Carta Pastoral do Arcebispo de Braga sobre a Bíblia

«Tomar Conta da Palavra» “Levanta-te e resplandece, Jerusalém Que está a chegar a tua luz! A glória do Senhor amanhece sobre ti! Olha: as trevas cobrem a terra, E a escuridão, os povos, Mas sobre ti amanhecerá o Senhor. A Sua glória vai aparecer sobre ti. As nações caminharão à tua luz, E os reis ao esplendor da tua aurora” (Isaías 60, 1-39) “Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Que do alto dos céus nos abençoou Com todas as bênçãos espirituais em Cristo” (Efésios 1,3) 1. A 21 anos da minha sagração episcopal, como auxiliar da Arquidiocese de Braga e com o título de Nova Bárbara (3.1.1988) e a 10 de Arcebispo (18.7.1999), achei oportuno dirigir-me aos meus caros diocesanos com uma Carta Pastoral. Recordo duas passagens, uma tirada da Mensagem do dia da minha ordenação episcopal e outra da Alocução na tomada de posse como Arcebispo: A Igreja vive para oferecer ao mundo, umas vezes desiludido, outras vezes batendo à porta de respostas ilusórias – como os Magos às portas de Herodes no Evangelho de hoje -, mas sempre angustiado, a Igreja – dizia – vive para oferecer o testemunho de uma luz que vence as densas trevas que envolvem as nações; A minha acção pastoral nesta igreja local que me viu nascer, que me acolheu como baptizado, como sacerdote e como bispo, inspirar-se-á nestes paradigmas do evangelho. Permear a vida das comunidades com este fermento da Palavra, da Boa Nova será o meu empenho prioritário. Neste final de milénio acolho o convite insistente de João Paulo II a recompor o tecido humano e social com o anúncio da originalidade inaudita do Evangelho. Acredito que o campo do mundo necessita desta força renovadora. Só ela plenificará (…); Continuaremos a semear, confiados nos frutos que já podemos saborear. Estamos conscientes de que também o joio se afirma neste campo que não é nosso mas que foi entregue à nossa administração. Quais sentinelas que vigiam (Ezequiel 3,26 s) procuraremos, todos, identificar os problemas com que se debatem as nossas gentes (…); Conhecer o joio sem se deixar inquietar ou melhor, perturbar, pelas dificuldades. As nossas energias devem ser investidas na vigilante cultura do trigo, do diálogo, da evangelização, do fortalecimento da fé; “sair de casa”, ir ao encontro de todos, mesmo daqueles mundos que parecem estranhos, se não hostis, à Igreja. Não basta esperar que venham; urge ir ao encontro, num espaço geográfico caracterizado por um cristianismo onde se mistura o consciente ao social, sem ignorar as franjas, porventura a crescer, da indiferença e da incredulidade; a força deste “êxodo” de nós próprios está no sustento que as comunidades vivas dão aos seus membros, aos seus filhos. É por isso que o “ir ao encontro” não se opõe a um “regresso à Igreja”. Trata-se de dois movimentos correlativos, que reciprocamente se alimentam; as paróquias necessitam de crescer na fraternidade e no apoio mútuo. Não devemos ter medo do amor. Todos deveriam reconhecer: “Vede como eles se amam”. 2. O Plano Pastoral deste triénio (2008-2011)centra-se na Palavra, em sintonia com a Igreja Universal que celebrou um Sínodo sobre A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (5-26 de Outubro de 2008) e está a celebrar o Ano Paulino (29 de Junho de 2008 – 28 de Junho de 2009). O programa com o lema Tomar conta da Palavra que toma conta de nós tem três fases: Fazemos votos de que esta caminhada de três anos lance, em todas as comunidades da Arquidiocese, a semente de compromissos visíveis da centralidade da Palavra na vida e na missão dos crentes na Igreja e no mundo. Se algo temos a oferecer aos nossos irmãos é o anúncio da Boa Nova, do Evangelho, que tem em Cristo a plenitude da sua revelação e que enche de alegria e de esperança o coração dos Seus discípulos, mesmo pelos caminhos do desencanto e das provações (Lucas 24). 