A oração leva à conversão
Celebramos o III Domingo da Quaresma. Continuamos a voltar-nos para a oração, uma força que nos mobiliza para a renovação pessoal e comunitária, com consequências na organização da Sociedade.
Hoje é também o Dia Nacional da Caritas. Ora, a Caritas a nacional e as correspondentes Caritas diocesanas e paroquiais são o instrumento de que a Igreja dispõe para dar cumprimento, de forma organizada, ao mandamento do amor ou da caridade. Como sabemos, por imperativo da missão da igreja, a caridade organizada não pode faltar nos programas de vida de todas e cada uma das comunidades cristãs. Quando falamos de caridade organizada pretendemos falar de um serviço permanente destinado a lembrar à comunidade este seu dever e, em seu nome, a dar-lhe cumprimento
A Palavra de Deus hoje proclamada pede resultados ao exercício da nossa Fé de cristãos e de comunidades cristãs. Se a nossa vida é como a figueira estéril, o seu destino é ser arrancada e deitada fora. Também não basta cultivar uma confiança abstracta em Deus fora de sincera conversão, como argumenta o Evangelista, citando dois episódios que estavam na memória dos ouvintes de Jesus.
A nossa fé tem de desabrochar em obras de amor a Deus e ao próximo.
Nós temos, como Moisés, uma missão a cumprir nesta história onde nos é dado viver. Também a nossa missão não é fácil, mas temos a garantia de que o nosso Deus, o mesmo que a Moisés se revelou com o nome de “eu Sou” e a nós como Trindade Santíssima, está connosco e acompanha-nos. Jesus Cristo é, de facto, o verdadeiro Rochedo, esse rochedo vivo que matou a sede ao Povo de Deus do Antigo Testamento e a nós nos conforta agora com o alimento da Eucaristia e da Sua palavra.
Pelos caminhos que esta quaresma nos aponta, desejamos aprofundar a nossa comunhão com Cristo, acertando com Ele todos os percursos da nossa vida.
E é na oração que desejamos cultivar e aprofundar a nossa comunhão com Cristo; comunhão que longe de nos afastar do mundo e da Sociedade, com seus êxitos e dificuldades, mais nos obriga a estarmos atentos aos seus diferentes percursos e a comprometer-nos neles. É por isso que o Catecismo da Igreja Católica fala da oração também como um combate. Um combate que se desenrola no interior de cada pessoa, na medida da sua força para vencer todas as resistências à relação com Deus; mas também se desenrola na relação com a sociedade, onde o sentir de Deus marca muitas diferenças e mesmo alguns enfrentamentos. Neste combate, as nossas armas são diferentes daquelas que os homens costumam usar, pois elas são a humildade, a confiança filial e a perseverança no amor, diz o mesmo catecismo.
Para cultivar esta atitude combativa da oração cada um de nós é convidado a fazer o encontro regular com a Palavra de Deus. E o mesmo catecismo recomenda um método chamado “lectio divina”, no qual se cumprem os seguintes passos: 1.º) a leitura da palavra de Deus; 2.º) depois a meditação da mesma Palavra; 3.º) a seguir o esforço por rezar a palavra lida e meditada; 4.º) contemplando a Deus; 5.º finalmente formulamos o propósito de agir de acordo com ela.
Vemos, assim, como a oração nos leva a assumir compromissos sérios no palco da vida social. São estes compromissos que nos quer lembrar também o dia nacional da Caritas, hoje celebrado.
O Santo Padre Bento XVI começa a sua encíclica “Caritas in Veritate” com estas palavras: “A caridade na verdade que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e Ressurreição é a grande força propulsora para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da Humanidade inteira”.
Promover o verdadeiro desenvolvimento é, assim, de acordo com a encíclica do Papa, missão de toda a Igreja e que a Caritas assume, em nome e por vontade da mesma Igreja.
