A Escritura e a Igreja 1. A Escritura, conjunto de livros considerados pela Igreja como inspirados, isto é, expressão em linguagem humana da Palavra eterna de Deus, sob acção do Espírito Santo, é parte importante, embora não exclusiva, da Palavra de Deus dirigida aos homens e escutada pela Igreja. Não é expressão única dessa Palavra eterna, porque Deus pode continuar a revelar-Se pessoalmente ao coração dos crentes; a Tradição viva da fé da Igreja, também ela conduzida pelo Espírito, é manifestação da Palavra de Deus, como o é o Magistério da Igreja, enviada por Deus a anunciar a Palavra e também ela conduzida pelo Espírito. Entre estas várias expressões da Palavra eterna não pode haver contradições, pois todas elas são expressão viva e actual em cada tempo, de Jesus Cristo, a Palavra encarnada. Sob todas estas formas, Deus revela-Se ao Seu Povo. O Povo de Deus, com quem Ele fez Aliança, é o verdadeiro interlocutor de Deus para O escutar e acolher a Sua Palavra. A Igreja, Povo do Senhor, é o critério decisivo da verdade que Deus comunica ao homem, ela é infalível nesse processo de escuta da Palavra. Ouçamos, a este propósito, o Concílio Vaticano II: “O conjunto dos fiéis, tendo a unção que vem do Espírito Santo, não pode enganar-se na fé; este dom particular do conjunto dos fiéis, manifesta-se através do sentido sobrenatural da fé, que é aquele de todo o Povo de Deus, quando, desde os Bispos aos últimos dos fiéis leigos, presta às verdades que dizem respeito à fé e aos costumes um consentimento universal” (1). É, pois, importante considerar, de forma clara, a relação da Igreja com a Escritura e desta com outras expressões da Palavra de Deus. Uma equação desajustada da relação da Igreja com a Escritura, teve consequências graves na compreensão da própria Igreja, enquanto experiência comunitária de fé de um povo crente. Foi o caso da chamada “reforma protestante” que, com o seu princípio da “sola scriptura – sola fides”, relativizou o necessário enquadramento eclesial da Escritura e comprometeu a realidade mesma da “Fé da Igreja”, que prevalece sobre a fé individual de cada um. O Povo de Deus é o verdadeiro autor da Escritura 2. Deus quando Se revela, fala ao Seu Povo. Deus revela-Se aos profetas como maneira de se dirigir ao Seu Povo. O profeta a quem Deus se revelou é sempre enviado a comunicar ao Povo, com as suas palavras humanas, tudo e só o que Deus lhe revelou. Esse é, aliás, o critério para distinguir os verdadeiros dos falsos profetas. Estes últimos não foram enviados e comunicam apenas a sua palavra humana e não a Palavra de Deus. Os profetas são o que de mais vivo e autêntico existe no Povo de Deus. Eles são fiéis à Aliança, são profundamente crentes, tomaram a sério na sua vida a Palavra de Deus comunicada a Abraão, Isaac e Jacob, que se tornou tradição viva e lhes preparou o coração para escutar o que, em cada momento da história, Deus tem a dizer ao Seu Povo. O Papa Bento XVI afirma, de modo claro, que o Povo de Deus é o verdadeiro autor da Escritura: “Os diversos livros da Sagrada Escritura – tal como esta no seu conjunto – não são simples literatura. A Escritura cresce no e a partir do sujeito vivo que é o Povo de Deus em caminho, e vive nele. Poder-se-ia dizer que os livros da Escritura remetem para três sujeitos que interagem uns com os outros. Primeiro, há o autor individual ou o grupo de autores, a quem devemos um livro da Escritura. No entanto estes autores não são escritores autónomos no sentido moderno do termo, mas pertencem ao sujeito comum «povo de Deus»: a partir dele falam e a ele se dirigem, de tal modo que o povo é o verdadeiro e mais profundo «autor» das Escrituras. Mais: este povo não se vê auto-suficiente, mas sabe que é conduzido e interpelado pelo próprio Deus, que no fundo fala através dos homens e da sua humanidade. A relação com o sujeito «povo de Deus» é vital