Catequese do cardeal-patriarca de Lisboa no 1.º domingo da Quaresma

“A Igreja é o Povo do Senhor”

Introdução

1. As minhas Catequeses durante a Quaresma deste ano, tratarão temas que enquadram a renovação da missão evangelizadora da Igreja, a sua fidelidade ao envio do Senhor. A renovação da missão evangelizadora, que o Papa João Paulo II designou por “Nova Evangelização”, só acontecerá se a Igreja e cada cristão viverem profundamente o seu mistério, acolhendo a Palavra de Deus com fé e deixando-se atrair pelo amor, que é a caridade. Para evangelizar, a Igreja precisa de acreditar na Mensagem e precisa de amar a Deus em Jesus Cristo, de modo a sentir que evangelizar é uma fidelidade de amor. “Ai de mim se não evangelizar”, exclamava o Apóstolo Paulo.

Assim, temos de perscrutar o desígnio de Deus acerca da humanidade, e o infinito amor de Jesus Cristo por todos os homens. Foi por isso que escolhi, como primeiro tema, aquele onde estão impressos esse desígnio eterno de Deus e a paixão amorosa de Jesus Cristo pelos homens. Deus quis formar para Si um Povo com o qual exercite, já neste mundo, a comunhão amorosa entre pessoas, pois criou o homem à sua imagem, Ele que é comunhão de pessoas distintas, unidas no amor. A Igreja é este Povo que o Senhor escolheu.

Porquê um Povo?

2. Na mentalidade contemporânea, a compreensão da pessoa humana, a busca da felicidade como plenitude de vida, estão marcadas pela perspectiva do indivíduo, desenvolvida no pensamento filosófico dos últimos séculos, o que levou à perda do sentido do colectivo como unidade, como verdadeiro sujeito inter-agindo com os sujeitos individuais. A sociedade, a Igreja, a família ou outras expressões de comunidade não são somatórios de indivíduos, mas são uma realidade nova, com uma identidade própria, que não anulam o indivíduo, mas o enquadram na sua realização pessoal, que nunca é separável da realização do “eu colectivo”. No desígnio de Deus, nenhuma pessoa humana é apenas um “eu”, é necessariamente um “nós”. Este desígnio de Deus está impresso no próprio acto criador. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, porque Ele, sendo várias pessoas individuais, iguais e distintas, é “um só”, fruto do amor dessas pessoas. Este dinamismo divino, de vários a constituírem um só, Deus exprimiu-o, antes de mais, na criação do homem e da mulher: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus Ele o criou, homem e mulher os criou” (Gen. 1,27).

Na linguagem bíblica, em toda a Sagrada Escritura, o primeiro interlocutor de Deus é sempre o “eu colectivo”, a família humana, o Povo escolhido, a família que é a união, num só, do homem e da mulher. É a esse “eu colectivo” que Deus fala e Se revela, com ele faz aliança, estabelece intimidade, tornando-se próximo e vivendo com ele, e o conduz à Terra Prometida. Esse é o Povo que o Senhor escolheu, e envia a atrair todos os homens para que um dia toda a família humana seja o Povo do Senhor.

A Igreja, Povo do Senhor, é que foi enviada a evangelizar. Se considerarmos a missão de evangelizar apenas como uma obrigação pessoal, não poderemos perceber o dinamismo da nova evangelização. Foi a Igreja, novo Povo do Senhor, que Ele enviou a anunciar o Evangelho como boa-nova da salvação. Tudo o que cada um de nós possa fazer, deve fazê-lo em Igreja, ouvindo a Igreja, amando como a Igreja ama, contribuindo para que ela seja fiel ao mandato que recebeu do Senhor.

Da promessa à realização histórica

3. A primeira manifestação de que é desígnio de Deus formar, para Si, um Povo, está expressa na promessa feita a Abraão. A revelação deste desígnio, sob a forma de promessa, revela já que se trata de um desígnio de amor mútuo entre Deus e o seu Povo. A promessa é uma das palavras chave de uma linguagem do amor. Quem ama faz promessas à pessoa amada. Elas brotam da abundância do seu coração, da força e poder para as cumprir. A promessa faz parte da atracção do amor. Aquele a quem é prometido, acredita na promessa, confia e põe-se a caminho com um sentido novo.

A promessa é feita a Abraão, homem crente e temente a Deus. Deus convida-o a começar de novo, a abandonar o seu país e a vida concreta que leva, porque, promete-lhe Deus, “farei de ti um grande Povo”. A promessa exprime-se sob a forma de bênção, o que indica que ela pode ser aceite com a força de Deus. “Abençoarei aqueles que te abençoarem (…) em ti serão abençoadas todas as nações da terra” (cf. Gen. 12,1-3). Abraão, o amigo de Deus, participa, assim, da solicitude de Deus por todos os povos da terra. Esta universalidade da promessa está expressa também quando Deus promete a Abraão que a sua descendência, esse Povo que o Senhor deseja, será tão numeroso como as estrelas do Céu. A reacção de Abraão é a atitude protótipa que Deus espera do seu Povo: “Abraão acreditou em Deus, que teve em conta esta atitude de Abraão como justiça” (cf. Gen. 15,6), isto é, de santidade. Acreditou em Deus e pôs-se a caminho: “Abraão partiu como Deus lhe tinha dito” (cf. Gen. 12,4).

