CIBERCULTURA – Espiritualidade Incarnada

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

A nossa vida não é feita para os cálculos e conteúdos, mas para as experiências pessoais. Esta semana fui convidado a colaborar na apresentação do plano pastoral da Diocese de Coimbra cuja expressão-chave, e feliz, é— espiritualidade incarnada. Sem nos darmos muito conta disso, vivemos num sexto continente habitado por todos neste planeta. Aquilo que considero ser o continente digital. Nesse continente, o parecer visualizado nos conteúdos digitais sobrepõe-se ao ser que se desenvolve e amadurece com as experiências pessoais. Por isso, parece-me urgente a tomada de consciência da necessidade de um retorno às experiências pessoais com um propósito muito simples: responder à questão de cada tempo—como experimentar Deus hoje?

Não creio que esta seja uma pergunta à qual pretendemos encontrar uma resposta definitiva, mas talvez seja uma pergunta que nos mantém no caminho da procura que mantém o nosso coração aberto ao que Deus quiser. O mundo está sempre a mudar e tanto os gestos concretos, como a linguagem que nos impulsiona a um amadurecimento espiritual, precisam de estar em permanente evolução. Só lendo os sinais dos tempos podemos melhor acompanhá-los para que a Humanidade não perca o rumo no caminho da profundidade. Algo que está risco pelo crescente habitar no Continente Digital. Pois, existe uma onda de superficialidade dos conteúdos partilhados à qual não podemos estar alheios. Evitar a superficialidade pode passar por uma compreensão mais profunda de uma espiritualidade incarnada, como resposta à materialidade desincarnada, e pelo reconhecimento dos desafios contemporâneos que nos ajudam a manter viva a pergunta—como experimentar Deus hoje?

Talvez possamos começar o caminho da procura pela resposta pensando naquele que pergunta: no indivíduo. A palavra indivíduo tem a sua raiz em indivisível. É justamente nesse sentido que a espiritualidade incarnada nos chama a uma consciência maior de existirmos a três dimensões — corpo, mente e espírito. Cada ser humano é um terreno sagrado, sedento daquilo que lhe confere sentido, tanto pelo que é como pelo que faz. Cada indivíduo é único, e a consciência dessa unicidade, reconhecida em si e nos outros, faz dele pessoa. E quando a pessoa se encontra com outros, igualmente únicos, nasce a unidade na diversidade, própria da comunidade que vive a espiritualidade incarnada.

O mundo evolui, reinventa-se a cada instante. Se a mensagem cristã não acompanhar essa evolução na sua linguagem, corre o risco de se tornar inaudível, de morrer para os corações de hoje. Aqui abre-se um contraste: entre a indoutrinação, muitas vezes simbolizada por uma seta de cima para baixo, e a comunhão, que se assemelha ao equilíbrio das reações químicas, com setas horizontais que apontam em ambas as direções. Só nesse movimento de reciprocidade é possível encontrar o verdadeiro equilíbrio.

A espiritualidade incarnada não é leve, nem superficial. É exigente — porque, se não o fosse, perderia a sua autenticidade. Não se trata de saber o que Deus quer, mas de cultivar uma atenção vigilante e de criar espaço interior para que a vontade de Deus se possa manifestar. Este espaço é contraponto à materialidade desincarnada que pretende capturar e dominar a nossa atenção. É também um filtro contra o ruído excessivo de informações que, incessantemente, procuram ocupar a nossa mente.

Viver a espiritualidade incarnada é cuidar do coração, que se torna o centro comunicacional dos relacionamentos. Comunicar vai muito além de transmitir dados: é abrir um espaço relacional que nos aproxima, em conjunto, da verdade. Muitos acreditam que os problemas mais sérios do mundo são de ordem material. Mas, na realidade, os verdadeiros problemas são relacionais: dizem respeito à relação com os outros, com a família da criação e connosco próprios.

Onde começa, então, a experiência de Deus hoje? Começa no reconhecimento de que vivemos num mundo plural e em constante mudança. Não é propriamente uma novidade, mas talvez seja um apelo mais urgente. Podemos olhar para o mundo como um lugar teológico: um espaço em que Deus pode ser experimentado. Tal perspetiva é já uma resposta ao desafios climático — não só ambiental, mas também social e até o do clima interior a cada pessoa. Experimentar Deus hoje é, sobretudo, cuidar da vida interior, deixando que a Palavra, traduzida e incarnada, se torne vida em nós. É como escrever com a nossa existência um versículo da Escritura e desejar que outros possam também escrever, com base no nosso testemunho, um fragmento vivo dessa mesma Palavra. É assim que se responde ao desafio da superficialidade.

A experiência de Deus acontece em três níveis, do mais interior ao mais exterior. Primeiro, no íntimo, onde Deus habita em nós. Depois, na oração, que é passagem do interior ao exterior. E, por fim, na liturgia, manifestação comunitária dessa espiritualidade incarnada. A liturgia, assim compreendida, não se reduz a uma disputa entre experimentalista-progressista e conservador-tradicionalista. Existe uma terceira via: a do liturgista livre para deixar-se transformar. A liturgia pode tornar-se um espaço privilegiado onde o coração humano se abre à vontade de Deus. E esse abrir acae por nos ajudar a recuperar a atenção, respondendo ao desafio da polarização que hoje nos divide tanto.

Experimentar Deus hoje é, ainda, reconhecer que a transformação do mundo começa pela bússola que escolhemos para orientar os nossos passos. Uma bússola que nos dê a coragem de arriscar gestos concretos e de renovar o sentido da Eucaristia como encontro vital com Deus. Essa bússola parece-se ser a comunhão: uma mútua íntima imanência que busca incessantemente a unidade com tudo e com todos.


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