3. A mensagem final do Sínodo dos Bispos sobre A Palavra na vida e na missão da Igreja aponta caminhos que podem inspirar os compromissos dos cristãos. Numa feliz síntese, o Sínodo anuncia a voz, o rosto, a casa e os caminhos da Palavra de Deus. Quero enunciar algumas considerações que ajudem a discernir caminhos de renovação pastoral marcados pela Palavra. 3.1. Palavra – Voz de Deus A Palavra é voz de Deus que se pode escutar em diversas manifestações da vida. A Palavra de Deus é uma voz que se pode escutar na criação. Foi pela Palavra que tudo foi criado: Deus disse e fez-se (Génesis 1). A natureza é um livro aberto onde se podem decifrar os sinais do Criador; hoje, particularmente, em que as perversões dos modelos de desenvolvimento põem em causa a sobrevivência do planeta, a contemplação da obra criada – e Deus viu que tudo era bom e belo – pode constituir um impulso ao respeito pela natureza e a uma via ecológica. A Sua voz é silêncio subtil, que Elias escutava na brisa da tarde (I Reis 19, 12) e voz poderosa que ressoa na tempestade e na glória do Templo, como celebra o salmista (Salmo 29). A Sua voz ecoa na história da humanidade de todos os tempos e na história existencial de cada pessoa. A leitura dos sinais dos tempos a que o bondoso Papa João XXXIII apelava é um imperativo constante do homem peregrino do Bem, da Verdade e da Beleza. Todos os acontecimentos da vida podem ser “voz” de Deus. A vida, no dramatismo das suas situações e nas alegrias recompensadoras, transborda de “mensagens” que devem ser acolhidas na oração e no louvor. Por outro lado, a evolução da humanidade, através dos acontecimentos mais variados, pode permitir um encontro com Deus que “fala”, solicitando denúncias ou atitudes de acção de graças. Deste modo, compreenderemos como Deus é eloquente no viver quotidiano das pessoas e da sociedade. A Sua voz fez-se ouvir de uma forma inédita na história do Povo Eleito, de Israel, em que a Aliança assume os sinais da natureza e os integra na história de salvação, no diálogo amoroso do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob com o Seu povo. Escutar a voz é a expressão hebraica para dizer obedecer. Escutar a voz do amado é o vigilante anseio da amada, que procura o seu amado pelas ruas nocturnas e desertas (Cântico dos Cânticos 3). Os profetas de Israel são sentinelas da aliança e os mensageiros da palavra que deles se apodera. A Bíblia, a Escritura dos nossos irmãos mais velhos é um testemunho eloquente dessa voz e escutar é o primeiro dos mandamentos: Escuta,Israel (Deuteronómio 6, 4-9). Ainda hoje, os nossos irmãos judeus recitam diariamente esta oração, que afirma a unicidade divina e a eleição amorosa do seu Deus. A importância da Bíblia está aqui. 3.2. Cristo – Rosto visível da Palavra Na plenitude dos tempos o Deus que Se compraz em revelar-Se aos homens, enviou o Seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei (Hebreus 1, 1-4; Gálatas 4, 4-5). Desde então, a Palavra tem um rosto: No princípio era o Verbo…A Deus ninguém O Viu, o filho primogénito é que O deu a conhecer (João 1, 1-18); Ele, o Filho, é a Palavra do Pai e quem O vê, vê o Pai (João 14, 9). Que Deus apareça em palavras humanas, como as da Escritura, compreende-se à luz do mistério da encarnação: E o verbo fez-se carne e habitou entre nós (João 1,14). A multiplicidade das palavras e dos géneros da Escritura encontram em Jesus, o Cristo, a síntese, a unidade: De muitos modos falou Deus a nossos pais; nestes tempos que são os últimos falou-nos pelo próprio Filho (Hebreus 