Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
A sinodalidade é um fruto do Espírito Santo. Não provém tanto das nossas cabeças, ainda que as usemos para o efeito. É o Espírito Santo que faz novas todas as coisas e renova a face da Terra. Mais ainda se justifica que possa renovar, também, a nossa liturgia, uma vez que através dessa podemo-nos aproximar de Deus. Reconheço que o modo como a liturgia se estrutura na grande Festa da Páscoa, talvez precise de uma renovação. A reacção de muitas crianças, jovens e até dos adultos às celebrações de Vigília que perduram até às tantas da manhã demonstram essa necessidade. A necessidade de aprender a compreender melhor como lidamos com o tempo.
O “drama” das longas celebrações deve-se muito à experiência de tempo no século XXI. Só aguentamos numa sala sentados durante 3h e sem falar, se diante de nós houver uma tela que garanta o nosso entretenimento e atenção ao projectar uma história que estimule a produção de adrenalina durante esse período. Sete leituras intercaladas de sete salmos pretendem mais do que recordar. Penso que o seu propósito seja o de “reviver” a nossa história até à Ressurreição de Jesus, mas o que pude auscultar foi o crescente sabor de uma passividade que deixa de transformar quem faz o esforço de escutar, emergindo o pensamento — «quando é que isto acaba mesmo?» — Naturalmente, esta pergunta remete para a experiência de tempo que fazemos durante qualquer celebração litúrgica. É preciso alterar as celebrações?
Quando fui a uma conferência na Alemanha, cheguei no fim-de-semana e no Domingo gostaria de ir à missa. Procurei no mapa e haviam diversas Igrejas. Quando vi a de S.Miguel, por ter o mesmo nome, a escolha estava feita. Depois de saber o horário, no Domingo, fui um pouco antes da hora para rezar. Quando a celebração começou achei inúmeras coisas estranhas. Procurei um dos livros que se encontravam nos bancos e percebi que aquela não era uma Igreja com o ritual católico. Oops. Saí e fui ter à próxima Igreja no mapa. Ao aproximar-me ouvia cânticos alegres e pensei — «É esta!» — até que vi o letreiro a dizer algo semelhante a “…Luterana…”. Oops, também não é esta. Tentei uma terceira hipótese e nessa vi uma freira entrar. As dúvidas dissiparam, mas a experiência foi inesperada. Não entendi um só palavra de alemão, mas pelo facto do Ritual ser o mesmo em todo o mundo percebi sempre em que momento estava da Eucaristia e senti-me próximo de Deus. Havia feito uma experiência litúrgica no tempo.
Os rituais são importantes por serem expressão de uma experiência religiosa comum. Mas a digitalização do consumo de informação trouxe ao olhar mais do que as palavras que antes líamos num livro, revista ou jornal. A sociedade cibercultural vive muito de imagens e filmes onde o exercício de escuta envolve sempre o olhar. E mesmo o olhar que contempla cede aos tempos bem definidos para cada coisa. Os vídeos precisam de ter entre 2 e 5 minutos se quisermos que as pessoas mantenham a sua atenção.
Havendo no pulso um relógio, ou no no bolso um telemóvel, a vida fragmenta-se em intervalos de tempo que dedicamos a viver cada coisa. Por outro lado, como os relógios materializam a experiência de tempo na forma de dígitos, existe um aspecto físico no contacto com os ritmos cronológicos que poderão estar a determinar o tipo de experiência que temos no tempo. E se fossemos à missa sem relógio ou telemóvel? Isto é, e se não houvesse qualquer contacto com algo que marcasse o tempo? Será que a liturgia teria um sabor diferente?
É difícil aceitar esta proposta porque se tornou imperativo estarmos cientes das horas, minutos e segundos, assim como alguém pode querer contactar-nos com urgência. Inúmeras são as razões que encontramos para levar connosco algo que marque o tempo durante as celebrações, mas custa assim tanto abdicar de algo que contenha as horas? Talvez, mas vale a pena pensar no modo de fazer esta experiência sem relógio.
Sem a proximidade de algo que nos marque as horas, meias-horas ou quartos-de-hora, voltamos ao nosso estado de criança, onde não havia qualquer preocupação com o tempo ou como nos primórdios da humanidade quando o tempo era uma noção que não existia. Colocar de lado o relógio só se tornou uma das coisas mais desafiantes no século XXI porque deixámos que a Grande Aceleração onde nos imergimos desde 1950 dominasse cada instante da nossa vida. Se tomarmos consciência disso, basta dedicar alguns momentos do nosso dia, mais à experiência de tempo do que à sua gestão. Não se podem realizar mudanças culturais profundas de um dia para o outro, mas nada nos impede de sermos criativos nos primeiros passos a dar na vivência de momentos sem relógio.
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