para a Escritura. Por um lado, este livro – a Escritura – é o critério que vem de Deus e a força que indica a estrada ao povo, mas, por outro, a Escritura vive só neste povo, que na Escritura se transcende a si mesmo e assim – na profundeza definitiva em virtude da Palavra feita carne – se torna precisamente povo de Deus. O povo de Deus – a Igreja – é o sujeito vivo da Escritura; nele as palavras da Bíblia são uma presença permanente. Naturalmente, porém, requer-se que este povo se receba a si mesmo de Deus, em última instância de Cristo encarnado, e por Ele se deixe regular, conduzir e guiar” (2). O Santo Padre afirma que a relação com o sujeito “Povo de Deus” é vital para a Escritura. Sem essa relação os livros da Bíblia seriam apenas literatura religiosa, sem a actualidade viva de um diálogo de Deus com o Seu Povo. Mas eu acrescentaria que também é decisivo para a Igreja essa relação com a Escritura, expressão perene da Palavra, que é expressa e escutada no seio de um povo crente. Quando a escritura é lida e interpretada com critérios históricos e analíticos, ou privilegiando a leitura subjectiva, é a Igreja que é ferida na sua identidade profunda de um povo que tem uma fé comum, que é conduzido pela mesma Palavra. Explicitaremos, a seguir, algumas concretizações desta relação da Escritura com a Igreja, Povo de Deus, seu verdadeiro autor. A identificação dos livros inspirados 3. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, ao lado dos livros que hoje integram a Sagrada Escritura, surgiram outros textos. São particularmente numerosos os do Novo Testamento, sobretudo Evangelhos e Actos dos Apóstolos. Os quatro evangelistas que conhecemos não satisfaziam a curiosidade dos fiéis acerca da vida de Jesus e de Nossa Senhora, sobretudo no período mais longo da Sua vida, o período discreto em Nazaré até ao início da vida pública. Dá-se o mesmo com os vários Actos dos Apóstolos que narravam factos pormenorizados da vida dos Apóstolos na Igreja nascente. O que dizem não é, necessariamente, falso; servem-se de tradições, já transformadas pela lenda, e alimentam a curiosidade piedosa dos fiéis. Estes escritos, em paralelo com os textos inspirados, geravam uma certa confusão. Só a Igreja podia fazer o discernimento entre estes textos e os verdadeiramente inspirados e que, por isso, comunicam a verdadeira Palavra de Deus. Os outros são livros religiosos, que alimentam a piedade, mas não têm a força sacramental da Palavra de Deus. Este discernimento fê-lo a Igreja ao longo dos séculos e confirmou-se no Concílio de Trento com a publicação da lista (cânone) dos livros que a Igreja, na sua longa experiência de fé, considerou inspirados. Esses chamaram-se livros canónicos, isto é, que pertencem ao tal cânone; os que ficaram de fora chamaram-lhes “apócrifos”. Foram vários os critérios deste discernimento, sendo o principal a recepção, isto é, o modo como eram acolhidos nas comunidades crentes. Foram estas que, ao ritmo da fé, foram identificando os verdadeiros livros inspirados. É significativo verificar que aqueles textos apócrifos se mantiveram em grupos heréticos que pulularam nos primeiros séculos da Igreja. Mas só o Magistério da Igreja, na sua mais solene expressão que é um Concílio, podia assegurar ao Povo de Deus quais os livros verdadeiramente inspirados e que constituem a Sagrada Escritura. No nosso tempo, fruto da historiografia e do estudo dos próprios textos bíblicos, há uma curiosidade acrescida por esses textos. Ainda recentemente um tal “evangelho de Judas” encheu páginas de jornais e programas de televisão. Há tendência para os considerar em paralelo com os verdadeiros Evangelhos ou mesmo de se lhes contrapor. É uma curiosidade justa se for apenas cultural. Mas continua a ser a Igreja que, na Liturgia e no Magistério, indica ao Povo de Deus quais são os livros que, porque inspirados, nos