Catequese do Cardeal-Patriarca no 5.º Domingo da Quaresma

“Cristo, Sumo Sacerdote, é o nosso Bom Pastor”

Introdução

1. Já vimos que os Evangelhos e o Novo Testamento em geral evitaram aplicar a Jesus e à sua missão salvífica a linguagem sacerdotal da estrutura do sacerdócio levítico. Foi uma maneira de afirmar a diferença e anunciar a ruptura com toda a concepção sacerdotal do Povo de Israel. Acentua-se, isso sim, a perfeição da atitude sacerdotal, do amor infinito com que dá a vida por nós e que, na última Ceia, Ele assume claramente como “função sacerdotal” do tempo novo, o tempo da nova e definitiva Aliança.

Mas a perfeição da atitude sacerdotal de Jesus Cristo, expressa no amor infinito com que nos ama e dá a sua vida para que nós tenhamos a vida, é expressa no Antigo Testamento por uma outra linguagem, a da imagem de Deus, Pastor do Seu Povo, e que Jesus não hesita em aplicar a Si Mesmo. “O Senhor é meu pastor nada me falta”, canta o salmista (Sl. 23,1-2). Podemos, assim, aproximar as duas linguagens e exprimir a atitude sacerdotal de Jesus Cristo com a imagem do Bom Pastor. Tanto no Antigo como no Novo Testamento a designação de Deus como Pastor do seu Povo exprime, em linguagem tocante e significativa, o intenso amor de Deus pelo seu Povo, define a salvação e o sacrifício que no-la mereceu como acto de amor, de um amor intenso e levado ao extremo. Cristo é Sacerdote porque nos salvou; e salvou-nos porque nos amou até ao limite, até ao dom da própria vida. Ele é o Sumo Sacerdote do novo Povo de Deus porque é o seu Bom Pastor.

Deus salva-nos porque nos ama

2. Ligar o sacerdócio de Cristo ao seu amor de Bom Pastor, ajudar-nos-á a viver cada momento sacerdotal da Igreja como expressão da intensidade actual do amor com que Deus nos ama, em Jesus Cristo. Podemos viver cada Eucaristia, que é oferta de Cristo hoje, mas também oferta da Igreja, rebanho que Ele conduz nos caminhos da vida, como a expressão actual desse amor infinito de Jesus Cristo. Cada Eucaristia é um acto de amor, intenso e actual, de Cristo por aquela assembleia que celebra com Ele e por toda a humanidade redimida, aí sempre presente cada vez que a oferecemos. Podemos sequer imaginar a intensidade do amor de Cristo, um amor sofrido, por esta humanidade a que pertencemos, por vezes tão desviada do caminho da vida?

A Eucaristia celebrada com a densidade de amor de um Povo que se sente amado pelo seu Bom Pastor, é um momento de a Igreja, cada comunidade que celebra, abraçar a humanidade com o amor de Cristo. Em cada Eucaristia a humanidade é amada com a intensidade do amor de Cristo por cada comunidade que a celebra.

A imagem do Bom Pastor na Sagrada Escritura

3. Significar o amor salvífico de Deus com a imagem do Bom Pastor encontra-se já no Antigo Testamento, em textos que revelam a solicitude amorosa de Deus pelo seu Povo. Referindo-se a essa solicitude de Deus, Isaías escreve: “Como um pastor Ele apascenta o seu rebanho, reúne-o com o seu braço, transporta os cordeiros ao colo e conduz ao descanso as mães que os estão a amamentar” (Is. 40,11).

O Profeta Ezequiel (cf. Ez. 34,1ss) faz uma denúncia severa aos pastores de Israel, aqueles a quem Deus encarregara de o serem, em seu nome. Eles serviram-se do rebanho, em vez de o servirem com amor. Por isso Deus destitui-os e anuncia que Ele próprio será o Pastor do seu Povo. Reúne-o da sua dispersão, cuida as ovelhas feridas, conduz todo o rebanho a pastagens abundantes onde poderão crescer. Este anúncio de que Deus será, Ele próprio, o Pastor do seu Povo, é o anúncio do Messias, de Jesus, Filho de Deus, que encarnará no seu amor toda a solicitude amorosa de Deus pelo Povo escolhido.

