CIBERCULTURA – O salto humano que falta à máquina

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Há 2 anos, a 30 de Novembro, nasceu o ChatGPT para todo o mundo. Em um dia apenas, um número sem precedentes na história de 1 milhão de pessoas aderiu a esta ferramenta. Por isso, nos últimos dois anos, a Inteligência Artificial (IA) tem vindo a conquistar um lugar central na transformação da sociedade. Das aplicações mais simples, como assistentes virtuais, até aos avanços mais complexos na saúde e na justiça, esta tecnologia apresenta-se como uma ferramenta com um potencial extraordinário. Contudo, à medida que o seu impacto cresce, crescem também os desafios éticos que ela coloca, particularmente no que toca à dignidade humana e ao bem comum. Porém, parece que lhe falta ainda qualquer coisa.

Imagem do DALL-E com prompt de Miguel Panão

A IA não é neutra. Como qualquer ferramenta informática, a IA inclui as intenções de quem a criou e os valores de quem a utiliza. O seu impacte pode tanto beneficiar como destruir, dependendo do discernimento ético que lhe aplicarmos. E é precisamente este discernimento que se torna cada vez mais urgente. À medida que sistemas automatizados substituem o trabalho humano, algoritmos tomam decisões em contextos de grande sensibilidade, o consumo de energia para manter estas ferramentas a funcionar aumenta (e bem!), e a recolha massiva de dados ameaça a privacidade, todos somos desafiados a questionar: até que ponto a IA serve a humanidade? Ou até que ponto, inadvertidamente, se está a transformar na bússola das nossas escolhas? Como garantir a liberdade das nossas escolhas nesta Era da Inteligência Artificial?

A questão da liberdade é fundamental na experiência religiosa que fazemos na Igreja como povo que caminha pelo tempo e pelo espaço na direcção de uma união mais profunda com Deus. A Doutrina Social da Igreja teve sempre como um dos seus pontos centrais a dignidade humana, um critério central pelo qual toda a inovação tecnológica deve ser avaliada. A pessoa nunca poderá ser reduzida a um número ou a uma variável num sistema algorítmico. Como seres criados à imagem e semelhança de Deus, temos um valor intrínseco que nenhuma tecnologia pode medir ou substituir.

Além disso, o princípio do bem comum deve guiar o desenvolvimento e a aplicação da IA. Não podemos permitir que estas tecnologias aprofundem desigualdades ou promovam discriminação, como já vimos em casos de algoritmos tendenciosos que perpetuam preconceitos raciais ou sociais. A IA deve ser orientada para criar condições de maior justiça e equidade, em vez de reforçar os privilégios de poucos. Mas a reflexão ética não se esgota no âmbito social.

A IA tem também implicações profundas na vivência espiritual. As ferramentas digitais, como as aplicações de oração ou transmissões online de celebrações, podem ser uma bênção para quem está fisicamente impedido de participar na vida comunitária. Contudo, corremos o risco de transformar a espiritualidade numa experiência virtual e isolada, afastando-nos do encontro pessoal com Deus através dos outros sem as restrições naturais impostas pelo ecrã. A tecnologia deve ser um meio, nunca um fim.

Neste sentido, penso que a Igreja tem uma dupla responsabilidade. Por um lado, deve ajudar os fiéis a discernirem o uso saudável das tecnologias, promovendo uma espiritualidade que integre o ambiente digital com moderação sem perder a sua dimensão comunitária. Por outro, não nos podemos alhear de participar activamente no debate público sobre as implicações éticas da IA, defendendo os mais vulneráveis e promovendo as regulamentações que protegem a dignidade humana.

Muitos dos grandes movimentos tecnológicos passam ao lado da maior parte de nós. Encontramo-nos mais no meio daqueles que usam a inteligência artificial, sem se darem muito conta disso. Vivemos entre o fascínio de uma resposta a uma pergunta que jamais pensaríamos ser possível um computador responder. Enquanto escrevia este artigo, perguntei ao ChatGPT qual o sentido da vida. Esse respondeu — «O sentido da vida é criar significado através do amor, da busca pela verdade e da contribuição para algo maior do que nós mesmos.» — Lindo. Mas há algumas semanas, a minha filha mais nova também me ofereceu a sua resposta, dizendo — «O sentido da vida é viver.» — A carga de significado é maior na versão da minha pequena porque dentro de menos palavras estão inúmeras interpretações possíveis. Em poucas palavras, o ser humano consegue incluir uma elevada profundidade de sentido e significado. É isto que representa um salto humano que uma máquina ainda não deu. Ainda…

Estamos diante de um momento decisivo. A Inteligência Artificial continuará a evoluir e a moldar o nosso futuro, mas cabe-nos decidir como será utilizada. Somos já chamados a escolher entre uma tecnologia que desumaniza ou uma que humaniza. Como cristãos, temos a responsabilidade de testemunhar que o verdadeiro progresso não se mede pela complexidade dos nossos sistemas, mas pela capacidade de dar um salto interior em profundidade e um abraço exterior em humildade para construirmos uma sociedade mais justa, solidária e humana.


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