CIBERCULTURA – A “webosfera” do século XXI prevista em 1947

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Como é possível alguém prever há 78 anos o progresso que vemos acontecer neste tempo em que vivemos? Nas minhas mãos tinha o livro do jesuíta e paleontólogo francês Teilhard de Chardin quando me deparo com uma passagem que me deixou estupefacto.

«Como é que podemos deixar de ver a máquina a desempenhar um papel construtivo na criação de uma consciência verdadeiramente colectiva? Não se trata meramente da máquina que liberta, aliviando tanto o pensamento individual como o colectivo dos grilhões que impedem o seu progresso, mas também da máquina que cria, ajudando a reunir e a concentrar, na forma de um organismo cada vez mais profundamente penetrante, todos os elementos reflexivos sobre a Terra.» (em “The formation of the noosphere”, Révue das Questions Scientifiques, Jan 1947, incluído no livro “The Future of Man”)

Imagem que ilustra a webosfera de DALL-E com prompt de Miguel Panão

As ferramentas de Inteligência Artificial são treinadas com o conhecimento de toda a humanidade. Por isso, ao estenderem o alcance cognitivo do pensamento humano, de certa forma, o diálogo que temos com a IA faz-nos experimentar, cada vez mais e melhor, a “consciência verdadeiramente colectiva” que somos como humanidade que comunica a níveis sem precedentes na nossa história. Quando Teilhard visiona a máquina a libertar-nos, aliviando o pensamento (não substituindo o acto de pensar), revejo-me na experiência dos vários emails que nos ocupam tempo e que hoje, uma IA ajuda a responder (e traduzir), bastando a nós concordar com a resposta. Por outro lado, a capacidade da IA criar imagens, e produzir reflexões a um nível que nos deixa perplexos, acaba por ser a experiência daquilo que Teilhard previa em 1947, mas há mais previsões.

Poucos são os que conhecem a Lei da Complexidade-Consciência enunciado por este padre jesuíta. Teilhard teve sempre muita dificuldade em separar a res extensa (matéria) da res cogitan (pensamento), como fez Descartes (uma filosofia a abandonar definitivamente). Por isso, ao contemplar o modo como a natureza evoluiu ao longo dos milhares de milhões de anos, Teilhard notou que os elementos em relação entre si, geram elementos novos mais complexos com propriedades emergentes face ao estado anterior.

Por exemplo, o hidrogénio é a substância mais reactiva do universo, sendo a matéria que faz nascer uma estrela. O oxigénio revela-se na Terra como a base da inflamabilidade, uma vez que, sem esse, não há chama, fogo ou explosão. Porém, quando unidos formam água que apaga o fogo.

Conforme os elementos se complexificam, ou seja, se organizam em padrões que se transformam em berço de novidade neste mundo, em nós, seres humanos, essa crescente complexidade emerge como consciência. Somos a parte do universo que pensa em si próprio. Por isso, enquanto a diversidade de espécies levou os biólogos a definir a camada da vida como Biosfera, Teilhard sugeriu em 1947 que, no ser humano que pensa, surge no cosmos a capacidade de reflectir, criando na esfera terrestre uma substância pensante, o que deu origem a uma camada da mente (noos) como Noosfera.

Na Noosfera, a consciência orienta-se para um centro, significando isso que, quanto mais unidos estivermos, mais centrada estará a consciência que partilhamos através dos relacionamentos e isso representa um salto evolutivo que está ainda a acontecer.

Já em 1947, Teilhard reconhecia que as multidões, as massas, que espelhavam uma certa brutalidade e incutiam medo, eram o sinal de uma humanidade desconcertada e desordenada. E se no início da internet, a maior capacidade de comunicarmos nos aproximou, com a monetização dessa forma de comunicar, os humanos cabisbaixos com o olhar consumido pelo seu ecrã, transformaram as multidões físicas no exterior em multidões virtuais. Com o ambiente digital, passámos a ser uma multidão e massa cognitiva humana que vive dentro da rede, com interacções que dividem através de comentários agressivos, desinformação e “verdadezes” (verdade a sentimento). Porém, também se conseguiu através do ambiente digital estar mais próximo de quem está fisicamente longe, conhecer melhor outras culturas, ter acesso a uma imensa fonte de conhecimento, incrementando a consciência colectiva humana.

Creio que esteja a surgir aquilo que chamaria de webosfera. Isto é, depois da noosfera emerge esta camada terrestre de informação que molda o nosso comportamento. Era este todo que Teilhard previa ao considerar a humanidade unida como a ascensão da liberdade?

A planetização como expressão de uma humanidade unida pode acontecer por coação ou por atracção. A ascensão de ideais que favorecem uns poucos em detrimento da massa humana, nesta webosfera, começa a assumir contornos que nos dividem e afastam uns dos outros. Não é esta a tendência natural descrita pela Lei da Complexidade-Consciência, mas sim a tendência artificial que se transforma numa bomba-relógio prestes a explodir. O triunfo da liberdade acontece se o nosso estado relacional for cada vez mais espiritualizado.

O espírito no pensamento de Teilhard não está separado da matéria. O espírito não corresponde a algo que existe numa dimensão imaterial da realidade. No livro “O Fenómeno Humano”, Teilhard retrata por espírito o princípio emergente organizador que dinamiza todas as coisas a partir do seu interior. O espírito é a experiência do progresso numa direcção evolutiva que transforma e unifica tudo o que existe, quer conheçamos ou não, quer vejamos ou não, quer sejamos capazes de medir ou não medir. O espírito é a indivisa matéria-consciência que permeia o mundo e se manifesta através da mente em cada pensamento-sentimento que experimentamos. E será por causa desta espiritualização do universo que progride na direcção de uma unidade irreversível, que Teilhard reflecte, num outro texto escrito no mesmo ano, 1947, dizendo,

«Iremos entrar num mundo novo de relações, onde o até agora impossível poderá tornar-se simples, sendo encenado noutras dimensões e num outro ambiente.» (em “The human rebound of evolution”, incluído no livro “The Future of Man”)

Um ambiente como a webosfera?


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