Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Imagina um mundo onde a maioria das pessoas vive a Eucaristia através de uma tela. Já não vale a pena sair de casa e perder tempo até à Igreja. Se durante a pandemia, a comunhão foi partilhada virtualmente, por que razão não continuar? Que futuro existe para a sacralidade eucarística natural, onde Jesus se dissolve na nossa boca para, misteriosamente, nos transformarmos n’Ele? Como será que a vida, cada vez mais virtualizada, afectará a relação que temos com o sagrado, seja pela Eucaristia como pela natureza? Cada vez mais vemos a tecnologia e a fé intersectarem-se, mas que tipo de caminho nos leva a percorrer?
À medida que a cibercultura prevalece em todo o tipo de experiências que fazemos, incluindo a religiosa, torna-se crucial entender como se está a moldar a vivência humana pela Eucaristia, a intenção do papa para este mês de Julho, e o tipo de relação desenvolvida por essa experiência relativamente à sacralidade da natureza. A tecnologia está a criar novas formas de vivência religiosa, incluindo a Eucaristia, desde missas transmitidas ao vivo até comunidades virtuais de crentes. No entanto, essas mudanças comportam desafios e podem levar-nos a uma maior desconexão com a natureza, o pobre esquecido que grita silenciosamente.
O papa Francisco diz no vídeo da intenção por uma vida eucarística que — «a lógica da eucaristia (…) dá-nos a coragem de sair ao encontro, sair de nós mesmos e de nos abrirmos amorosamente aos demais.» — Por isso, os exemplos dados no fim de ministros da comunhão que levam Jesus a quem não consegue sair de casa, mostra a importância de não prescindirmos do encontro presencial com Ele, vivo no Pão Consagrado. Porém, seguramente que isso exige uma imensidade de corações generosos que oferecem do seu tempo para levar Jesus-Eucaristia ao outros. Que ligação pode ter a comunhão de Jesus com a sacralidade da natureza?
Na espiritualidade católica existe esta convicção de que a matéria transubstanciada transforma-nos a um nível de percepção da realidade que vai para além da mera materialidade, embora se sirva dessa para isso. Não há forma de sustentar esta convicção senão pela experiência religiosa que pertence à parte invisível da realidade, estando conscientes de que nem todos somos sensíveis à sua existência. Porém, qual a razão, ou razões, de Jesus querer transformar a minha vida para que seja eucarística?
A origem da palavra eucaristia é “acção de graças”, ou seja, uma palavra que nos impele à acção orientada pela gratidão a Deus. E não há melhor forma de agradecer o que gratuitamente recebemos, do que dar-mo-nos a nós mesmos gratuitamente. E podemo-nos dar a nós mesmos de muitas maneiras. Podemos estar atentos aos outros, oferecer uma ajuda quando precisam, não fazer juízos precipitados, dar espaço para que se expressem livremente, valorizando as suas ideias, entre muitas outras coisas orientadas mais por um centro de acção que é o outro em vez de ser o próprio. Porém, quando se trata da natureza, dar-se a si mesmo possui contornos diferentes e mais difíceis de compreender.
Os animais interagem connosco. As plantas menos, mas são ainda sensíveis à nossa presença. Porém, as pedras, a terra, os grãos de areia que envolvem os nossos pés na praia parecem existir para estar à nossa mercê. Sabemos da existência de formas de espiritualidade que reconhecem nos animais, plantas e pedras uma dimensão espiritual e, por isso, muitos os santificam. Mas a proposta de uma vida eucarística parece-me fazer-nos mais experimentar o imenso valor de sermos pela matéria transformada, santificados. A perspectiva é inversa. A visão da Eucaristia seria mais a de sermos santificados pela matéria por essa ser santificável após a Última Ceia de Jesus. Porém, o que quer tudo isto dizer? Não nos arriscamos a entrar em raciocínios elaborados e desprovidos de vida?
O mundo visível tem consumido a experiência que poderíamos fazer do invisível. Para um número crescente de pessoas, só se pudermos demonstrar, nem que seja indirectamente, o mundo invisível no mundo visível é que temos as bases para acreditar nele. Daí a viragem para as realidades aumentadas e virtuais, cujo efeito secundário (cada vez mais primário) é o de nos afastar do contacto com a sacralidade presente na matéria e através da qual a presença de Deus se faz sentir quando amamos com autenticidade.
A artificialização do mundo é um fenómeno irreversível. Mas toda esta co-criação tem o seu lugar se não ocupar o espaço e o tempo da criação de Deus. O papa refere na intenção para julho aqueles que «levam a Eucaristia aos seus irmãos necessitados, fora da igreja, oferecendo e retribuindo esse amor e esse dom de si mesmos que receberam no sacramento.» — Mas não é o Sol nosso irmão, a Lua e todos os que fazem parte da família da criação como cantava S. Francisco? Cristificados durante a vida, será que, com a nossa morte e um corpo entregue à terra, levaremos a Eucaristia ao cosmos, transformando-o em novos e céus e nova terra [1]?
Notas
[1] Uma intuição de Chiara Lubich presente no livro “Caminho Novo” da Editora Cidade Nova.
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