalidade. Qual a editora que terá coragem de dar o primeiro passo?
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