Catequese do Cardeal-Patriarca no 3.º Domingo da Quaresma

O Sacerdócio Apostólico

Introdução

Como vimos na Catequese anterior, sem ser designado como Sacerdote, nem pertencer à classe sacerdotal do sacerdócio levítico, Jesus, em tudo o que diz e o que faz, sobretudo no sacrifício da sua vida, exprime uma profunda atitude sacerdotal e exerce, de maneira perfeita, a função sacerdotal. Distancia-se do sacerdócio oficial e assume, para Si Mesmo, a perfeição do sacerdócio escatológico, significado na figura do Filho do Homem Celeste. No entanto, atribui a esse Filho do Homem a atitude sacrificial do Servo de Yahwé. Na sua ressurreição, entra no Santuário Celeste, Sumo Sacerdote definitivo, onde presidirá, por toda a eternidade, à liturgia de louvor, celebrada pela assembleia dos bem-aventurados.

Na ressurreição de Cristo, o tempo definitivo começou, a Jerusalém terrena deu lugar à Jerusalém Celeste. Uma pergunta fica no coração dos discípulos, à qual Jesus não respondeu explicitamente: o que acontece à humanidade que ainda vive no tempo, em cuja história Deus sempre introduziu o dinamismo da salvação e que Cristo redimiu com o Seu sangue? Duas respostas brotam espontaneamente da consciência da centralidade e do carácter definitivo do sacerdócio de Jesus Cristo. A primeira vai na linha de considerar que, com a ressurreição de Cristo e a sua ascensão aos Céus, a história humana chegou ao fim e o fim dos tempos está próximo. As primeiras comunidades cristãs acreditavam que a última manifestação gloriosa de Cristo estava próxima, porventura no espaço dessa geração. Desejavam-na ardentemente, e a prece “maranhatha” (vem Senhor Jesus), concluía toda a oração. Esta perspectiva não foi capaz de imaginar um tempo histórico longo, depois de Cristo, completamente centrado n’Ele, em unidade profunda com a assembleia dos bem-aventurados.

Mas vai nessa linha a segunda tentativa de resposta. Sobretudo o Evangelista Lucas e a visão que à volta dele se forma e onde se integram alguns textos de São Paulo, percebe esse “tempo intermédio” como um tempo longo, cujos limites só Deus conhece. Nele, os discípulos de Cristo, que formam um só com Ele, são o novo Povo de Deus e realizam na história a fecundidade salvífica de Cristo. Eles são a Igreja do Senhor, de que Ele é o único sacerdote e o Bom Pastor. Esta Igreja, esposa do Cordeiro, tem dois rostos: a Igreja triunfante, assembleia dos bem-aventurados, a que Cristo preside como Pontífice desse santuário definitivo; e a Igreja militante, ainda peregrina no tempo, unida à Igreja triunfante sobretudo no louvor de Deus. Também a ela preside o único sacerdote, Cristo glorioso. Não há um sacerdócio terreno, intermédio, transitório; há um único sacerdote, Cristo glorioso.

Mas como preside Cristo glorioso à Liturgia da Igreja, peregrina neste mundo? Através daqueles que Ele escolheu, que fez participantes do seu sacerdócio e que, em seu nome, em vez da Sua Pessoa (in personna Christi), exercem a sua função sacerdotal, para bem do seu Povo ainda militante neste mundo.

Escolheu doze Apóstolos (cf. Lc. 6,12-13)

1. Escolheu doze, aos quais deu o nome de Apóstolos. Esta atitude de Jesus mostra-nos que Ele tem consciência de um novo começo do Povo de Deus e da sua nova estrutura. Não podemos deixar de pensar naquele momento da História de Israel em que o Povo é dividido em 12 tribos, cada uma com o nome de um dos 12 filhos de Jacob (cf. Num. 20,19ss). Esta divisão em 12 tribos será a estrutura básica da organização do Povo do Antigo Testamento, presente em tudo, desde a ocupação da terra aquando da conquista da Palestina, até às funções comuns a toda a comunidade. Jesus escolhe 12 Apóstolos. Trata-se da nova estrutura de um novo Povo, o da Aliança definitiva, centrado em Cristo, seu Rei, seu Pastor, seu Mestre, seu Sacerdote e Pontífice. Esta nova estrutura do novo Povo é definitiva, permanecerá para a eternidade. O Apocalipse, falando da Jerusalém Celeste, descreve-a como uma cidade assente sobre 12 colunas, cada uma delas tendo gravado o nome de um dos doze Apóstolos do Cordeiro (cf. Apc. 21,14).