comunicam a Palavra de Deus. A interpretação autêntica da Sagrada Escritura 4. Foi, em todos os tempos, um aspecto decisivo da escuta da Palavra de Deus, revelada nos textos bíblicos. É, hoje, um problema real numa pastoral centrada na escuta do que Deus tem para nos dizer. É hoje frequente que a teoria de um exegeta, uma análise histórico-crítica dos acontecimentos referidos na Bíblia, sejam acolhidos pelos cristãos como decisivos na interpretação da Escritura. Se acrescentarmos a isto a natural tendência de ler um texto à sua maneira, lendo nele, não apenas o que o seu autor quis transmitir, mas o que cada um acha que o texto diz, numa leitura subjectiva, tomamos consciência de como uma interpretação objectiva é importante para acolher a verdadeira Palavra de Deus. Em que consiste a interpretação? Trata-se, simplesmente, de chegar à mensagem transmitida, de perceber e acolher o que o autor sagrado nos quis dizer, sabendo que esses autores, inspirados pelo Espírito Santo, nos transmitiram, por palavras humanas, o que Deus quer dizer ao Seu Povo. Como já afirmámos, na Sagrada Escritura encontramos a primeira manifestação do mistério da Encarnação. Na Sua condescendência amorosa, Deus não hesitou em manifestar-nos a transcendência do Seu amor através da linguagem humana. Como diz o Concílio, “as palavras de Deus, passando pelas línguas humanas, tomaram a semelhança da linguagem dos homens, do mesmo modo que outrora o Verbo eterno do Pai, tendo revestido a enfermidade da nossa carne, tornou-se semelhante aos homens” (3). E São Paulo resume maravilhosamente este mistério da condescendência divina, por nosso amor: “Ele, que era de condição divina, não guardou ciosamente a situação que O igualava a Deus, mas humilhou-Se a Si Mesmo, tomando a situação de escravo, tornando-Se semelhante aos homens” (Fil. 2,6-7). Este facto de, na Escritura, o autor sagrado não comunicar o que ele quer dizer, mas o que Deus quer dizer ao Seu Povo e o enviou a proclamar, adensa a tarefa da interpretação: ela é movida pela fé, pelo desejo de captar o que Deus nos diz, através da Palavra humana do autor sagrado. Ouçamos de novo o Concílio: “Uma vez que Deus, na Sagrada Escritura, falou através de homens e à maneira humana, é preciso que o intérprete da Sagrada Escritura, para ver claramente o que o próprio Deus nos quis comunicar, procure, com atenção, o que os autores sagrados quiseram realmente dizer e o que Deus quis exprimir através das Suas palavras” (4). O dinamismo que preside a toda a interpretação é o desejo de escutar o Senhor, de perceber as suas autênticas palavras. Quem não estiver devorado por este desejo de acolher a Palavra eterna de Deus, cai facilmente em simples interpretações humanas da Escritura, mesmo revestidas do carácter científico da exegese. 5. A roupagem humana da Palavra de Deus torna, por vezes, complexa a interpretação do texto sagrado. O autor escreveu num tempo concreto e num determinado contexto histórico, inserido num quadro cultural determinado, usou uma língua, o hebraico ou o grego, exprimiu-se num género literário pessoal, mas inserido na arte de comunicar própria daquele tempo; a própria relação do texto escrito com tradições orais em que se insere e a própria transmissão do texto desde a sua composição primeira até aos nossos dias, são elementos a exigirem uma interpretação cuidada. O estudo científico destes dados é, não só legítimo, mas necessário. Contribuem para a interpretação, mas as suas conclusões não devem considerar-se a interpretação autêntica. Esta só a Igreja, Povo de Deus, a quem é dirigida a Palavra do Senhor, a pode fazer. Se, como afirma Bento XVI, o Povo de Deus, conduzido pelo Espírito é o verdadeiro autor da Escritura, só ele pode ser o autor da sua autêntica leitura. Esta interpretação é expressão comunitária e não individual. O Espírito Santo é o elemento contínuo