Por sua vez, ligado a este verdadeiro desenvolvimento está, por um lado o Bem comum de todas as pessoas; por outro lado, está também a promoção do crescimento integral de cada uma delas. Tanto a promoção do bem comum como a promoção do desenvolvimento integral de cada pessoa, no respeito pela sua participação em variados corpos intermédios, segundo o princípio da subsidiariedade, é um dever da comunidade política e das suas instituições de governo, mas também é dever de cada cidadão e dos grupos que estes possam criar com finalidades específicas. A Igreja, por missão, que lhe é própria, sente que tem de acompanhar e ajudar cada pessoa no percurso do seu desenvolvimento que, como lembra o Papa Bento XVI, citando o seu antecessor Papa Paulo VI, deve ser entendido como vocação. Isto significa que o desenvolvimento de cada pessoa é resposta a um apelo transcendente que vem de Deus e só de Deus recebe o seu último significado. Por sua vez o desenvolvimento de cada pessoa nunca se processa à margem do desenvolvimento social; pelo contrário, cada pessoa só se desenvolve verdadeiramente na medida em que se sente a fazer parte e mesmo se sente protagonista do desenvolvimento da sociedade que a enquadra. Por isso, criar espaço para todas as pessoas e cada uma delas nos programas de desenvolvimento de uma sociedade é o que se chama processo de verdadeira integração e portanto a única forma de combater a exclusão social, infelizmente, um dos grandes males que continuam a afligir-nos.
O combate à exclusão social é uma das prioridades da acção da Igreja no exercício de missão que Jesus lhe confia para fazer com que toda a humanidade cumpra a sua vocação de ser uma verdadeira e única família. A Caritas é o braço da Igreja especialmente empenhado em dar cumprimento a esta missão e a lembrar a toda a comunidade a obrigação de nela colaborar, ainda que de formas variadas.
Temos de reconhecer que o combate à exclusão, para atingir o objectivo de todos os cidadãos fazerem a experiência positiva de serem actores do desenvolvimento não depende só dos governos e das leis que eles possam fazer ou até dos subsídios materiais que possam ser atribuídos. Para atingir os objectivos desejados é necessário accionar outros mecanismos. E entre estes são de incentivar aqueles que apostam na proximidade a cada uma das pessoas, suas famílias e relações de vizinhança; mecanismos que sabem entrar na cultura e nos hábitos de cada pessoa e seu grupo despertando nelas as capacidades que as podem tornar autoras da sua própria inclusão pela entrada no processo do desenvolvimento. Ora, nós sabemos que o principal factor de integração social e consequentemente de combate à pobreza é o trabalho.
Ao Estado temos o direito de pedir condições para a criação de empregos para que as pessoas possam exercer o direito ao trabalho. Todos sabemos, porém, que o desemprego é o grande flagelo que atinge actualmente as sociedades mesmo as desenvolvidas com agravamento na crise financeira que vivemos desde há 1 ano.
Em Portugal o desemprego está todos os dias a bater recordes e na nossa região mantém-se a tendência para os seus números serem mais altos do que a média nacional.
Como resolver este gravíssimo problema que afecta todos os portugueses, mas principalmente aqueles que, como nós, habitam as zonas mais desfavorecidas do nosso país?
Os caminhos da resposta que deve ser dada encontramo-los na responsabilidade social de empresa defendida pela encíclica do Papa Bento XVI com muitos e bons mestres da ciência económica a acompanhá-lo. Este princípio, usando palavras da encíclica parte da convicção de que a gestão de uma empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa, incluindo a comunidade de referência, onde ela se situa.
Procurando entender e traduzir na prática este princípio, atentemos na seguinte realidade que a nossa experiência comprova:
Apesar de certas empresas fecharem e outras diminuírem o número de trabalhadores, o que está a acontecer todos os dias entre nós, os resultados finais da produção não diminuem. No caso português, o PIB desacelerou no seu crescimento, mas não diminuiu apesar da crise.
– De facto, algumas empresas argumentam mesmo que, para garantir a sua sustentabilidade, é forçoso diminuírem o número de trabalhadores, substituindo-os pela máquina.
Se os lucros são os mesmos ou ainda maiores e os trabalhadores são menos, a quem pertencem as mais-valias?
É aqui que é preciso aplicar o princípio da responsabilidade social da empresa de que fala a encíclica. Isto é, os lucros das empresas – e por princípio, a empresa deve dar lucros – devem incluir nos seus destinos também a satisfação das grandes necessidades da sociedade em que se enquadram.
Se isto é verdade ao nível da nossa economia que é das mais débeis da Europa, é ainda mais verdade se o considerarmos no âmbito da economia global. Há fundos e mais valias que têm de ser transferidos para dinamizar a criação de empregos onde eles não existem e para irem em auxílio das populações famintas que infelizmente são ainda um grande flagelo da humanidade.
