Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
«Religiões tradicionais como o cristianismo, (…) insistem na caracterização dos humanos como criaturas traiçoeiras e sedentas de poder, que acedem à verdade graças à intervenção de uma inteligência divina.» — Esta é a visão que permeia o modo como o historiador Yuval Noah Harari vê a religião no seu novo livro Nexus. Porem, considero que esta é uma visão desco-nexa.
Harari pretende analisar a história das redes de informação e inclui a experiência religiosa como parte da sua evolução. Do ponto de vista da evangelização que as religiões pretendem fazer, penso que faz sentido essa ligação, mas o modo como se refere a Jesus, a Igreja e à dinâmica cristã, leva a que o teor do texto nada tenha a ver com a experiência de quem é cristão, revelando-se em certos momentos uma visão um pouco infantil.
Para o autor existe o facto que nega a crença, o literalismo que pode chegar a negar os factos, e todos estamos cientes de haver pessoas ateístas e cristãs que escolhem esses extremismos, mas a grande maioria sabe distinguir os factos das crenças através da interpretação que faz do sentido e significado daquilo que vive.
Usar a religião para coisas que nada têm a ver com religião, por exemplo, para fins políticos ou económicos, é mais religiofascismo do que religiosidade. Por outro lado, comparar a busca pela verdade usando a Inteligência Artificial, como aparentemente Elon Musk quer fazer com a TruthGPT, comparando Yuval essa busca a uma roupagem que antes chamava-se religião, é considerar que essa experiência faz parte da superficialidade humana da realidade, em vez de ter a ver com o que nos é mais íntimo e profundo. Do ponto de vista do contributo da religião, em particular o cristianismo, para o desenvolvimento das redes de informação, Nexus de Yuval Harari é profundamente desco-nexus. Um exemplo.
«A religião propõe-se retirar da equação a falível humanidade, antes nos dando acesso a infalíveis leis sobre-humanas, mas traz-nos repetidamente ao mesmo: é-nos pedido que confiemos neste ou naquele humano.» — É claro que um dos humanos em que Yuval está a pensar é Jesus, mas daí a desco-nexão do seu pensamento, porque se o que escreve tivesse algum sentido, por que razão haveria Jesus de morrer pregado numa cruz. Existe acto mais falível, humanamente falando, do que Deus encarnado que sofreu de uma maneira atroz e acabo falido, despido e mutilado, e com a carne dilacerada presa a uma cruz de madeira? Contudo, milhares de milhões de cristãos por todo o mundo reconhecem neste acto falido o maior acto de amor capaz de transformar os corações quando esses se rendem ao paradoxo da dor-amor daquele momento. Por alguma razão, aquele momento de sofrimento gera um Nexus com todo o nosso sofrimento, aproximando a experiência de Deus daquilo que vivemos todos os dias quando também sofremos.
As redes de informação têm sido usadas por pessoas com cargos de responsabilidade para controlar as dinâmicas sociais. Porém, um argumento interessante de Yuval é o de que havendo mecanismos auto-correctivos, evita-se a tendência para o autoritarismo como aconteceu com Estaline (um ateu). Também na Igreja, já se viveram na história momentos de clericalismo que possuem traços semelhantes e sabemos que muitos sofreram com isso. Não deveria ser assim, mas também as nossas células não deveriam degenerar em células cancerígenas e, contudo, isso acontece. A evolução das redes de informação, para que nos levem a experimentar uma maior liberdade (não libertinagem), penso que estejam mais na regeneração das células sociais pelo perdão assente na verdade, do que em mecanismos auto-correctivos que pretendem desconectar-nos da oportunidade de olhar o outro, olhos nos olhos, por muito que isso nos custe e, humildemente, aceitar a nossa falibilidade.
A visão pessimista de Yuval Noah Harari quanto ao impacte da Inteligência Artificial como potencial agente dominador e, por isso, manipulador da nossa realidade, possui valor nos alertas que faz, mas tudo irá depender do modo como usarmos essas ferramentas. É verdade que se uma empresa der poder a um agente digital de avaliar se estou ou não apto para algo, todas as nuances humanas unicamente presentes em cada pessoa, permanecem ocultas. Porém, um outro humano possuirá a capacidade empática de saber “fazer-se um” comigo, indo pelo relacionamento entre nós para além daquilo que eu aparento. Nem todas as emoções são espelhadas no reconhecimento das expressões faciais.
Creio que o papel da experiência religiosa no futuro permeado de redes de informação populadas por agentes informacionais será o de transformar os mecanismos auto-correctivos em experiências inter-curativas, de modo a continuarmos a fazer juntos um caminho de evolução humana que permanece ainda aberto a coisas novas.
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