Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Numa noite fria de outono, enquanto jovens, aproximámo-nos das velas junto à capelinhas das aparições no Santuário de Fátima, como fizemos tantas vezes. Acendiamos a velas apagadas para manter a chama acesa e o calor que daquele lugar emana e aquece o corpo e o espírito. Naquele lugar onde tantas pessoas deixavam a sua intenção de oração, gerava-se uma onda de calor espiritual. Com o alvor de 2024 será possível que se gere, literalmente, uma onda de calor que pode durar uma era da nossa existência.
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Carlo Buontempo, director do Serviço Copérnico para as Alterações Climáticas da União Europeia afirmou numa recente conferência de imprensa que — «Simplesmente não havia cidades, livros, agricultura ou animais domesticados neste planeta da última vez que a temperatura estava tão alta.» — O ano de 2023 parece ter sido o mais quente dos últimos 100 000 anos. No oceanos, a acumulação de calor acelera e cresce exponencialmente como reportado num estudo de Outubro de 2023 na Nature Communications. E quanto mais energia acumulamos, mais será a que se liberta em fenómenos climáticos intensos como furacões. Um estudo de dezembro de 2023 na Scientific Reports atribui o início da aceleração nesta acumulação de energia aos anos 1960, mas não conseguiu ainda encontrar uma explicação. A incerteza paira no ar ao mesmo tempo que os efeitos. Como nos podemos preparar interiormente para o calor que se avizinha em 2024?
As ondas de calor extremas podem levar a um aumento do stress e da ansiedade, influenciando a forma como as pessoas trabalham, descansam e até rezam. As Igrejas são locais habitualmente frescos pelo tipo de construção, e lidar com o calor irá exigir da nossa parte uma maior resiliência interior para lidar com a incapacidade do corpo arrefecer como precisaria. Veremos um crescente número de pessoas a entrar nas Igrejas para refrescar e (quem sabe) rezar?
Os fenómenos naturais foram muitas vezes interpretados como sinais ligados à prática espiritual, mas diante de uma onda de calor, o pensamento voltar-se-á para o inferno. Será necessário estarmos cientes de que tudo o que viermos a viver e sofrer não tem qualquer “dedo de Deus”, senão na inteligência espiritual com que seremos chamados a lidar com cada situação. As alterações climáticas e o seu impacto na vida concreta das pessoas podem inspirar-nos a uma reflexão mais profunda sobre a relação entre nós e a natureza, crescendo a consciência ecológica e espiritual de como tudo está realmente ligado.
Se ar aquece e nos custa respirar; se o calor se faz sentir e torna-se inevitável o desconforto de transpirar; a um dado momento será natural que o corpo na ânsia de sobreviver faça tudo menos deixar que a experiência espiritual oriente o nosso agir. E o mesmo podemos sentir com as ondas de frio.
Uma meta-análise de Julho de 2023 confirmava a relação existente entre a temperatura do ambiente exterior e a saúde mental. E se não há corpo que não seja espírito, nem espírito que não seja corpo, a saúde mental faz parte do corpo-espírito que será afectado. A dimensão espiritual da natureza humana coloca o modo como enfrentamos a realidade num plano existencial que pode levar-nos a encontrar a paz necessária para nos adaptarmos ao que se avizinha. Por isso, qualquer superficialização da vivência da nossa dimensão espiritual pode levar ao sofrimento até do corpo. Não é só o corpo que precisa de ser preparado, mas também o espírito.
Durante o COP28 tivemos uma demonstração de como aqueles que têm recursos não estarão muito preocupados a preparar a sua dimensão espiritual para lidar melhor com a exigência corporal que o calor fará sentir. Basta-lhes ligar o ar condicionado. Não importa quanta energia terão de consumir para climatizar os espaços onde habitam, trabalham e convivem, nem importa o quanto tiverem de poluir para isso. Por outro lado, nos dias de frio que se aproximam com a frente fria proveniente da escandinávia, fará sentido reflectir sobre as ondas de calor nesta fase? Não vale por dois aquele que se previne?
A vida espiritual trabalha interiormente a capacidade de sairmos de nós mesmos para estarmos mais atentos aos outros e ao mundo que nos rodeia. O arco de acção dessa vida não se sujeita às necessidades ou experiências do momento, mas procura o fio de ouro que une todas as coisas. E não é tanto pelo prevenir como o melhor remédio que vale a pensar em ficar alerta para as dificuldades que iremos sentir na pele. A vida espiritual extrai-nos da vida superficial de quem vive ao sabor das circunstâncias.
A frente fria poderá dificultar a experiência de outros ao quererem, como eu quando jovem, manter viva a experiência de reacender as velas do santuário, mas o desinteresse por estes e outros assuntos que levaram o papa Francisco a escrever a Laudate Deum, apesar da clareza da Laudato Si’, poderá torna-se numa frente fria do coração e da vida espiritual, mais difícil de resolver porque não se vê, nem se sente. Um dos propósitos para 2024 poderia ser este: manter o coração quente na noite fria do desinteresse, e a cabeça fria na onda de calor do stress.
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