1,1-2). A plenitude da revelação no Verbo, na Palavra, não anula as etapas precedentes mas leva-as ao cumprimento; a nova e eterna aliança não revoga as alianças feitas com o povo santo de Israel mas recapitula-as no plano salvífico de Deus. Paulo, fiel às promessas e glória do seu povo, é iluminado por uma revelação: quando aprouve a Deus revelar o Seu Filho em mim… ( Gálatas 1,15). A sua “conversão” não é dos ídolos ao verdadeiro Deus (1 Tessalonicenses 1, 9), mas ao pensamento de Cristo; a ele se aplica o kerygma de Jesus: metanoêite [convertei-vos] e acreditai no Evangelho (Marcos 1,15); e Paulo deixou-se apaixonar pelo evangelho de Deus e do Seu Filho, Jesus Cristo. Cabe-nos a nós, Seus discípulos, torná-Lo visível, na força do Espírito, que nos leva à verdade total, pela escuta obediente das Escrituras, pelo testemunho corajoso, pela fidelidade incondicional no seguimento da Sua doutrina. Os mártires de todos os tempos, essa multidão que nos acompanha, são um apelo a contemplar e a anunciar esse rosto de Deus, essa palavra feita carne, esse verbo, que na humilhação da Cruz revelou o inaudito e imenso amor de Deus pelos homens. Jesus, rosto do Pai, é, por palavras e gestos, a manifestação da bondade e da misericórdia do Deus da Aliança, que não desiste de procurar o homem e de o chamar a uma esperança que não desilude. É pelas obras de misericórdia (Mateus 25) que os cristãos testemunham a perenidade da eficácia da Palavra feita carne e que preparam novos céus e nova terra, prometidos pela palavra que não engana. A fé cristã tem por centro uma Pessoa a imitar e a vida cristã não é senão um processo ininterrupto de imitação de Cristo. O cristão, no dever de ser “outro Cristo”, não tem outra hipótese senão acolher a vida e a Palavra de Cristo que as Escrituras nos comunicam como caminho de alegria. O mundo necessita dum encontro com Cristo e só o testemunho dos cristãos se torna Seu “rosto”, de modo que vendo o seu ser e o seu agir, se questionem sobre a adesão mais profunda e sincera, como verdadeiro sentido para a vida, à pessoa de Cristo numa actualidade que continue a entusiasmar para um “viver Cristo”. 3.3. A Igreja, casa da Palavra A Palavra habita numa casa e esta é a Igreja. Aprouve a Deus salvar os homens como um povo (Lúmen Gentium); as alianças com Noé, com Abraão, com Moisés envolvem a sua família, o seu povo e têm por destino todas as nações (Génesis 12). A Igreja, herdeira dessa história de revelação e de salvação é como que o sacramento, o sinal dessa universalidade porque a vontade de Deus é que todos os homens cheguem ao conhecimento da verdade (1 Timóteo 2,4). A Palavra é dirigida não a uma pessoa solitária mas a um povo. Daí que o sujeito interlocutor da revelação, da auto-comunicação de Deus, não seja o indivíduo mas a comunidade dos crentes. A Escritura, oferecida pelo Espírito a cada um, não é passível de uma apropriação individual (2 Timóteo 3, 16; 2 Pedro 1, 20-21) mas constitui, ela mesma, uma interpelação à comunhão, ao diálogo, à partilha. A sua leitura deve ser feita no mesmo Espírito com que foi escrita (Dei Verbum); só assim se realiza a declaração de Jesus: as minhas palavras são espírito e vida (João 6, 63). A Sacrosanctum Concilium, constituição conciliar sobre a divina liturgia, sublinha que quando a palavra é proclamada Deus fala ao seu povo. O presente verbal não é por acaso, mas põe em relevo a actualidade da palavra; a Escritura não é um repositório de verdades e narrações dum passado longínquo mas antes o testemunho vivo de que Deus não abandona o Seu povo, mas com ele caminha em todos os tempos e lugares. Nesta casa todos são chamados a habitar para que se realize o voto paulino: habite em vós, com toda