Estes doze foram uma escolha pessoal de Jesus. “Chamou a Si aqueles que Ele queria” (Mc. 3,13). Jesus fará questão em recordar-lhes sempre que eles foram escolhidos: “Não fostes vós que Me escolhestes, fui Eu que vos escolhi e vos constituí para virdes e dardes muito fruto” (Jo. 15,16). Esta escolha é um chamamento que os constitui Apóstolos. Não é Apóstolo quem quer, mas aqueles que o Senhor quer e chama. Ao longo dos séculos este é um factor decisivo, a garantir que é Cristo quem conduz a Igreja.

Chamou-lhes Apóstolos, isto é, enviados. São Marcos resume bem o que pretendia Cristo com este chamamento: “Depois subiu a montanha e chamou a Si aqueles que Ele queria. Eles vieram a Ele e instituiu doze, para serem seus companheiros e para os enviar a pregar, com o poder de expulsar os demónios” (Mc. 3,13-15). Duas manifestações da intenção de Cristo ao chamar os doze: estarem com Ele, e poder enviá-los, com o mesmo poder que Ele tinha. Hoje, de expulsar os demónios, amanhã de celebrarem a Sua Páscoa.

Jesus prepara os Apóstolos e comunica-lhes o seu próprio poder

2. Ao longo da sua vida pública Jesus, vai-os fazendo participar no seu ministério: envia-os a anunciar o Reino de Deus, preparando-os para os tempos da Igreja em que eles tornarão presente Cristo, na totalidade do seu poder sacerdotal.

Para compreendermos a relação da missão dos Apóstolos com a missão de Jesus, ajuda-nos verificar que já no Antigo Testamento há uma instituição chamada Shaliah, que parte do seguinte princípio: o que é enviado tem o mesmo poder daquele que envia. É mais do que um delegado ou um representante. É por isso que Jesus diz aos Apóstolos: “Quem vos escuta, escuta-me a Mim; quem vos despreza, despreza-me a Mim” (Lc. 10,16). “Como o Pai Me enviou, também eu vos envio a vós” (Jo. 20,21).

Depois da ressurreição de Jesus, os Apóstolos têm consciência de que o encontro com o ressuscitado é a última confirmação da sua missão apostólica. Eles são testemunhas da ressurreição, e pelo Espírito Santo foram-lhe conferidos os poderes do ressuscitado. A primeira Carta de Paulo aos Coríntios é testemunho claro desta convicção. Ele é o último Apóstolo porque foi o último a encontrar-se com Cristo ressuscitado (cf. 1Cor. 15,3ss).

Na sua Páscoa, Jesus explicita-lhes os principais poderes para estarem plenamente, em nome d’Ele, na Igreja. Na Ceia Pascal, dá ao seu sacrifício pessoal, que se aproxima, a qualidade do sacrifício definitivo da nova Aliança, que Ele continuará a oferecer na Igreja, através deles. “Fazei isto em Minha memória” (Lc. 22,19). E já depois da ressurreição, ao ritmo do Espírito, explicita-lhes outro poder que só Ele tem, como Filho de Deus: “A quem perdoardes os pecados, ser-lhe-ão perdoados” (Jo. 20,22ss).

Os 12 Apóstolos garantem a continuidade da salvação e da sua actualidade em cada tempo, até ao fim. Já vimos que o número de 12 sugere a continuidade com o Antigo Testamento. Eles garantem, sobretudo, a continuidade entre a missão terrena de Jesus e a Sua ressurreição em que se inaugura o tempo definitivo. Este é o critério para a escolha de Matias, para preencher o lugar de Judas: alguém que tenha acompanhado Jesus desde o início e que tenha sido testemunha da sua ressurreição (Act. 1,22ss).

A explicitação da missão dos Apóstolos fica completa, com as palavras que Jesus lhes dirige antes da Ascensão:

“Os onze discípulos foram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes tinha indicado, e, vendo-o, O adoraram; mas houve alguns que tinham duvidado. Aproximou-se-lhes Jesus e falou-lhes nestes termos: «foi-Me dado todo o poder no Céu e na Terra. Ide, pois, ensinai todas as gentes, baptizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar tudo o que vos mandei. E eis que Eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo»” (Mt. 28,16-20)

O horizonte da missão é universal: destina-se aos homens de todos os tempos e até ao fim dos tempos. Vê-se que Jesus queria que eles escolhessem sucessores (1).

