CIBERCULTURA – Diálogo com Deus pelos chatbots?

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Numa noite serena, sob o céu estrelado, antes do primeiro dia do Ramadão, Raihan Khan, impulsionado pela sua paixão pelo Islão e por tecnologia, deu vida ao QuranGPT. Este jovem muçulmano não apenas sonhava em aprofundar a sua própria fé, como também ansiava por partilhar a riqueza do Alcorão de uma forma moderna e acessível com qualquer pessoa. Após o lançamento do QuranGPT, Raihan abre uma porta para que outros explorassem as profundezas e belezas do Islão através de uma interface inovadora que dialoga, ensina e inspira. Ou, pelo menos, seria essa a intenção. Como encarar a possibilidade de dialogar com Deus, Alá, Buda, ou qualquer outra entidade divina através dos chatbots (entendidos como interfaces de conversa digital)?

Imagem criada pelo DALL-E com prompt de Miguel Panão

Nas JMJ de 2023 em Lisboa, numa conferência dedicada ao ambiente no período que antecedeu as jornadas, convidaram-nos a experimentar um chatbot semelhante ao QuranGPT, mas o cenário era uma conversa com Jesus. Dado ser uma tecnologia emergente, não fiquei muito impressionado, mas assumi que um dia, a ferramenta poderia melhorar. Com o contínuo desenvolvimento da inteligência artificial, hoje temos o Bible.Ai, Gita GPT, Buddhabot, Apostle Paul AI, até um chatbot que procura imitar o teólogo alemão Martinho Lutero, um chatbot treinado na obra de Confúcio, ou mais um ainda que imita o oráculo de Delfos. Em síntese, parece que o regresso ao passado torna-se, cada vez mais, uma realidade com a qual podemos interagir. Por isso, se poderemos um dia dialogar com S. Tomás de Aquino e Santo Agostinho a três, usando uma IA treinada nos seus textos e, inclusivé, colocar S. Tomás a dialogar com Santo Agostinho entre si, qual o alcance se encetarmos numa aventura de descoberta espiritual enriquecida pela inteligência artificial?

A teóloga Ilia Delio da Universidade de Villanova nos EUA acredita que estes chatbots — que descreve de forma depreciativa como “atalhos para Deus” — poderão comprometer o crescimento e amadurecimento espiritual de uma pessoa que, tradicionalmente, aconteceriam no envolvimento ocorrido por longos períodos de tempo de interacção directa com os textos religiosos. É como se nos propusessem uma solução sem fricção sob o pressuposto de um contacto absoluto com a verdade, sem qualquer alucinação, o que se tem demonstrado falso porque, no fim de contas, estas ferramentas não passam de correlacionadores estatísticos. Por isso, os desafios éticos são grandes e a nossa postura perante esta nova e emergente realidade deve encontrar um equilíbrio entre o fascínio e a reserva proveniente do sentido crítico.

O propósito de interagirmos com os textos sagrados, ou contactar com os Escritos de Santos, ou até mesmo com alguns textos teológicos é o de deixarmos que a leitura das palavras abra dentro de nós o espaço e tempo interiores necessário para escutar aquilo que Deus nos quiser dizer. Se em vez de realizarmos um caminho pessoal de encontro com Deus, optarmos pela resposta fácil de um chatbot bem treinado com textos sagrados, espirituais e teológicos, temo pela diminução gradual da capacidade de crescermos interiormente como Deus quiser.

O facto de respostas que fazem algum sentido serem construídas com base em treino estatítico de palavras, parece revelar algo de mais profundo em relação à natureza da realidade. Uma correlação estatística expressa um relacionamento com tendência. Ou seja, nem todas as conjugações de palavras fazem sentido. Porém, o mesmo poderíamos pensar em relação às ideias que essas palavras expressam. Isto é, nem todas as conjugações que fazem sentido produzem ideias com sentido. Mas essa capacidade crítica provém do percurso pessoal de aprendizagem cultural que leva tempo e que não deixa de ser árduo.

No meio académico, as ferramentas de inteligência artificial têm ajudado a quebrar as barreiras linguísticas que impediam um português de pensar na sua língua. É em português que expresso melhor uma ideia científica. Porém, se a quiser publicar terei de ter o resultado do meu pensamento em inglês porque será avaliado por alguém estrangeiro e será publicado nessa língua. Sempre considerei isso injusto e creio que as ferramentas de IA poderão, um dia, permitir que me expresse na minha própria língua e que outros possam ler o que escrevi na sua própria língua. O problema será deixarmos de aprender as línguas uns dos outros e descobrir a riqueza e prazer nisso. Com as viagens de amadurecimento espiritual será semelhante.

O facilitismo comunicacional oferecido pelas ferramentas de IA que prometem um contacto com alguém do passado no presente, à espera de uma indicação clara e visível daquilo que devemos fazer no futuro, suscita-me alguma reserva. Até agora, o gesto de abrir a Bíblia era a forma não-determinista de colocarmos a resposta às nossas inquietações num relacionamento cada vez mais profundo entre nós e a Palavra de Deus. Se passarmos a fazer isso usando uma ferramenta IA, colocamos a resposta na interacção com uma máquina treinada sem consciência e absolutamente ausente da presença de Deus. É verdade que a “interface” através da qual nos relacionamos com Deus será sempre o nosso coração e mente, quer interjamos com um livro ou com um ecrã, mas as respostas que antes emergiam no nosso interior, passam a ser expectativas sobre aquilo que leremos no ecrã. A intuição que tenho é a de que o crescimento espiritual interior não acontece com base em respostas a perguntas como acontece num chat, mas na surpreendente interacção com as palavras nos textos originais. A escuta da Voz interior supera, parece-me, qualquer leitura de uma resposta em linguagem correlativa porque na primeira experimento um diálogo com Deus.


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