a sua riqueza, a Palavra de Deus (Colossenses 3, 16); cada um recebe dons para construir o único corpo de Cristo; a diversidade dos carismas não pode traduzir-se na desorientação e no caos, mas na comunhão e na tensão para a unidade: pastores, sacerdotes, religiosos, fiéis leigos, estudiosos são chamados a dar, cada qual, o seu contributo, para que esta casa da palavra seja habitável e nela reine a harmonia fraterna. E a palavra, vivificada continuamente pelo Espírito que a consagra, de forma que é palavra de Deus em forma de palavras humanas, conjuga, no seu mistério, a multiplicidade e a diversidade de línguas, de léxicos, de géneros…na unidade do plano salvador do único Deus e Pai de todos. A palavra deve estar no centro desta casa, da sua história, dos seus projectos, da sua construção. Tal como a palavra, que é Jesus, é pedra angular assim a palavra de Deus deve inspirar e unificar as acções deste corpo de Cristo que é a Igreja. Tudo se deve inspirar na palavra inspirada pelo Espírito que dá a vida. A nossa pregação não pode deixar de ser um eco da palavra escutada, uma narração tecida de bem-aventurança e de alegria, como a comunidade primitiva, em que a palavra crescia e dia-a-dia se multiplicava o número dos que aderiam ao caminho, que é Cristo (Actos 2, 42-47). A fracção do pão, feita com entusiasmo e fraternidade, não pode deixar de ser mesa posta, onde a palavra se faz pão e o pão é palavra de consolação e viático do homo viator, do peregrino em demanda da pátria futura. A Eucaristia, uma só mesa, na Palavra e no Pão, é penhor da glória futura, é antecipação do banquete do cordeiro, verdadeiro templo na Jerusalém celeste. As nossas orações não podem deixar de ter o espírito da palavra: os salmos, os hinos, os cânticos espirituais, autêntica oração da Igreja, devem modelar o afecto das nossas preces, que se tornarão, assim, eucarísticas, de acção de graças, ao jeito do nosso Salvador, que nos ensina a rezar. Na peregrinação, muitas vezes vacilante, hesitante, dolorosa e dramática, da Igreja no mundo, não sabemos o que devemos pedir; o Espírito vem ao auxílio da nossa fraqueza, Ele que nos faz exclamar: Abbà, ó Pai (Romanos 8, 15.26). É a palavra que gera a comunhão fraterna, a partilha entre irmãos, para além de todas as diferenças de estatuto social e económico, cultural e vocacional, nacional e político. Todos somos ouvintes da palavra, que nos gera como irmãos, na unicidade e singularidade de cada um na grande família de Deus. Comunidade evangelizada a Igreja é chamada, por missão confiada por Jesus, a ser evangelizadora, anunciando que o Reino de Deus está entre nós e dando ao mundo sinais credíveis do seu anúncio pela prática das boas obras, sobretudo da misericórdia. Se a Igreja é a casa da Palavra, enquanto é o sujeito, enquanto comunidade, que acolhe, difunde, vive a Palavra, não pode deixar de ser um espaço de acolhimento. Em todas as suas iniciativas pastorais, como discípula, mãe e mestra é chamada a ser perita em humanidade, tornando visível o Bom Samaritano, que é Jesus, qual Palavra eterna do Pai e se debruça continuamente sobre o homem peregrino e muitas vezes assaltado no seu caminho pela prova, pelas crises internas e externas, pela dúvida, pelo desânimo, pela falta de sentido do seu viver. A Igreja, mensageira profética da Boa Nova, do Evangelho, de Jesus que é o Reino de Deus entre nós, pode ser uma luz à luz da Palavra, que ilumina, que aquece, que retempera, que consola, que estimula, que dá coragem nas viragens epocais duma humanidade com fome e sede da Palavra de Deus, mesmo quando é disso inconsciente. A Igreja, sacramento universal de salvação, é chamada a servir os destinos da Palavra no mundo e na história segundo os planos da benevolência divina; nela só vale e é perene o que evidencia a Palavra da salvação, na medida em que faz como o Mestre, que não veio para ser servido mas para servir e dar a vida por todos. O mundo é a casa da Igreja, ela habita no meio dos homens e é como que o fontanário no centro desta aldeia global. 