que acompanha o texto sagrado, desde a sua inspiração ao autor sagrado, passando pela sua leitura contínua, no quadro comunitário da fé, ao longo dos séculos, até ao momento presente. É por isso que a leitura dos textos bíblicos, em cada momento concreto da história, não se limita ao texto escrito; o seu sentido é percebido à luz dessa Tradição viva, e percebendo a analogia da fé, isto é, captando a unidade e a harmonia da fé da Igreja, leva-nos a não optar por uma leitura que entre em contradição com outros textos da Escritura e com a fé da Igreja. O mesmo Espírito Santo que inspirou o autor sagrado, é o mesmo que acompanha a Igreja na recepção da Palavra de Deus. Nesta relação da Igreja com a Palavra revelada, o mesmo Espírito enriqueceu a Igreja e dinamismos e estruturas que lhe permitem nunca se afastar da Verdade. Deus que lhe quer falar, garante ao Seu povo que O possa ouvir sem confusão. O ensinamento dos Apóstolos e seus sucessores, o autêntico Magistério de uma Igreja que tem a garantia da verdade, é o último critério decisivo de uma interpretação autêntica. Ouçamos mais uma vez o ensinamento do Concílio: “O encargo de interpretar de modo autêntico a Palavra de Deus, escrita ou transmitida, foi confiado só ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo. Contudo este Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas ao seu serviço, ensinando só o que foi transmitido, uma vez que, por mandato de Deus, com a assistência do Espírito Santo, escuta a Palavra com amor, guarda-a santamente, expõe-na com fidelidade, e vai buscar a este único depósito da fé tudo o que propõe para ser acreditado como Palavra de Deus” (5). O facto de o Magistério ser a última instância da interpretação da Escritura, não é uma questão de poder, mas de serviço. Pastores do Povo do Senhor, sucessores dos Apóstolos escolhidos e enviados por Jesus, os seus membros representam a aventura de uma comunidade de fé atraída pelo rosto de Deus e ansiosa por ouvir a Sua Palavra. São os primeiros a escutar a Palavra, perscrutam-na ao mesmo tempo que escutam o povo crente, acreditam que são conduzidos pelo Espírito, e sabem-se enviados por Cristo. Eles sabem que só a profunda identificação com Cristo, de Quem são ministros, lhes permite prestar esse serviço à Igreja como intérpretes autênticos de toda a Palavra revelada. É por isso que fazê-lo é exigência da sua fidelidade, a mesma que devem a Jesus Cristo Seu Senhor. Ouvir a Palavra em Igreja 6. Por tudo quanto acabo de dizer, a escuta da Palavra de Deus deve fazer-se em Igreja, é manifestação de comunhão e da obediência da fé, expressão da fidelidade do Povo de Deus. Para escutar assim a Palavra, é preciso ter bem enraizada, na inteligência e no coração, a certeza de que a Igreja é Mestra da fé, que pela Sua Palavra, o Espírito Santo a conduz na senda da verdade e da comunhão com Deus. Na leitura pessoal ou em grupo, na leitura de teorias exegético-teológicos, numa época marcada pela valorização da busca individual da verdade, a tentação de uma leitura pessoal e subjectiva da Escritura é real, reduzindo o Magistério ao nível da opinião. Em todos os tempos, os cristãos nunca estiveram isentos desta tentação. Ouçamos a Palavra em Igreja, escutemos humildemente o seu ensinamento, pois só ela garante que todos os cristãos escutem a Escritura da mesma maneira. Como nos sacramentos, ela garante sempre a acção eficaz de Deus na interpretação da Escritura, garante que a leiamos como Palavra do Senhor. Na próxima Catequese veremos que escutar a Palavra em Igreja, significa escutá-la em atitude orante, isto é, na busca de uma intimidade amorosa com Deus. Sé Patriarcal, 2 de Março de 2008 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca NOTAS: (1) Lumen Gentium, nº 12 (2) Bento XVI, “Jesus de Nazaré”, pp. 21-22 (3) Dei Verbum, nº 13 (4) Ibidem, nº 12 (5) Ibidem, nº 10