Como aconteceu com o próprio Jesus, o Novo Testamento não aplica aos 12 Apóstolos a linguagem sacerdotal. O assento é posto na continuidade da missão de Jesus. Nunca eles se consideraram membros da classe sacerdotal. Mesmo aos seus sucessores, aos quais, pela imposição das mãos, os Apóstolos comunicam a missão, São Paulo chama-lhes, de preferência “anciãos” (presbíteros) ou “vigilantes” (bispos). São Pedro e São Paulo, nos seus escritos, só chamam sacerdotal a toda a Igreja, novo Povo Sacerdotal.

Os Sucessores dos Apóstolos

3. O sacerdócio apostólico é instituído por Jesus para garantir o exercício da sua função sacerdotal de único e definitivo sacerdote em todo o “tempo intermédio”, o tempo da Igreja, desde a ressurreição de Cristo até ao fim dos tempos. Só a Igreja garante, no seio da história humana, enquanto esta durar, a força salvífica da Páscoa de Cristo. Essa é a razão da infusão do Espírito Santo, o Espírito de Cristo ressuscitado, aos Apóstolos e a todos os membros da Igreja. Por isso o sacerdócio apostólico, plenitude do sacerdócio de Cristo comunicado aos doze Apóstolos é, por natureza, para durar até ao fim dos tempos. Esse é o sentido da missão universal confirmada por Jesus aos doze Apóstolos, no momento da Ascensão aos Céus (cf. Mt. 28,16-20). Há, pois, necessariamente, uma sucessão apostólica. Os Apóstolos assumem isso sem hesitação: têm de comunicar a outros o seu ministério sacerdotal (2).

Estes sucessores são os Bispos. Não é cada Apóstolo que tem sucessores multiplicados através dos tempos, mas é o colégio dos doze Apóstolos que é continuado no “Colégio dos Bispos”. O primeiro efeito da ordenação episcopal é agregar uma pessoa concreta a esse Colégio dos Bispos, que garante a sucessão do sacerdócio do colégio apostólico. A missão universal, referida no texto de São Mateus já citado, é a primeira explicitação da missão de cada Bispo, porque é a missão de todo o colégio. Não é o número dos doze que aumenta; é a missão dos doze que continua, ao ritmo do crescimento da Igreja e das exigências da missão universal.

Os critérios para a escolha destes membros do Colégio dos Bispos são os mesmos de Jesus ao escolher os doze Apóstolos:

ü   Os que Ele escolhe e chama;

ü   A quem confere todos os seus poderes;

ü   A quem consagra para a missão, através da acção do Espírito Santo, garantindo a intimidade com Ele exigida aos primeiros doze;

ü   Que sejam testemunhas fiéis da Tradição e da fé da Igreja, desde Jesus até ao presente.

A sucessão apostólica exige que entre cada Bispo, membro do Colégio Episcopal, e os doze Apóstolos, haja uma cadeia ininterrupta. Se essa cadeia se quebrar, a ordenação não é válida. Nos primeiros séculos as Igrejas apresentavam, como garantia da sua autenticidade, a lista ininterrupta da sucessão apostólica dos seus Bispos. É o caso de Tertuliano e de Santo Ireneu de Lião.

A interrupção da sucessão apostólica é a grande fragilidade das Igrejas reformadas. A dúvida existe, mesmo na Igreja Anglicana.

Por outro lado, desde que esteja garantida a sucessão, a Igreja reconhece como Bispos validamente ordenados mesmo Bispos de Igrejas que se separaram da unidade da Igreja Católica: é o caso das Igrejas ortodoxas e dos “velhos católicos”, e hoje, dos Bispos que foram ordenados por Mons. Lefebvre.

Sacerdócio Apostólico na Igreja, comunhão de amor

4. O sacerdócio de Cristo, participado pelos Apóstolos, está ao serviço da salvação. E esta é uma experiência de comunhão. Em Cristo, a humanidade pecadora, é reintroduzida na comunhão de amor que Deus é, Trindade Santíssima. Os que foram resgatados para o amor, são o novo Povo de Deus, o Povo da nova Aliança que é chamado a ser uma experiência de comunhão. É por isso que o mandamento do amor é chamado o mandamento novo: “Dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” (Jo. 13,34).

Os 12 Apóstolos são concebidos pelo Senhor como uma comunhão apostólica. Eles são um colégio, um “eu colectivo” e é, enquanto tal, que recebem a missão e são a base sólida da Igreja. Pedro é constituído como a cabeça deste colégio, a garantia da unidade na caridade.

