Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
O apagão levou-nos a experimentar uma versão da vida em que a cibercultura se apagou também. Houve quem comparasse o que se passou na vida das pessoas à pandemia, mas isso não parece ser verdade. Durante a pandemia não podíamos estar juntos com receio de nos contagiarmos, enquanto que no apagão, pouco mais havia a fazer, por isso, estarmos juntos tornou-se a melhor hipótese de viver o tempo. Cibercultura apagada, uma outra faceta da vida revelada.

Ao contrário dos meus filhos cuja vida é naturalmente mais cibercultural, não senti que houvesse uma grande alteração ao ritmo habitual dos meus dias. Exceptuando as idas ao carro para saber o que se estaria a passar, por já não termos rádios de pilhas, acabei por viver o meu tempo a preparar a aula do dia seguinte. Um facto que prescindia do computador por ter reduzido em 90% o uso dos slides projectados que se tornaram num “soma” do “Admirável Mundo Novo” Académico. Avancei no livro que estou a ler. Escrevi as minhas páginas pessoais e pensava como seria a experiência de me deitar com o pôr-do-sol, o que não veio a acontecer. A descoberta que fiz durante o apagão foi a de não ter a vida intelectual assim tão dependente da vida cibercultural como acontecia no passado. Entretanto, a luz artificial voltou.
No dia seguinte somavam-se histórias sobre as pessoas que iam aos pequenos supermercados para limparem as prateleiras de produtos com receio de estarmos em ambiente de guerra. Um aluno moçambicano comentava-me não compreender esta atitude que revelava não pensarem nos outros e naqueles que realmente precisariam de papel higiénico porque realmente acabou. Concordei. A questão do ambiente de guerra falso provinha das notícias falsas que não perderam tempo a chegar e inundar o mar de informação que navegávamos durante o tempo limitado em que tivemos ainda acesso total à net. Este apagão que apagou momentaneamente a nossa vida cibercultural artificial contém alguns ensinamentos para a vida relacional humana.
Nem só de net vive o homem, mas sobretudo de toda a vida física e relacional que nos leva a sair dos ambientes virtuais onde passamos muito tempo, cabisbaixos, a contemplar ecrãs. O acesso sem fricção à informação leva-nos a querer saber tudo, em qualquer lugar, pagando-se o preço em tempo que deixamos de ter para os contactos criativos com os outros e o mundo à nossa volta. Esses contactos são fundamentais para desenvolver o nosso modo de pensar a vida e a realidade, em vez de consumir ininterruptamente o entretenimento na virtualidade.
No princípio era o Verbo — e não o WiFi. A comunicação entre as pessoas possui uma densidade física, simbólica e existencial que só nos damos conta quando somos obrigados a experimentá-la. Durante o apagão, as filhas de uma colega da minha esposa passaram mais tempo com os pais porque esses não podiam continuar a trabalhar no computador. Por isso, quando veio a luz, enquanto lá fora ouviam quem soltasse gritos de alegria, ou batia palmas, elas disseram—«Ohhh…»— por saberem que os computadores ligados à WiFi voltariam a captar a atenção dos pais. O Verbo é a palavra pensada que cria algo no mundo quando pronunciada. O apagão eliminou, momentaneamente, o ruído informativo e excesso de estímulos que fazem parte da vida cibercultural e, por isso, deu espaço à palavra pronunciada pelo maior tempo de contacto com os outros
A verdade não se actualiza a cada refresh. Não é a actualização permanente dos murais infinitos de informação digital que responde à procura pela verdade e sentido das coisas. Muitas vezes, informação a mais desorienta-nos do caminho da verdade sem que nos demos conta disso. Durante o apagão, a verdade sobressai-se como ligada à sabedoria da experiência vivida, uma vez que deixámos de ter acesso gratuito à informação. E onde antes o acesso aos dados era a fonte e porto seguro das nossas decisões, sem esses, ficámos a saber quão desenvolvida está a nossa capacidade para o discernimento. Por exemplo, não seriam necessárias 35 latas de atum ou 50 rolos de papel higiénico.
O apagão foi uma forma de avaliarmos o quanto estamos dependentes da tecnologia, mais até do que a electricidade que a alimenta. E mesmo o cenário mais negativo desta falta de electricidade teve o seu lado positivo de alerta para o modo como cuidamos da nossa experiência de contacto com o mundo físico onde assentam os nossos pés.
Com a cibercultura apagada, diante de nós tivemos revelada uma vida esquecida, mas real, feita de relacionamentos com tudo e todos. Uma vida feita de pão, em vez de net; de redes com mãos, em vez de redes sem fios; de verdade física que refresca, em vez de deslizes de dedos por vidro saturados de cores. Uma cibercultura apagada que acendeu a luz de um admirável mundo antigo feito pela confiança partilhada.
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