CIBERCULTURA – Cultivar o Discernimento na Era da Informação

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Vivemos imersos num oceano digital, uma corrente sem fim de informação que promete conhecimento, mas muitas vezes oferece apenas exaustão. Esta abundância cria a ilusão de compreensão, mas frequentemente deixa-nos à deriva, incapazes de distinguir o essencial do superficial. Neste ambiente saturado de dados, cultivar o discernimento—que o Papa Francisco chamou de “sabedoria do coração”—não é secundário, mas uma necessidade urgente.

O nosso desafio actual não é simplesmente obter mais informação, mas aprender a transformar essa informação em compreensão profunda e transformativa. Confundimos frequentemente “estar informados” com realmente entender as implicações da informação que consumimos. Esta constante troca intensa de informação em ambientes digitais enfraquece a nossa capacidade de reflexão crítica, reduzindo o espaço mental necessário para um crescimento interior autêntico. A tecnologia moderna, especialmente a Inteligência Artificial (IA), oferece resultados úteis, mas limita-se a reproduzir conexões lógicas, sem verdadeira compreensão. Isto levanta uma questão crítica: aceitamos passivamente os sentidos propostos pelos algoritmos, sem os questionar?

A resposta a esta questão reside numa virtude antiga e nova: a sabedoria do coração. Esta forma de sabedoria permite-nos relacionar o todo com as partes, as decisões com as consequências, o passado com o futuro, e o eu com o nós. O Papa Francisco relembrou-nos frequentemente que esta sabedoria é essencial perante o crescimento exponencial da tecnologia, especialmente da IA. A sabedoria do coração acrescenta sabor à vida, indo além da inteligência pura, porque não só liga os “porquês” como confere sentido e propósito às nossas acções. Num mundo dominado pela lógica tecnológica, a sabedoria de coração impede o nosso coração de se tornar tão frio e artificial quanto as máquinas que construímos.

Para cultivarmos este discernimento, precisamos de práticas concretas. É crucial criar pausas intencionais e espaços de silêncio, permitindo-nos escutar profundamente o que realmente importa. Num ritmo frenético, onde a produtividade e conectividade são idolatradas, estas pausas recuperam a contemplação, oferecendo uma existência espiritualmente mais plena e rica.

Outra prática essencial seria o desenvolvimento do pensamento crítico e da metacognição, isto é, o pensar sobre o modo como pensamos. Precisamos de confrontar as informações que recebemos, questioná-las activamente, reconhecendo e avaliando as fontes e as suas intenções. Pensar sobre como pensamos permite-nos identificar preconceitos e bloqueios, promovendo um pensamento divergente capaz de encontrar múltiplas soluções e caminhos possíveis. Saber duvidar bem é diferente de um cepticismo estéril. É uma dúvida saudável que busca a verdade em profundidade.

Além disso, cultivar o discernimento envolve fortalecer a escuta activa e o diálogo genuíno. O verdadeiro diálogo implica reconhecer que o ponto de vista do outro pode conter elementos válidos e importantes, ainda que diferentes dos nossos. Não são apenas factos isolados que mudam opiniões profundamente enraizadas, mas sim relacionamentos significativos e interações autênticas. Este diálogo vivo contrasta com os monólogos paralelos que caracterizam muitas das nossas interações digitais e, consequentemente, as interacções presenciais. Ainda recentemente estive com pessoas que não conversava há algum tempo e notei como a visão negativa dos imigrantes, entre outras coisas, impedia de pensar na diversidade como potencial motor de unidade.

Finalmente, o minimalismo digital pode ser um poderoso aliado no cultivo desta sabedoria interior. Isto implica optar conscientemente por consumir menos informação, focando a nossa atenção no essencial e privilegiando a presença real em detrimento da virtual. Assim, podemos transformar a simples conectividade tecnológica numa verdadeira “contactividade”, onde as relações humanas genuínas ocupam um lugar central, protegendo-nos do perigo de vivermos enclausurados em filtros-bolha.

Poder-se-ia argumentar que, numa época tão acelerada e tecnologicamente avançada, estas práticas são pouco realistas ou até nostálgicas. No entanto, a experiência mostra que, precisamente por vivermos num mundo tão “interactivo”, precisamos mais do que nunca destas âncoras de discernimento. Não se trata de rejeitar a tecnologia ou recuar para um passado idealizado, mas sim de garantir que as ferramentas digitais sirvam o nosso bem-estar integral e não nos limitem à superficialidade.

Cultivar o discernimento e a sabedoria do coração é um compromisso com o nosso crescimento interior e com a nossa responsabilidade ética perante a tecnologia e a sociedade. Este é o caminho para uma existência mais consciente, plena e verdadeiramente humana. Este é o assunto que está no coração de uma simples nota, recentemente publicada em português, do Dicastério para a Cultura e Educação, Antiqua et Nova, dedicada ao relacionamento entre inteligência artificial e inteligência humana. Num mundo inundado de dados, só um coração sábio e livre para discernir pode transformar a informação essencial em verdadeira compreensão e sentido.


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