4. Jesus assume claramente ser o Pastor do Povo de Deus em nome de Deus seu Pai. O amor salvífico de Deus Pai é uma exigência constante no amor de Jesus Cristo, Filho de Deus feito Homem. Jesus sabe-se enviado às ovelhas perdidas da Casa de Israel (cf. Lc. 15,24); compadece-se perante a multidão porque esta parece um rebanho sem pastor (cf. Mc. 6,34); vai à procura da ovelha perdida e trá-la ao colo (cf. Lc. 15,4-10). São textos que exprimem uma grande ternura, que suscitam a confiança de quem se sente amado, de que, aliás, estavam já repassados alguns Salmos (cf. Sl. 23,1-4; Sl. 95,7).

O Evangelista São João resume todo o amor salvífico de Jesus na imagem do Bom Pastor (cf. Jo. 10,1-18). Este texto é sequência directa de Ezequiel 34. Como Deus em Ezequiel, Jesus afirma: “Eu sou o Bom Pastor. O Bom Pastor dá a vida pelas suas ovelhas” (v.11). Dar a vida exprimirá a atitude sacerdotal de Jesus. Para São João é claro: Cristo é Sacerdote, sendo o Bom Pastor.

Neste texto de São João, resume-se toda a centralidade de Jesus Cristo em relação ao Povo escolhido, o Povo que Deus quer, aqui significado com a imagem do rebanho. O que dá qualidade ao rebanho é a atitude do Pastor. Sublinhemos, em chave sacerdotal, a missão de Cristo em relação à Igreja, novo Povo de Deus:

Antes de mais, Cristo não se apresenta apenas como Pastor. Ele é o redil e a porta do redil. É por Ele, a porta, que se entra no rebanho; ninguém pertence à Igreja sem pertencer a Jesus Cristo. Ele próprio é o redil: é n’Ele que as ovelhas se reúnem, se abrigam, descansam, se sentem protegidas. É Ele que congrega a Igreja; só em união a Ele a Igreja faz a experiência da unidade e sente a segurança do rebanho protegido e reunido.

Sendo o redil e a porta do redil, Ele não se vai embora, deixando o rebanho sozinho. Ele é o Pastor vigilante, que protege e defende: Ele quer que as suas ovelhas tenham vida, uma vida em abundância que revela, em cada momento, a surpresa da fecundidade do Espírito. Ele sabe que só n’Ele as ovelhas podem ter essa vida, porque Ele é a vida. Ele deseja tanto essa comunicação da vida, que está disposto a dar a Sua própria vida por elas (v.10-11). É da sua oferta sacerdotal que jorrará em abundância essa vida; a sua Páscoa será uma fonte de água viva.

Cristo conhece as suas ovelhas e elas conhecem-n’O. Na Igreja, há uma nova intimidade entre Cristo, Bom Pastor e cada membro do rebanho, participação na intimidade que há entre Ele e o Pai. Com Cristo Pastor do rebanho cessaram os anonimatos. A Igreja é um mistério de comunhão e de amor (v.14-15).

Mas o seu amor salvífico é por todos os homens. O seu rebanho não está fechado; a porta do redil continua aberta. Ele vai à procura daqueles que ainda estão fora, porque pensa, e deseja-o, naquele dia em que haverá um único rebanho, de que Ele é o único Pastor (v.16). A universalidade da salvação, o fruto mais precioso do sacrifício pascal de Cristo, é o horizonte definitivo do seu amor de Pastor, que é irradiação do amor trinitário, do amor com que o Pai O ama e nos ama a nós no Seu Filho (v.17). É na sua qualidade de Sumo Sacerdote do tempo definitivo que se manifesta a grandeza do seu amor de Pastor. São Pedro chama a Cristo Pastor e Bispo das nossas almas (cf. 1Pet. 2,25), convidando-nos a fazer a unidade pastoral entre o sacerdócio de Cristo e a sua bondade de Bom Pastor.