3.4. Os Caminhos da Palavra A voz de Deus, feita Palavra na Sagrada Escritura, é para chegar aos confins do mundo, passando pelos nossos “mundos”, onde todo o ser humano luta para ser feliz. A Igreja, sendo casa da Palavra, não a pode reservar para si. O tesouro encontrado é para rentabilizar, colocando-o a circular por todas as estradas que o homem percorre. Estradas no sentido de itinerários onde a vida acontece desde a família aos ambientes de trabalho e estradas como meios para que a Palavra aí possa chegar e produzir frutos. A palavra deseja percorrer os vários mundos em que vivemos. Os seus caminhos são sempre novos como novos são os tempos em que nos é dado viver. A Palavra deve chegar a todos os ambientes. Importa, acima de tudo, que a palavra, como fonte de vida que renova as águas estagnadas das nossas vidas, chegue a todos para que todos tenham vida em abundância (João 10,10). Se a Igreja é casa da Palavra, dela sai uma água que vai fecundar tudo quanto é humano. A visão do profeta Ezequiel pode ser sugestiva: “Conduziu-me para a entrada do Templo, e eis que saía água da sua parte subterrânea, porque o templo estava voltado para o oriente […] Por onde quer que a torrente passar, todo o ser vivo que se move viverá (Ezequiel 47, 1-13). 3.4.1. É a palavra que pode dar novo alento às nossas famílias, umas em crise, outras à procura de identidade, outras em provação. A palavra de vida é palavra de aliança, de amor, de fidelidade, de esperança na prova. As nossas famílias são chamadas a ler a Escritura no seu lar para que sejam verdadeiras estradas que levam novos e mais velhos ao encontro da Palavra que salva. A família necessita de se estruturar segundo o Evangelho da Família, da Boa Nova que é dom para a família. 3.4.2. É a palavra que pode iluminar os espaços escolares, onde os jovens se preparam para a vida. A palavra não é apenas para os crentes mas é capaz de iluminar todo o homem que vem a este mundo (João 1, 9). A escola é este espaço onde a personalidade se estrutura e os valores evangélicos devem ser referência que compromete e marca profundamente as opções. Não se pode andar à deriva e o mundo de amanhã precisa de uma formação onde um humanismo integral, nas pegadas de Cristo, garante o seu futuro. 3.4.3. É a palavra que pode constituir uma fonte de inspiração para o discernimento de justas soluções dos problemas candentes no campo laboral e empresarial; é ainda a palavra que pode abrir caminhos inéditos na crise financeira que se afirma, de dia para dia, cada vez mais global e planetária. Não sendo a Escritura um livro de receitas para problemas imediatos não deixa de poder ser uma referência para o nascimento do homem novo que pode renovar a sociedade e o mundo. E algo de novo, no panorama internacional, parece estar a nascer. Vêm-me ao pensamento as palavras de Isaías: “ Não vos lembreis dos acontecimentos de outrora; não penseis mais no passado, pois vou realizar algo de novo, que já está a aparecer: não o notais?”.Com a conversão, a metanóia a que a palavra sempre nos apela, muitos dos problemas, com que a humanidade hoje dramaticamente se debate, poderão dissolver-se como que por milagre. A fé, que vem da pregação, pode mover montanhas! 