Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Gottfried Leibniz, matemático e filósofo, introduziu a ideia de vivermos no “melhor dos mundos possíveis”. A expressão foi ridicularizada por Voltaire na sua obra de ficção Cândido ou o Optimismo, onde todo o mal é aceite como se fosse, inevitavelmente, o melhor para nós. A crítica de Voltaire fez crer que Deus teria criado um mundo perfeito, mas a intuição de Leibniz aproxima-se mais da visão que a ciência nos oferece da realidade, trazendo implicações teológicas profundas: e se Deus criou, afinal, um mundo imperfeito?
Num artigo publicado na revista BioSystems, intitulado “A Perfeição é inimiga da evolução”, Adrian Bejan mostra como a busca pela perfeição — ligada a óptimos rígidos — tende a aprisionar a evolução. A certa altura, o autor evidencia que, ao assumirmos a possibilidade de o nosso sistema poder ser imperfeito e afastar-se ligeiramente do ponto óptimo, estamos a dar-lhe liberdade de se configurar de outras maneiras. Nesse sentido, o “óptimo” transforma-se apenas numa referência. Filosoficamente, portanto, a imperfeição torna-se a garantia de liberdade para evoluir. Assim, o “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz é imperfeito e, por conseguinte, permanece livre para mudar. Se acreditamos no mundo enquanto Criação de Deus, então por que razão terá Ele criado um mundo imperfeito? Como conciliar o convite de Jesus a sermos perfeitos como o Pai Celeste (Mt 5, 48) sem rompermos com este mundo imperfeito? De outro modo, entraríamos na lógica de “não sermos deste mundo” (Jo 17, 14), afastando-nos dele. Mas, se não somos deste mundo, o que fazemos aqui? E por que sofremos? Tudo parece confluir num problema de interpretação do que seja a verdadeira “perfeição”.
A perfeição a que Jesus alude não é de forma, mas de conteúdo; e no conteúdo, não é uma perfeição sapiencial, mas existencial. Isto não implica deixarmos de aspirar a encontrar o melhor modo de fazer as coisas ou a tornar-nos mais sábios. Contudo, ao ler o cardeal Walter Kasper, apercebi-me de que a perfeição de Deus é a perfeição no amor. A omnipotência divina não consiste em poder fazer tudo aquilo que imaginamos, como se fosse uma espécie de força sobre-humana que criaria um mundo isento de falhas (conforme a imagem proposta por Voltaire). A omnipotência e perfeição de Deus manifestam-se, antes, em amar por ser-Amor — e é nesse sentido que também somos chamados a ser perfeitos, procurando amar e sendo-amor.
Este chamamento à perfeição em Deus — ou seja, ao amor — só faz sentido se vivermos num mundo imperfeito, pois é nessa imperfeição que reside a possibilidade de liberdade para evoluir. O “melhor dos mundos possíveis”, assim, não é um lugar sem dor ou sofrimento, mas um espaço onde o ser humano pode, nas palavras de Aristóteles na Ética a Nicómaco, encontrar a virtude como o justo meio entre dois extremos. A imperfeição, nesse prisma, pode ser vista como uma virtude humana (tal como defende a socióloga Brené Brown), pois a coragem autêntica não está naquilo que muitos concebem como perfeição, mas na vulnerabilidade. Ao aceitarmos as nossas próprias imperfeições, descobrimos os laços que nos unem na diversidade, a autenticidade de sermos quem somos (e não aquilo que outros esperam que sejamos) e a força que nos impele a amar quando não temos, à partida, qualquer razão para isso.
O universo cibercultural atual coloca em risco esta experiência de liberdade pela imperfeição, pois permite o contacto constante com “vidas editadas” que, através das redes sociais, simulam um mundo de aparente perfeição — de forma, mas não de amor. Esse excesso de perfeição virtual molda a nossa consciência para aspirarmos a um estado no qual, na verdade, não existe evolução, justamente por tudo se apresentar como “perfeito”.
Sem evolução, não há liberdade. E sem liberdade, tanto interior quanto exterior, que se manifesta precisamente na possibilidade de sermos imperfeitos, limitamos o espaço à criatividade de Deus, que nos convida a colocar a esperança num futuro melhor do que qualquer passado, à semelhança da visão de Teilhard de Chardin. O melhor dos mundos possíveis não está livre de sofrimento, porque é justamente nos limites e na experiência do imperfeito que encontramos a genuína e criativa capacidade de amar e de ser amor. Voltaire, ao criticar Leibniz, induziu muitos a desvalorizar a intuição extraordinária deste último. Mas o próprio Voltaire, de forma imperfeita, abriu caminho para que hoje possamos reflectir mais profundamente sobre o significado de vivermos no “melhor dos mundos possíveis” — e, assim, continuarmos a evoluir.
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