É esta descendência de Abraão que dá origem à primeira concretização histórica do Povo de Deus. Emigrado para o Egipto, nos tempos de glória, mas sobretudo na experiência da opressão, esse Povo vai aprendendo a confiar na promessa feita aos seus antepassados, encontrando só nela a esperança da libertação. O Deus de Israel apresentar-se-á sempre como o Deus da promessa: “Eu sou o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob” (Ex. 3,6). É este cartão de visita com que Deus se apresenta a Moisés e lhe revela que está perante o Deus vivo.

Ao longo da História, Deus será para o seu Povo, o Deus da promessa, sobretudo o Deus que cumpre a promessa. Ela vai-se realizando, antes de mais, sob a forma da sua renovação. Deus é fiel à promessa, prometendo de novo e prometendo mais: promete a libertação do Egipto, promete uma terra “onde corre leite e mel”, promete um Rei justo e definitivo que será o Messias, o ungido do Senhor. O próprio Jesus que é a máxima realização das promessas de Deus, também promete: ressuscitar dos mortos, enviar o Espírito Santo, ficar com o seu Povo até ao fim dos tempos, regressar um dia, na sua Glória, para inaugurar a humanidade definitiva, recriada porque resgatada. O nosso Deus nunca é o Deus do definitivamente feito, é sempre o Deus da promessa. E perante a sua Palavra, continua a esperar de nós a atitude de Abraão: acreditar, confiar, pôr-se a caminho. Este é o dinamismo da nova evangelização.

Do Povo de Israel à Igreja

4. Na vocação de Moisés está claro que Deus considera aqueles descendentes de Abraão, hoje escravos no Egipto, o seu Povo, concretização da promessa feita a Abraão. Lembrou-se da promessa e comoveu-se. “Deus ouviu os seus gemidos e lembrou-se da sua Aliança com Abraão, Isaac e Jacob” (Ex. 2,24). No sofrimento e na aventura da sua caminhada na história, Israel será o Povo predilecto de Deus. É isso que Moisés lhes comunica em nome do Senhor: “Tu és um povo consagrado ao Senhor, teu Deus. Na verdade, o Senhor, teu Deus, escolheu-te para seres para Ele um povo particular entre todos os povos que há sobre a face da terra” (Deut. 7,6).

Esta convicção de que Israel é o Povo escolhido e amado por Deus, atravessa toda a história da salvação até aos nossos dias. O Concílio Vaticano II afirmou: “Agradou a Deus que os homens não recebessem a santificação e a salvação separadamente, fora de qualquer laço comunitário; ao contrário quis formar um Povo que o conheceria na verdade e o serviria na santidade. Foi por isso que escolheu o Povo de Israel, para ser o seu Povo” (LG. 9).

Não admira, pois, que seja no seio deste Povo que nasce Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, o Messias prometido. Ele é a realização plena da promessa e a manifestação definitiva da fidelidade de Deus. Na sua ressurreição, inaugurou o homem novo, com a vitória definitiva sobre o individualismo. A unidade do “eu colectivo”, entre os diversos membros de um mesmo Povo, radicalizou-se em Jesus Cristo. Pela fé e pelo baptismo, os discípulos unem-se a Jesus Cristo, são um só com Ele, são o novo Povo de Deus. Com essa nova unidade em Cristo, os cristãos são, antes de mais, um Povo, uma comunhão, eles são o novo Povo, o Povo do Senhor. Eles são, no dizer do Apóstolo Pedro, “uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, um Povo que Deus adquiriu para Si, os que outrora não eram um Povo, são agora o Povo de Deus” (1Pet. 2,9-10).

A união entre Deus e o seu Povo

5. Em toda a Sagrada Escritura, a união entre Deus e o seu Povo é vista como umas núpcias: Deus é o esposo do seu Povo. E não se trata apenas de uma comparação, a partir da realidade humana das núpcias, para sugerir alguma compreensão sobre esta união misteriosa e privilegiada entre Deus e um Povo que escolheu. É exactamente o contrário. São as núpcias humanas que encontram a sua verdade na realidade misteriosa de Deus, Ele que sendo vários, é um só no amor. Já vimos que Deus ao criar o homem e a mulher, os criou à Sua imagem, permitindo-lhe que sem deixarem de ser diferentes, sejam um só no amor. “E serão dois uma só carne”. O Verbo encarnado, que desde toda a eternidade é um só com o Pai e o Espírito Santo, na sua humanidade ressuscitada, unindo a Si aqueles que acreditam n’Ele, é um só com todos eles, todos os membros da Igreja, que sem deixarem de ser muitos e diferentes, são um só com ele, são verdadeiramente uma só carne, expressa no corpo eucarístico de Cristo. A Carta aos Efésios é clara a este respeito, ao falar do mistério das núpcias cristãs: “Ninguém de facto, odiou jamais a própria carne, antes a nutre e acalenta, como Cristo à Igreja, pois nós somos membros do seu corpo. Por isso o homem deixará pai e mãe, ligar-se-á à mulher e passarão os dois a ser uma só carne. É grande este mistério; mas digo-o relativamente a Cristo e à Igreja” (Efs. 5,29-32).

