CIBERCULTURA – O fim das certezas seria início de quê?

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

No passado dia 19 de junho, celebrou-se os 400 anos do nascimento de Blaise Pascal e o Papa Francisco escreveu uma Carta Apostólica dedicada a este cientista, filósofo e pessoa de fé. No dia 23 de novembro de 1654, Pascal fez uma experiência forte da presença de Deus que a escreveu em poucas palavras num “Memorial”. Esse pedaço de papel haveria de ficar guardado no forro do seu casaco para ser descoberto apenas após a sua morte. Pascal escreveu — «Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob, não dos filósofos e dos eruditos. Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz. Deus de Jesus Cristo» — Intrigou-me aquele “certeza, certeza” porque, depois de ter lido pela escritora Anne Lammot, que a certeza é a inimiga da verdade, não a dúvida, a “inteligência intuitiva” que o papa reconhece em Pascal, e que todos nós temos, levou-me a questionar se Pascal teria vivido, de facto, uma “certeza”. Não teria antes vivido uma clareza?

IV Aniversário do Nascimento de Blaise Pascal

A ideia da certeza ser inimiga da verdade, sobretudo em tudo o que diz respeito a Deus, é porque o ser humano não possui a capacidade de conhecer Deus, sem que Ele revele o que quiser revelar sobre si mesmo e sobre as realidades sobrenaturais. A certeza pode fechar-nos a algo-mais que Deus queira revelar. Por isso, a fé suscita dúvidas porque ao mesmo tempo dá-nos a confiança de que o Espírito Santo clarifica. Mesmo no estudo das realidades naturais, como no caso da investigação científica que faço, ninguém procura ter a certeza, mas explicar com clareza. A compreensão da realidade é um processo colectivo e se explicar com clareza, o outro compreende, mas se não for claro no que explico, pode ser um sinal de que eu não compreendo ainda bem o que queria explicar e isso mantém-nos humildes relativamente ao que pensamos saber.

Um dos grandes desafios da nossa cibercultura é a polarização gerada pelas falsas certezas. Uns estão “certos” de uma coisa, outros estão “certos” do contrário, e as pessoas com uma inteligência intuitiva menos treinada deixam-se influenciar por isso. No casos mais graves, a influência ocorre em detrimento da sua própria vida, por exemplo, como aconteceu durante a pandemia em relação às vacinas. Por outro lado, a pós-verdade ou verdadez, como verdade a sentimento, aliena-se da razão e perde-se a oportunidade da clareza que me parece atingir-se quando o sentimento/coração se alia à razão.

O “fim das certezas” é uma expressão frequentemente usada para descrever situações ou períodos de grande incerteza ou volatilidade. Pode-se referir a situações pessoais, políticas, económicas ou sociais, entre outras. No contexto científico e filosófico, “O Fim das Certezas” é o título de um livro escrito pelo físico e filósofo da ciência Ilya Prigogine. Prigogine, vencedor do prémio Nobel da Química, é conhecido pelo seu trabalho sobre sistemas termodinâmicos longe do equilíbrio. Ele explora a ideia do “fim das certezas” para ajudar as pessoas a ultrapassar a física newtoniana (ainda presente na cabeça de muitas), que proporciona uma visão determinista do universo, e substituí-la por uma visão mais probabilística e incerta do mundo, em particular com o advento da mecânica quântica e da teoria do caos. A incerteza é o gérmen da clareza porque nos permite explorar o espaço de possibilidades de encontrarmos sempre uma explicação melhor e mais profunda para as realidades naturais e sobrenaturais que fazem parte da nossa vida.

Com os vários e diversos meios que temos de trocar informação entre nós, esperava que a capacidade de compreender o mundo com maior clareza fosse maior do que realmente é. O “fim das certezas” expressa a sensação contemporânea de que as ideias e instituições que eram anteriormente tomadas como certas, estão a ser questionadas ou estão a desmoronar-se, seja na política, na economia, na religião ou na sociedade em geral. Basta olhar para as dificuldades que a Igreja Portuguesa sente e que lemos nos vários textos relacionados com o Sínodo. Parece que o “fim das certezas” que tínhamos é o início do drama religioso que vivemos no quotidiano, mas talvez seja algo bem melhor e diferente.

O fim das certezas é o início das clarezas. O mundo cibercultural em que vivemos exige uma grande abertura de mente e coração. A tensão que sentimos provém da velocidade que esperam na nossa resposta, quando o ser humano precisa sempre se um espaço-tempo adequado para descobrir a claridade que provém da Voz do Espírito Santo. A evocação de Pascal “certeza, certeza” faz-me pensar as vezes em que vivi experiências próximas da que ele fez. Recordo essas experiências como as de uma especial impressão da presença de Deus. Uma presença tão forte que dentro de mim o sentimento era de uma profunda e alegre “clareza, clareza”.


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