3.4.4. A Escritura constitui, ao longo dos tempos, como que um código em que as múltiplas expressões culturais – desde a pintura, a arquitectura, a escultura, à literatura, à música, às artes dramáticas, ao cinema…-se inspiraram. Desconhecer a Bíblia é, com frequência, privar-se de uma referência indispensável na interpretação adequada e correcta de muitas criações artísticas. Estas foram, na história da Igreja que se confunde, em muitos casos, com a história cultural dos povos, uma Bíblia pauperum [Bíblia dos pobres]. Na pedagogia dos artistas crentes, em tempos em que a leitura era reservada aos letrados, o povo simples aprendeu a Escritura na azulejaria das igrejas, na pintura, na escultura, no teatro, na música. Em muitos lares de outrora, liam-se as histórias bíblicas ao serão: enquanto os mais velhos se entretinham à volta da fogueira, eram os mais novos, que andavam na escola, a ler para todos estes textos que marcavam indelevelmente, pela sua beleza, dramatismo ou jovialidade, a emoção e o coração das famílias. Noutra dimensão, a Escritura é chave de leitura de obras filosóficas, de literatura, de cinema…A arte, em grande parte das suas expressões, não fica indiferente face ao acontecimento religioso, inscrito nos textos bíblicos, sejam poéticos sejam narrativos e toma posição quer para enaltecer o mistério encerrado nestas histórias quer para questionar a sua recepção ao longo dos tempos na doutrina das instituições. Num e noutro caso, o desconhecimento da Escritura traduz-se num empobrecimento cultural, numa privação de uma referência, dum inter-texto indispensável para uma justa hermenêutica de produtos da criação artística. 3.4.5. A palavra, que é vida, deseja caminhar por onde o homem caminha. Como sangue novo aspira a percorrer as auto-estradas da comunicação, que constituem hoje uma rede que pode fazer deste mundo tão distante uma aldeia global, cujo fontanário não pode deixar de ser aquele de que jorra a água viva em vez de cisternas secas, escavadas pela indiferença, pela intolerância, pela negligência face à sorte de multidões com fome e sede de justiça. Muito há a esperar da palavra que pode correr nestas auto-estradas. Se hoje, geograficamente, o mundo está tão próximo, que distância não existe, por vezes, entre vizinhos! Cabe à palavra vencer estas barreiras e da interdependência real entre povos e nações construir uma rede de solidariedade, porque somos todos filhos dum único Pai e chamados a ser uma grande família. Os modernos meios de comunicação são uma extraordinária oportunidade para que a Palavra chegue a todos mesmo àqueles que, por opção ou por negligência, não podem contactar com a Palavra proclamada na liturgia. O recurso, com competência e inteligência, a estes meios é um imperativo da nova evangelização, que é o anúncio de Cristo, ontem, hoje e sempre mas com novo ardor e com aquela compaixão do Mestre ao ver as multidões como ovelhas sem pastor. 4. Memórias que nos responsabilizam 4.1. A Conferência Episcopal Portuguesa publicou uma Nota “Ano Paulino, uma proposta pastoral” [6 de Maio de 2008] e que releva a centralidade da Palavra na vida de S. Paulo e da Igreja: “Paulo, grande apóstolo da Palavra, pode ser o nosso guia para descobrirmos, mais profundamente, o lugar da Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Basta pensar que ele é o autor sagrado mais lido na liturgia” (nº1). Os Bispos afirmam ainda que “Paulo pode guiar-nos em todos os caminhos da escuta da Palavra: na celebração da Páscoa; na evangelização, como primeiro anúncio de Jesus Cristo; no aprofundamento da fé, em processo catequético; na fidelidade a Deus, vivendo segundo as exigências da Palavra; no fortalecimento da esperança, pois toda a Palavra de Deus nos abre para o horizonte da eternidade” (nº1). 