Em relação ao combate ao desemprego não podemos acalentar a esperança de vermos resolvido este problema pela instalação de muitas e grandes empresas com a utilização de mão-de-obra maciça como até há pouco tempo acontecia, entre nós. É preciso, em contrapartida, ter a coragem de acreditar na capacidade empreendedora própria de cada pessoa. É preciso ter a humildade de ir ao seu encontro, procurando ajudá-la a identificar as suas capacidades, adquirir conhecimentos e instrumentos indispensáveis para que ela tome iniciativas. E sentimo-nos fortalecidos na esperança, quando, a este propósito, lemos na encíclica de Bento XVI o seguinte:
“O espírito empresarial está inscrito em cada trabalho, entendido como acto da pessoa. Por isso, é bom ajudar cada trabalhador a que saiba trabalhar por conta própria”.
Tem razão o Papa quando, desta forma, nos manda cultivar o empreendedorismo. Por isso temos de pedir às nossas autoridades o cumprimento do dever de justiça que é criar as condições para este empreendedorismo, com a transferência de mais valias financeiras para regiões carenciadas como a nossa. Aqui se deve incluir também a facilitação do acesso aos fundos comunitários ainda existentes, que em si mesmos se destinam a desfazer assimetrias como acontece na região em que nos encontramos. É escandaloso o facto constatado de que houve fundos que não foram aproveitados e voltaram para trás, para os cofres da Europa, deixando em grande necessidade muitos cidadãos das nossas terras que deles poderiam ter aproveitado. Argumenta-se que não houve projectos atempadamente feitos ou então que o Estado não tinha dinheiro para pagar a parte que lhe correspondia. Se não havia projectos, era da responsabilidade das instituições públicas para isso vocacionadas ajudar as pessoas ou grupos de pessoas a fazerem esses projectos de acordo com as exigências técnicas correspondentes. Se não havia dinheiro nos cofres públicos para satisfazer a parte do Estado, pedia-se a coragem de cortar na despesa do Estado o necessário e uma das soluções poderia passar por diminuir alguns ordenados, durante algum tempo para isso ser possível. Eu, pela parte que me diz respeito, aceitaria entrar neste jogo. São gestos corajosos desta natureza que nos têm faltado, até para dar a volta por cima à crise financeira, que continua a fazer sofrer muitas famílias.
Também no que respeita a satisfazer as necessidades primárias, em alimentação e água potável, que infelizmente continua a afectar muitas populações famintas, está provado que o volume dos recursos actualmente existentes do mundo é suficiente para matar a fome a todos. Mas o facto é que a muitos não chega o necessário. Registe-se, ainda por cima, a agravante que nos vem das notícias segundo as quais no mundo da abundância cinquenta por cento dos alimentos de facto confeccionados morrem no caixote do lixo. Isto enquanto milhões de irmãos nossos morrem de fome. Confirma-se assim a oportunidade da denúncia que faz a encíclica de Bento XVI quando diz: “A fome no mundo não depende de uma escassez material, como sobretudo da escassez de recursos sociais… falta um sistema de instituições económicas que seja capaz de garantir acesso regular e adequado à alimentação e à água”.
É esta a contradição que continua a verificar-se. Alguns têm demais outros não têm o suficiente; e não encontrámos ainda formas de estabelecer este equilíbrio, querido por Deus e que constitui a vocação mais funda de todo o ser humano.
Sem a presença de Deus na vida das pessoas e no palco da vida social não será possível resolver este gravíssimo problema. É isso que o Papa nos diz com as seguintes palavras: “ Quando o Estado promove, ensina ou até impõe formas de ateísmo prático, tira aos seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se empenharem no desenvolvimento integral”.
E porque fazemos a verificação prática desta afirmação do Papa, sentimos que a força da nossa fé pessoal e comunitária é um bem essencial de que a coesão da nossa sociedade precisa.
Neste dia nacional da Caritas desejamos lembrar o nosso propósito de que em cada paróquia ou grupo de paróquias haja uma instituição Caritas. E que esta seja capaz não só de auscultar as necessidades ali existentes e procurar para elas as melhores respostas mas também de sensibilizar os fiéis para o exercício da sua responsabilidade de cristãos e cidadãos perante os desafios que supõe a mensagem evangélica em matéria de exercício da caridade.
Com o renovado empenho da Caritas Diocesana vamos continuar a abrir estes caminhos, que sentimos serem os verdadeiros caminhos do futuro.
Belmonte, 7 de Março de 2010
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda