Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
No Uzbequistão, Aral era um mar com uma encosta verdejante, peixes, pássaros e plantas. A vida flui, evoluia, mas os desvios dos rios que o alimentavam para regar os campos agrícolas tornaram aquela região num deserto desolador, povoado com os barcos de ferro carcomido pelo tempo. Inúmeras pessoas tiveram de se deslocar e este é um exemplo evidente do Antropoceno: a Era em que o ser humano começou, literalmente, a mudar a face da Terra.
Esta semana começa o COP28 e os olhos do mundo voltam-se para os Emirados Árabes Unidos que contaria com a presença do Papa, não fosse estar doente, cancelando à última hora a sua ida por recomendação médica. O Papa tem sido uma das vozes que tem procurado despertar a consciência e o coração dos políticos. Já o havia feito à 8 anos com a Laudato Si’, voltou a fazê-lo mais incisivamente com a Exortação Apostólica Laudate Deum, mas produzirá algum efeito? O que mais podemos dizer que já não tenhamos dito? Acabou o tempo para dizer seja o que for. É tempo de fazer — dizem todos —, mas fazer o quê? Optar por estar offline foi a proposta que me intrigou recentemente.
Nos grupos que se formam em paróquias e movimentos em torno do aprofundamento da Laudato Si’ e da partilha de experiências sobre como podemos tornar a nossa vida, e a das nossas famílias, mais sustentável, é recorrente ouvir alguém a dizer — «Já reciclo.», «Já separo.», «Reutilizo sacos.», «Reduzi o plástico.», «Reparo mais para consumir menos.» — mas não ouvi (até hoje) ninguém dizer aquilo que o crítico de arte Jonathan Crary propôs no seu recente livro “Terra queimada” (Antígona, 2023) — «Se é possível um futuro habitável e comum no nosso planeta, esse futuro será offline, dissociado dos sistemas e da actividade do capitalismo 24/7, que destroem o mundo.» — Offline? Qual a relação entre o estilo de vida mais sustentável e um futuro offline?
Existem quatro aspectos de efeito directo de um futuro offline sobre os nossos estilos de vida.
1º Aspecto: um menor consumo de eletricidade. Face ao estilo onde a conexão à internet é constante e o uso de dispositivos eletrónicos os torna em grandes sorvedores de energia, um estilo de vida offline pode reduzir a necessidade de eletricidade, diminuindo a dependência de fontes de energia não renovável e contribuindo para uma pegada de carbono menor.
2ºAspecto: uma menor produção de lixo eletrónico. Quando os dispositivos que se tornam obsoletos, substituímos, aumentando a quantidade significativa de lixo eletrónico em fim de vida. Um futuro offline diminuiría a quantidade de conteúdo que nos obriga a comprar o último modelo porque as Apps já não funcionam no anterior. Por outro lado, também os conteúdos na sociedade da informação se torna, rapidamente, obsoletos. Porém, continuam a ser armazenados em servidores e a gastar energia, literalmente, para nada, levando-nos ao próximo aspecto.
3ºAspecto: uma menor pegada de carbono de dados. Os dados armazenados e transmitidos online exercem, também, um impacte ambiental significativo. A redução do uso da internet pode contribuir para uma menor pegada carbónica associada aos centros de processamento de dados.
Por fim, um futuro offline dos nossos estilos de vida orienta-nos para o último aspecto.
4ºAspecto: uma maior conexão com a natureza. Os benefícios de passar mais tempo ao ar livre são enormes e comprovados por diversos estudos. E reconectarmo-nos com a natureza pode amadurecer a consciência ambiental daquilo que fazemos e do modo como fazemos, estimulando práticas relacionais de cuidado pelos outros e pelo ambiente ao nosso redor que nos leve a dar testemunho de um modo de fazer diferente.
Estar online parece dar acesso a todos os que tiverem à sua disposição uma conexão, a informação que todos têm o direito de saber, sob o “rebuçado” de que dentro dos nossos grupos e redes sociais, estamos ligados uns aos outros e construímos autênticas comunidades virtuais que partilham interesses comuns, por exemplo, interesses que despertam nos outros a vontade de mudar os seus estilos de vida para se tornem mais sustentáveis. Mas a que preço? O historiador dos media Harold Innis, em 1950, no seu livro Empire and Communication, já se havia dado conta de que os sistemas de comunicação, em vez de nos agregarem, estão a desagregar-nos e a atrair-nos para esferas cada vez maiores de pessoas em torno de plataformas online geridas por alguns magnatas, tendendo a manter-nos num certo monopólio do conhecimento, o que afecta o modo como pensamos sem nos darmos conta disso, assim como a nossa cultura.
Reconheço o valor de iniciativas como a Plataforma de Acção Laudato Si’, mas a realidade é que a maior parte das pessoas que adere à plataforma, na prática, cruza mais uma tarefa da lista. Tudo o resto que daí advém, como construir um plano, partilhar reflexões, iniciativas, eventos, sendo a imaginação o limite, acaba por ser parco. Penso que a razão esteja no facto de ser, apesar do seu valor, algo que nos mantém online e como a oferta de actividade digital já excedeu os limites da razoabilidade, mais uma, arrisca-se a resultar em coisa nenhuma. Também aqui me parece que o valor da proposta de Crary — o futuro será offline — está em nos impulsionar mais à experiência de “pôr as mãos na massa” onlife que exige estarmos mais offline, antes de partilhar seja o que for online. Saber que a nossa assinatura digital começa a espalhar-se por inúmeros servidores que consomem cada vez mais energia para a manter, deveria levar-nos a fazer um exame de consciência de quantos desertos não estaremos a criar com a nossa indiferença.
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