Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
«O futuro é melhor do que qualquer passado.» — uma frase do jesuíta e paleontólogo francês Teilhard de Chardin que traduz a essência da visão cristã assente na esperança. Os discursos do Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude destinaram-se, essencialmente, aos jovens, mas nesses encontramos diversos traços de uma visão futura do valor da vida que mais do que defendida, deveria começar a ser mais acolhida. Nesse sentido, penso que se abre a possibilidade a uma transição de palavras — da “Defesa da Vida” ao “Acolhimento da Vida” — porque muito do futuro da vida assenta, parece-me, mais no modo como comunicamos do que poderíamos pensar, e a linguagem que usamos tornar-se-á uma peça fundamental de acção.
«(…) a importância de conceber as fronteiras, não como limites que separam, mas como zonas de contacto.» (Encontro com as Autoridades, com a Sociedade Civil e com o Corpo Dplomático a 2 de Agosto)
A vida no seu início e no seu fim são “zonas de contacto” com a nossa finitude. O acolhimento da vida no início faz-se pela surpresa porque todo o óvulo fecundado contém em si uma imensa novidade. O acolhimento da vida no fim faz-se pelo sofrimento porque toda a pessoa contém em si uma narrativa única que se entrelaça com a história do universo. Ambas as zonas de contacto com o tempo encontram-se numa condição de máxima incerteza.
Quem será este ser que há-de nascer? O que será da consciência daquele que há-de morrer? São questões que nos preocupam e ocupam no caminho que gostaríamos de traçar para que a vida seja acolhida em toda e qualquer circunstância.
Nos últimos tempos, estas questões não estão só presentes nas ocasiões geradas pelas grandes manifestações, mas passam a estar cada vez mais presentes no quotidiano e na rotina através de uma vida que começa a nascer, embora desincarnada, e não parece que esta “vida” venha alguma vez a morrer: a vida digital. No encontro com o jovens universitários, o Papa diz —
«Preocupemo-nos antes quando estamos prontos a substituir a estrada a fazer por uma paragem em qualquer estação de serviço que nos dê a ilusão do conforto; quando substituímos os rostos pelos ecrãs, o real pelo virtual; quando, em vez das perguntas lacerantes, preferimos as respostas fáceis que anestesiam.» (Encontro com os jovens universitários a 3 de Agosto)
A imersão da nossa atenção nas zonas de contacto digitais levam-nos a entrar num mar infinito de informação onde, por vezes, consome-se mais do que se comunica. A desinformação, a “verdadez” ou verdade a sentimento, também designada por pós-verdade, e o incomensurável tempo cronológico que tantas pessoas passa em trocas ininterruptas de comentários pelas redes sociais, dão-nos a sensação de que estamos a transmitir uma mensagem de esperança em prol do acolhimento da vida em toda e qualquer circunstância. Mas se analisarem bem, essa mensagem não passa de mais uma no meio do mural infinito de tantas outras, mais os emojis das reacções. O que nos garante que a fluência com que comunicamos a esperança, potência e valor de acolher a vida, transforme as consciências? Honestamente. Nada. Pode haver um caso ou outro (o que é bom), mas temo que o esforço investido na vida digital desvie a nossa atenção do esforço necessário para criar as condições para aqueles que estão ainda no ventre materno e aqueles que se preparam para entrar no ventre terreno.
Cada vida gerada, e mesmo a vida que atravessa os seus últimos momentos, contém em si a possibilidade de sonhar. Mas o sonho co-existe com o medo. O medo da responsabilidade de uma nova vida. O medo do fim. Mas o Papa diz aos jovens universitários
«tende coragem de substituir os medos pelos sonhos (…) não sejais administradores de medos, mas empreendedores de sonhos!» (Encontro com os jovens universitários a 3 de Agosto)
O medo é um sentimento. O sonho é uma fantasia da mente. A dor é a realidade vivida no parto ou no último respiro. Para acolher melhor a vida no futuro penso que, como disse ainda o Papa Francisco aos jovens universitários,
«Não podemos contentar-nos com simples medidas paliativas ou com tímidos e ambíguos compromissos. (…) [Os] meios-termos são apenas um pequeno adiantamento do colapso. Trata-se, pelo contrário, de tomar a peito o que infelizmente continua a ser adiado, ou seja, a necessidade de redefinir o que chamamos de progresso e evolução.»
No meu trabalho de investigação, um dos tópicos baseia-se na Teoria Construtal, formulada por Adrian Bejan, professor na Universidade de Duke nos EUA, que diz — «Para um sistema finito que flui persistir no tempo (viver), deve evoluir com liberdade tal que providencie um acesso cada vez maior e fácil ao que flui.» — O que flui pela vida desde o nascer ao pôr-do-sol do nosso desenvolvimento celular corporal é o amor. Quando amamos alguém, não somos capazes de dar a nossa vida por essa pessoa? Quando somos amados por alguém, não suportamos de modo completamente diferente a nossa dor? Acolher a vida em toda e qualquer circunstância é fazer fluir o amor.
O sistema finito dos relacionamentos persiste no tempo na medida em que providenciamos um maior e mais fácil acesso ao amor que flui entre as pessoas. Quebrar a vida celular com 24h após fecundação, ou quebrar a vida pautada por uma doença prolongada é limitar a liberdade de avançar e dar passos, como traduz a etimologia da palavra “progresso”. Quando se afirma que abortar ou eutanasiar é um passo em nome do progresso, vive-se numa verdade a sentimento (verdadez) e numa profunda alienação desinformativa. Pois, o resultado da vida que emerge do fluir do amor é um super-poder que cada ser humano pode desenvolver: o super-poder de estar sempre a aprender.
O Papa Francisco convidou os jovens na JMJ a serem empreendedores de sonhos, mas parece-me que a humanidade evolui pelo potencial de sermos apreendedores com as dores. Explico.
O grande desafio do futuro no acolhimento da vida é a síntese entre a linguagem do amor e a linguagem da cruz, onde a dor reflecte o facto de sermos perfeitos em sermos imperfeitos. Podemos profanar ou santificar o sofrimento que experimentamos com as nossas dores. Mas Thomas Merton diz no seu livro “Nenhum homem é uma ilha” que —
«O santo não é alguém que aceita o sofrimento porque gosta, e confessa essa preferência perante Deus e os homens para ganhar uma grande recompensa. É alguém que pode odiar o sofrimento tanto quanto qualquer outra pessoa, mas que ama tanto Cristo – que não vê – que permitirá que o Seu amor seja provado por qualquer sofrimento. E fá-lo não por achar que é uma conquista, mas porque a caridade de Cristo no seu coração exige que seja feito.»
Quem ama na dor, ainda que o faça imperfeitamente, converte a dor em momentos de aprendizagem do sentido profundo que têm as nossas limitações para a compreensão da nossa existência. O mundo precisa de pessoas que testemunhem o seu percurso como “apreendedor com a dor” para progredirmos e evoluirmos no acolhimento da vida. Essas pessoas serão os comunicadores mais aptos que nos ajudarão a sobreviver e evoluir.