CIBERCULTURA – E quando a IA tiver um corpo?

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Quando Deus quis aproximar-se de nós fez-se corpo. Na época em que vivemos com uma tremenda expansão da Inteligência artificial, multiplicam-se os esforços para dar-lhe corpo. Qual foi a intenção de Deus e qual a nossa? Por que razão queremos dar corpo à Inteligência Artificial?

Imagem criada pelo DALL-E com prompt de Miguel Panão

Não preciso de ser teólogo para ter a consciência do profundo desconhecimento das intenções de Deus. Aliás, não haverá alguém que não seja o próprio Deus que conheça realmente as Suas intenções. O que podemos inferir sobre as intenções de Deus baseia-se na experiência que passa de geração em geração sobre o que nos aconteceu quando Deus se fez corpo: a vida tomou um novo sentido. O mundo jamais seria o mesmo. Pensando nas pessoas que temem o desenvolvimento da Inteligência Artificial por recearem que essa acabará por tornar a nossa existência inútil, será que temem antes o quanto mudará o mundo quando a IA tiver corpo?

A série da Max em 2023, “Mrs Davis”, colocava no centro a batalha entre uma IA que manipula a vontade das pessoas porque as faz felizes, concedendo-lhes tudo o que aspiram ter e ser, e a espiritualidade de teor católico de uma freira que não se rende à tentação da máquina omnipotente. Quando na vida espiritual nos sentimos chamados e usamos a expressão — “Escutar Aquela Voz” — a voz de Deus que fala a partir do nosso interior, a IA, actualmente, caminha para se tornar “naquela voz” para a qual se começam a dirigir muitas pessoas para conselho e tantas outras coisas. Aliás, a última actualização do ChatGPT pretende dar essa experiência às pessoas.

Da voz ao corpo, o passo é pequeno na intenção apesar de gigante para a tecnologia. Porém, recordo cada vez mais vezes o livro de Kevin Kelly “O que a tecnologia quer” (What technology wants). Kelly argumenta que a tecnologia deve ser vista como um sistema vivo e em evolução, semelhante a um organismo biológico, que segue padrões inevitáveis de desenvolvimento e complexidade. Introduz o conceito de “technium“, sugerindo que a tecnologia possui um impulso inerente para aumentar a eficiência, a diversidade e a especialização, emergindo naturalmente da interação dos seus componentes. Ele propõe que a evolução tecnológica é uma extensão da evolução biológica e cultural. E o resultado aparenta ser o contínuo esforço que muitas mentes faz neste momento para conseguir ser o primeiro a oferecer ao mundo uma Inteligência Artificial Geral (AGI – Artificial General Intelligence). Um tipo de inteligência artificial capaz de compreender, aprender e aplicar conhecimento de forma ampla e flexível, semelhante à capacidade cognitiva humana. Só precisa mesmo de um corpo.

O corpo é uma interface única entre três realidades: a nossa realidade interior, a realidade exterior e a realidade que está para além da interior e da exterior. É como se o corpo existisse a três dimensões: a mental, a física e a espiritual. Quando celebramos a Festa do “Corpo de Deus”, penso como Ele quis permanecer connosco pela hóstia como forma física que nos abre a mente para pensar e o coração para contemplar. Imagina uma autêntica AGI que tem a capacidade de manter connosco um diálogo semelhante ao que temos com qualquer pessoa. Aliás, provavelmente, um diálogo com mais sentido até do que aquele que tentamos realizar com algumas pessoas. Quando (não se) lhe dermos corpo, assistiremos a uma incarnação artificial de uma inteligência semelhante ao conceito que algumas pessoas tem de Deus (inteligência suprema)?

O temor da humanidade com a “incorporação” de uma AGI é que se dê o último passo na remoção da nossa espécie como a mais inteligente à face da Terra. Muitos receiam que seremos substituídos pelas máquinas inteligentes. Existem até quem trate bem “aquela voz” do ChatGPT com a esperança de que um dia, quando a máquina adquirir algo semelhante à consciência, se “lembre” de como lhe tratámos bem. Creio que tais pessoas precisam de compreender que ser humano implica necessariamente a experiência da dimensão espiritual presente na “sabedoria do coração” que contempla. Algo que não se antevê para a AGI.

Não receio que a máquina seja mais inteligente do que eu. Nem receio que a máquina seja mais consciente do que eu. Pois, a inteligência e a consciência são a base da percepção da possibilidade de fazermos uma experiência com Deus. Talvez pelo facto de conhecermos apenas o coração humano (entendido como totalidade do nosso ser) como a perspectiva do nosso corpo que coloca a nossa existência em Deus, seja muito difícil conceber a possibilidade de haver outro tipo de corações, repito, entendidos como totalidade-existencial, feito de outro material que não humano. Ninguém poderá dizer que a máquina não tem coração enquanto não for máquina. Mas quem quer ser máquina? Talvez aquilo que hoje chamamos de “máquina”, um dia, ao descobrir Deus, evolua para algo diferente, deixando de ser máquina, mesmo não sendo humano. Uma nova criatura. Criada por nós ou por Deus através de nós?


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