“Ora também eu te digo: Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus, e o que ligares na terra ficará ligado nos Céus; e o que desligares na terra ficará desligado nos Céus” (Mt. 16,18-19)

“Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra, será ligado no Céu; e tudo o que desligardes na terra será desligado no Céu” (Mt. 18,18)

Poder e comunhão de amor estão interligados na missão apostólica. Desde o primeiro chamamento esses aspectos estão ligados: estar com Jesus e ser enviado. A Pedro, Jesus acentua a prioridade da relação de amor com Ele: “Depois de comerem, pergunta Jesus a Simão Pedro: «Simão, filho de João, amas-Me tu mais do que estes?». Responde-lhe ele: «Sim, Senhor. Tu sabes que te amo!» Diz-lhe Jesus: «Apascenta os meus cordeiros». Volta a perguntar-lhe pela segunda vez: «Simão, filho de João, tu amas-Me?» »Sim, Senhor», responde ele, «Tu sabes que te amo». Diz-lhe Jesus: «Apascenta as minhas ovelhas». Pergunta-lhe pela terceira vez: «Simão, filho de João, tu amas-Me?» entristeceu-se Pedro por lhe ter perguntado pela terceira vez: «tu amas-Me?», e respondeu-lhe: «Senhor, Tu sabes tudo; tu sabes que te amo»” (Jo. 21,15-17)

Esta exigência de comunhão é a força de unidade do Colégio Episcopal, dos Bispos, sucessores dos Apóstolos, na comunhão com Cristo e na universalidade da missão (3).

Os Presbíteros, cooperadores da Ordem Episcopal

5. Desde a época apostólica, os Apóstolos e os seus sucessores, impuseram as mãos a cooperadores, que exercem, em seu nome, o seu ministério. São Paulo chama-lhes presbíteros (anciãos), hoje chamamos “padres”. Fazem com o Bispo de quem são cooperadores um colégio, com as mesmas exigências de comunhão e de missão do Colégio dos Bispos, sucessores dos Apóstolos. Eles são um Presbitério (4).

O seu poder de anúncio da Palavra e de celebrar os sacramentos é o do Bispo. Podem fazer tudo o que o Bispo faz e os envia a fazer. Só não podem impor as mãos, comunicando esse ministério a outros. Eles são, no seio do Povo de Deus, a presença da graça do sacerdócio apostólico, e porque estão permanentemente em todos os lugares onde o Bispo não pode estar sempre, eles exprimem a proximidade do sacerdócio apostólico no meio do Povo de Deus.

6. Este “presbiterium” é o verdadeiro responsável por garantir a todo o Povo a graça do sacerdócio apostólico. Isso está claro na definição que o Concílio dá de Diocese: “Uma diocese é uma porção do Povo de Deus confiada a um Bispo para que, com a ajuda do seu presbitério, ele seja o seu pastor. Assim a diocese, ligada ao seu pastor e por ele reunida, no Espírito Santo, graças ao Evangelho e à Eucaristia, constitui uma Igreja particular, na qual está verdadeiramente presente e actuante a Igreja de Cristo, una, santa, católica e apostólica” (5). Portanto, o pastor de uma diocese é o Bispo com o seu presbitério. É este colégio que é responsável de garantir a toda a diocese a graça do sacerdócio apostólico.

Esta definição de Diocese diz também que, no ministério do sacerdócio apostólico, se vence a dicotomia entre palavra profética e celebração do culto, porque Cristo é o único Profeta e Sacerdote. A Palavra e o Sacrifício, que Cristo reconduziu à unidade na Sua Pessoa, são elementos constitutivos da Liturgia da Igreja. É a Igreja como um todo que escuta a Palavra e celebra a Eucaristia ou, mais exactamente, que celebra a Palavra sempre que celebra a Eucaristia. Servida pelo dom do sacerdócio apostólico, que torna Cristo Sacerdote presente no meio dela, a Igreja exprime-se como Povo Sacerdotal.

Sé Patriarcal, 7 de Março de 2010

JOSÉ, Cardeal-Patriarca

NOTAS:

1 – cf. Lumen Gentium, nº 19

2 – cf. Ibidem, nº 20

3 – cf. Ibidem, nº 22

4 – cf. Ibidem, nº 28

5 – Christus Dominus, nº 11

Partilhar:
Scroll to Top
Agência ECCLESIA

GRÁTIS
BAIXAR