4.2. O saudoso Papa João Paulo II na Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente (10 de Novembro de 1994) exortava toda a Igreja, na preparação do novo milénio cristão, a um exame de consciência colectivo e afirmava: “O exame de consciência não pode deixar de referir-se também à recepção do Concílio, este grande dom do Espírito à Igreja no ocaso do segundo milénio. Em que medida a Palavra de Deus se tornou mais plenamente alma da teologia e inspiradora de toda a existência cristã, como pedia a Dei Verbum?” (nº36). Já fizemos este exame de consciência? 4.3. Apraz-me evocar aqui e agora o modelo do meu predecessor, Beato Frei Bartolomeu dos Mártires: num momento dramático da história da Igreja, na Reforma, quando a Bíblia era usada, num princípio de sola scriptura, para questionar certas verdades da fé católica e que mais tarde levou os católicos ao afastamento da Escritura, o nosso Beato, entre duas secções do Concílio de Trento, em que se revelou uma figura ímpar, escreveu um Comentário aos Salmos, como que apostando na vitalidade da palavra como fonte de paz nas contendas doutrinais. Se Jesus é a única Palavra de Deus, enquanto plenitude da revelação do rosto do Pai, enquanto caminho, verdade e vida, é no encontro com Ele que o homem é iluminado. No seu dia-a-dia, o homem é bombardeado por palavras ocas, que o tentam seduzir e que, mais tarde, o deixam abandonado à insatisfação, ao vazio e, por vezes, ao desespero. A Palavra de Deus não é como estas palavras barulhentas; é no encontro, no diálogo, na escuta e no silêncio que Deus Se revela e manifesta o Seu amor. O silêncio da escuta como o daquela mulher, Maria, aos pés de Jesus (Lucas 9, 38-42) é já uma antecipação da plenitude quando as palavras derem lugar à visão beatífica e Deus for tudo em todos. Só a atitude de silêncio permite ouvir Deus que fala hoje. Daí que a Igreja necessita de criar estes locais de “deserto” e os cristãos necessitam de “fugir” do barulho das muitas mensagens que os agridem. Deus, envolvido no silêncio do Seu mistério íntimo, será a última palavra a comunicar ao mundo e este não necessitará de procurar noutro lugar. Sem silêncio, a voz da Igreja confunde-se com tantas outras que mostram soluções e caminhos mais sedutores onde a felicidade é prometida para o imediato mas sem consistência e profundidade. Na consumação da história, Deus já não Se manifestará pelas palavras e acções mas será uma presença e vê-l’O-emos face a face. Neste tempo intermédio, como peregrinos no deserto a caminho da terra prometida, aprouve a Deus dar-Se a conhecer por gestas e palavras [gestis verbisque afirma a Dei Verbum]. Não se pode confundir as mediações com a meta, mas também é impossível chegar ao destino sem as indicações do percurso: o destino é a comunhão face-a-face com Deus, onde a palavra já não será necessária. Como afirma Paulo: agora subsistem a fé, a esperança e a caridade; no futuro escatológico, só a última, a caridade permanecerá (1Coríntios 13). Exortações finais É à luz destas reflexões e destes modelos que desejo propor caminhos concretos, por onde a palavra entre e habite na vida e na missão da nossa Igreja, dos pastores e dos fiéis leigos, de todos: 1. Cada lar cristão não deveria prescindir da presença de uma Bíblia, colocada em lugar de destaque em casa. Seria como que um sacrário doméstico, em que Deus está presente e lhe faz companhia em todas as horas, nas alegrias e nas tristezas, nas horas de êxito e nos momentos de fracasso. Com ela, todos deveriam reconhecer a necessidade de uma leitura orante onde a vida familiar se confronta com a Palavra de Deus. 2. Em analogia com a tradição, em muitas das nossas paróquias, de a Sagrada Família ir de casa em casa, também O Livro da nossa fé e da nossa esperança, a Bíblia, poderia passar de casa em casa para, em leitura orante da família, poder iluminar os recantos mais escuros da vida familiar e servir de estímulo nos percursos positivos já empreendidos. Seria desejável que os casais se reunissem para ler, meditar a Palavra e deixar-se conduzir pelos seus apelos. 