As expressões da união de Deus com o Seu Povo

6. A Aliança. É o pacto de amor e fidelidade para sempre, celebrado entre os esposos. Desde a antiguidade inspirou os pactos entre povos e nações, em ordem à convivência e à paz, pactos esses que eram ratificados com o próprio sangue. Sem negar a influência que estes pactos entre reis e povos tiveram na compreensão vetero-testamentária da Aliança de Deus com o Povo de Israel, o seu verdadeiro modelo inspirador é a aliança nupcial. Perante a dificuldade de Israel se comportar como a “esposa fiel”, Deus renova continuamente a sua Aliança, até à última e definitiva, ratificada com o sangue de Cristo. Ao dar o seu corpo a comer e o seu sangue a beber, declara: “Isto é o Meu sangue, sangue de Aliança, que vai ser derramado por uma multidão em remissão dos pecados” (Mt. 26,28). Esta Aliança, ratificada no sangue de Cristo, é nova e definitiva, porque Cristo exerce na Aliança o papel do “esposo” (de Deus) e da esposa (a Igreja). Ele exprime a fidelidade radical de Deus, no seu amor infinito pelos homens. A primeira Aliança falhou, porque a “esposa” (o Povo de Deus) foi infiel. Nesta nova Aliança, a “esposa” (a Igreja) será fiel, porque Cristo Homem, membro desse Povo, é sempre fiel. Mesmo quando os cristãos são infiéis, a Igreja será sempre fiel em Jesus Cristo.

7. A revelação da própria intimidade. Numa aliança nupcial os contraentes estão dispostos a revelar-se, a abrir e partilhar a sua intimidade. Deus fez isso de modo maravilhoso, revelando-se, partilhando com os membros do Povo, pela sua Palavra, a sua própria intimidade, o seu próprio ser, os segredos do seu coração, os desejos acerca do Povo. Em Cristo, essa abertura de Deus é total. Quem o ouve, ouve Deus. A Igreja tem de escutar o Senhor e abrir-lhe o seu coração, deixando-se envolver pelo seu amor e confiar na sua misericórdia.

Desta partilha de intimidade faz parte o desejo de proximidade, de viver em comunhão. Qual é o Povo que pode ufanar-se de ter Deus tão próximo de si como nós? “Vós sois o meu Povo e Eu sou o vosso Deus”. Esta é a disposição de Cristo em relação à Igreja: “Eu ficarei convosco até ao fim” (Mt. 28,20); “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome Eu estarei no meio deles” (Mt. 18,20). A Igreja deve cultivar esta intimidade de convivência. Quando cada um de nós se deixa envolver por essa intimidade com Cristo, que não viva isso só individualmente, mas saiba que está a exprimir a Cristo “esposo” o amor de toda a Igreja, sua “esposa”. E como a Sagrada Escritura no-lo exprime continuamente, o amor da esposa dá prioridade à ternura, à ousadia do amor, que não é catalogável em código de atitudes, mas irrompe de forma ousada ao sabor das circunstâncias. Nessa explosão de amor a Igreja percebe que o amor de Deus, esposo, é um amor de misericórdia.

A Igreja é enviada com amor

8. Uma das manifestações da intimidade amorosa entre Cristo e a Igreja é o facto de Ele a associar à sua missão: anunciar a boa-nova da salvação, comunicar a sua Palavra, amar como Ele ama. A Igreja é enviada com amor. É por isso que ela, ao anunciar o Evangelho, a sua primeira palavra é sempre para falar d’Ele, do amor que nos une. Evangelizar é uma fidelidade de amor. Ao enviá-la, Cristo manifestou o Seu amor pelos homens. “Ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho a toda a criatura” (Mc. 16,15). A Igreja não se limita a anunciar. Ela é anúncio e este é o pregão da alegria que sentimos em ser o Povo do Senhor.

Neste ano em que celebro o meu jubileu sacerdotal, quero manifestar essa alegria de ter procurado viver toda uma vida, amando este Povo como o Senhor o ama, servir a Igreja, Povo do Senhor, tornando-a cada vez mais a esposa adornada com a beleza da salvação, para que seja, cada vez mais, a alegria do seu esposo.

Sé Patriarcal, 13 de Março de 2011

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca

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