Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
«Prefiro viver num país cristão embora não acredite numa única palavra da fé cristã.» — Estas palavras do conhecido ateu Richard Dawkins fizeram parte de uma entrevista; em que ele considerou-se como um cristão cultural. Para um cristão, esta condição de se ser cristão cultural ignorando a fé pode não fazer muito sentido, mas será difícil ignorar o passo que esta afirmação representa para alguém como Dawkins que inspirou muitos a tornarem-se ateus, como pude presenciar com um amigo meu. O que este ponto de viragem nas convicções de Dawkins representa, isto é, de que pelo menos o Cristianismo, como religião, não seria de erradicar do mundo, mostra como a fé é um caminho assente mais na dúvida do que na certeza.
Quando o Novo Ateísmo entrou em guerra declarada a todas as formas de religião, sonhava que as pessoas experimentariam uma liberdade oferecida pela racionalidade do conhecimento científico sobre a realidade, mas não foi isso que aconteceu. O sentido do religioso apenas desviou-se para outros modos de “endeusar” algo ou alguém e construir mais religiosidades à medida. Dawkins gosta de viver numa sociedade de matriz cristã, mas sem cristãos, essa matriz social não se sustenta, pelo que, interiormente, este conhecido ateu parece encontrar-se num impasse.
O mundo racional e feliz sonhado pelo Novo Ateísmo acabaria por eliminar o “oxigénio” espiritual que está na base da razão. A racionalidade proveio daqueles que alimentados pela dúvida positiva da fé, encetavam caminhos de procura da verdade sobre tudo aquilo que Deus criou. Conhecer o universo como linguagem de Deus seria conhecer o pensamento de Deus. Porém, eliminando o elemento espiritual e religioso do horizonte da procura, a racionalidade perde o seu sustento e esta mudança de coração de Dawkins é o resultado do susto que apanhou ao ver as pessoas a adorar novos deuses intolerantes. Por exemplo;, na Escócia, se dissermos publicamente que os homens não podem ser mulheres podemos ter a polícia a bater à porta para nos multar pelo “incidente de ódio” presente nas nossas palavras, fazendo da Lei um deus intolerante relativo à liberdade de expressão.
Uma outra razão de Dawkins afirmar-se como culturalmente cristão deve-se à propagação do Islão que ele considera ser uma ameaça para o mundo. Creio que a interpretação que ele faz do Alcorão padece dos mesmos males que as interpretações que em tempos fez da Bíblia. Por isso, também esta crítica ao Islamismo é injusta. Não podemos confundir a religiosidade das pessoas com o fundamentalismo religioso de algumas que objectificam a vida espiritual com as visões políticas que pretendem impor no seu país. O Cristianismo não é mais decente do que o Islamismo, assim como o Islamismo não é mais decente que o Cristianismo, e o mesmo poderíamos afirmar quando comparadas quaisquer duas das grandes religiões do mundo. O facto de uma pessoa nascer num país com uma cultura influenciada por uma determinada religião, parece-me natural que possa culturalmente aderir a essa religião, ainda que seja formalmente ateu, como fez Dawkins.
Um dos receios que tenho é que a perda da religiosidade assente na espiritualidade possa levar à emergência de uma religiosidade assente na tecnologia. Quando estive com sacerdotes da Diocese de Lisboa a dialogar sobre a inteligência artificial, uma das preocupações que manifestaram (e bem) foi a onda transumanista que procura ultrapassar o que alguns consideram como limitações biológicas, ou seja, físicas e psicológicas, inserindo tecnologia no corpo e apontando para uma visão “ciborgue” que até agora fazia parte do imaginário da ficção científica. É notável; ver um paraplégico usar o Neuralink da empresa de Elon Musk para controlar um rato num monitor como foi noticiado em fevereiro deste ano. Porém, a caixa de pandora abre-se para a possibilidade de afectar o pensamento com tecnologia, levando-nos a questionar se seremos verdadeiramente livres no futuro.
Richard Dawkins é um pensador livre que mudou de convicção tornando-se num cristão cultural, mas temo em reconhecer que esta sociedade de informação está a afectar de tal modo o pensamento das pessoas que não sabemos mais se o que pensam provém de uma reflexão ou de um comentário.
No “1984” de George Orwell, o Ministério da Verdade era responsável por alterar documentos históricos, literatura, jornais, e todos os outros registros escritos para garantir que tudo se alinhasse com a versão da verdade estabelecida pelo Partido. Isso incluia a reescrita contínua da história para apagar qualquer evidência de mudança de políticas ou alianças, de modo a que o Partido parecesse sempre infalível e eternamente consistente naquilo que dizia. Na sociedade cibercultural que temos, isto pode vir a acontecer por reconhecer algum do mesmo espírito nas mensagens que por vezes recebo de pessoas de confiança. Mensagens estranhas que ao avaliar a veracidade da informação verifico não serem fiáveis. Ao comunicar a quem me enviou recebo um agradecimento, mas temo pelo dia em que receberei um reparo.
«A fé suscita-me dúvidas.» — respondi um dia a um Professor que me questionou o que era a fé. Após esta pequena conversão de Richard Dawkins ao Cristianismo Cultural, apercebo-me que o acto de questionar e procurar a verdade presente no espírito dos cristãos do passado como Isaac Newton, Michael Faraday ou Arthur Eddington, continua no presente e, aparentemente, está a começar a gerar cristãos culturais a partir de ateus. O que virá a seguir?
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