3. Creio ser positivo que se instituísse na Diocese e em cada paróquia um Dia da Bíblia, em que todos fossem sensibilizados para a riqueza da palavra, destinada a habitar entre nós, a montar a sua tenda nos desertos do nosso caminhar quotidiano. 4. Exorto os pastores a impregnar as pregações ou tríduos da palavra de Deus e a dar-lhe o espaço merecido nas homilias das eucaristias. As festas deveriam permitir um encontro com a Palavra através de iniciativas variadas para as diferentes categorias das pessoas. Exorto todos os diocesanos a que se familiarizem, como era desejo expresso da Constituição conciliar Dei Verbum, com a Bíblia através sobretudo da lectio divina, da leitura orante dos textos sagrados, a exemplo dos grandes santos, que fizeram da sua vida uma escuta obediencial do Deus que fala através da Sua palavra encarnada em palavras humanas. Onde for possível, institua-se uma Escola da Palavra, que seja oportunidade de apresentar a riqueza inesgotável dos textos bíblicos. 5. Vejo como muito útil a prática de certos movimentos de escolher uma palavra da Escritura para cada mês, a Palavra de Vida (Filipenses 2,16) que orienta decisões, opções, que ilumina problemas e sobre cuja vivência se trocam experiências. De facto, o crescimento e a difusão da Igreja coincidiram, nas origens, com a difusão e expansão da palavra. 6. Proponho que as reuniões, já habituais, nas paróquias e nos movimentos eclesiais, se iniciem com uma breve leitura e consecutiva meditação de um texto bíblico, em clima de oração. 7. Será de multiplicar as celebrações da palavra, até porque os sacerdotes não podem celebrar a eucaristia com a frequência desejada das comunidades. É bom ter em atenção que a palavra proclamada é também presença de Jesus no meio do seu povo. 8. A nível diocesano, sente-se a conveniência e a urgência de um Secretariado bíblico que possa fornecer subsídios para uma devida animação bíblica de toda a pastoral; de uma pastoral bíblica passar-se-ia a uma animação bíblica de toda a pastoral, como é desejo expresso da Igreja universal e realidade fecunda em tantas comunidades ao perto e ao longe. Daremos passos para o constituir. 9. Nem sempre os Programas Pastorais deixam marcas. Será ousadia insensata esperar que em cada paróquia exista um “Grupo da Palavra” para descobrir o lugar da Palavra na vida das pessoas e das comunidades? Julgo que não e espero vivamente que estas propostas dêem fruto e fruto que permaneça. Isto seria um bom resultado destes três anos de Programa Pastoral dedicado a Tomar conta da Palavra para que ela tome conta de nós. Confio os projectos inscritos nesta Carta Pastoral a Santa Maria, ouvinte por excelência da palavra e Mãe do Verbo de Deus, a S. Paulo, apóstolo de Jesus Crucificado e Ressuscitado e incansável arauto da Boa Nova, ao Beato Frei Bartolomeu dos Mártires, pastor apaixonado pela Escritura, à Beata Alexandrina, que amava estar perto do Santíssimo, Jesus Eucarístico que Se dá na palavra e no pão e ao ilustre sacerdote, P. Abílio Correia, adorador de Jesus, Palavra e Pão, que ouso chamar de Cura d’Ars bracarense. Que a sua bênção e a sua intercessão façam frutificar as nossas comunidades no gosto da Palavra e na paixão por Jesus, Palavra de Deus feita carne que habita entre nós, para que todos tenham vida e a tenham em abundância. 3 de Janeiro de 2009 + Jorge Ferreira da Costa Ortiga, Arcebispo Primaz

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