Dar-vos-ei Pastores

5. Esta promessa tinha-a feito Deus já ao Povo do Antigo Testamento. Vimos que a infidelidade desses pastores que deu ao seu Povo levou-O a rejeitá-los, assumindo Ele pessoalmente a condução do seu Povo. Feito isso de forma perfeita e definitiva em Jesus Cristo, o Senhor volta a dar pastores ao seu Povo, sem deixar de ser Ele o Bom Pastor, o único Pastor. Os pastores da era cristã não substituem Jesus Cristo, são sacramentos de Jesus Cristo, o que se realiza de forma total no sacerdócio apostólico. Quando Jesus escolhe doze Apóstolos escolhe pastores para o seu Povo.

É a certeza de Paulo na Carta aos Efésios: “Ele deu alguns como Apóstolos, outros como profetas, outros como evangelistas, outros como pastores e doutores para preparar os santos para o ministério, para a construção do Corpo de Cristo, até que cheguem todos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus” (Efs. 4,11-13).

Nesta lista da Carta aos Efésios, estes pastores que tornam presente Cristo Pastor são, sobretudo os Apóstolos e aqueles que eles fizeram participantes do seu ministério apostólico. A esses que o Senhor escolheu e enviou pede-se que se identifiquem com Cristo, fazendo sentir, continuamente, ao Povo de Deus, pela sua presença e acção, que é amado por Jesus Cristo, o Bom Pastor.

Esta convergência entre o ministério sacerdotal e a solicitude do Bom Pastor, inspira e sugere o dinamismo da acção pastoral. É já a perspectiva do Apóstolo Pedro:

“Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, velando por ele, não constrangidos mas de boa vontade, segundo Deus, não por ganância mas por dedicação, nem como dominadores sobre aqueles que vos foram confiados mas tornando-vos modelos do rebanho. E quando aparecer o supremo Pastor, recebereis a coroa eterna de glória” (1Pe 5,2-4)

6. Esta perspectiva do Pastor pode inspirar toda a renovação pastoral na forma de exercer, actualmente, o ministério sacerdotal. Essa pode transformar-se na grande interpelação do Ano Sacerdotal: fazer com que os sacerdotes sejam, em tudo e sobretudo, pastores do Povo que lhes foi confiado. Depois de termos lido e meditado estes textos da Sagrada Escritura, podemos arriscar enumerando as atitudes actuais de um sacerdote bom pastor, até para as transformarmos em prece, quando rezamos pelos nossos sacerdotes:

* Um bom pastor é alguém que guia, que tem a coragem de indicar, à luz da fé, o caminho a seguir. Sabe dizer a verdade com amor;

* Um bom pastor é um amigo da vida. Ele deve abrir para os outros as fontes da vida eterna;

* Um bom pastor é aquele que não fica prisioneiro daqueles que o rodeiam sempre, mas vai à procura dos que se desviaram ou nunca vieram;

* Um bom pastor é aquele que, sem desprezar ninguém, dá um lugar especial no seu coração aos pobres, aos pequeninos, aos mais fracos;

* Um bom pastor é alguém que vigia, está atento, avisa dos perigos;

* Um bom pastor não se apascenta a si mesmo, não usa o seu ministério para proveito próprio;

* Um bom pastor conhece as suas ovelhas. “O contacto pessoal é o Alfa e o Ómega da cura das almas e não pode ser substituído por nada, nem sequer por cartas paroquiais ou diocesanas, escritas da maneira mais cordial” (1).

É sobretudo quando celebramos a Eucaristia e damos actualidade à acção sacerdotal de Cristo, que somos os pastores que Ele deseja para o seu Povo. Isso exige que, na nossa vida, nos tornemos “modelos do rebanho”.

Sé Patriarcal, 21 de Março de 2010

JOSÉ, Cardeal-Patriarca

NOTA:

1 – cf. Walter Kasper, “Servitori della Gioia”, p. 92

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