A primeira Carta Encíclica, publicada por cada um dos últimos Papas, não tem servido apenas para assinalar o início do pontificado, mas tem sido o meio de cada um dos Pontífices revelar, à Igreja e ao mundo, a orientação que pretendia dar à missão que o Espírito Santo lhes confiou. Se é esta também a intenção de Bento XVI ao publicar a “Deus Caritas Est”, podemos concluir que a prática da caridade de forma organizada “enquanto pressuposto para um serviço comunitário ordenado” (“Deus caritas est”, n.º 20), estará no centro do ministério petrino do Papa. Porém, se esta Carta Encíclica não tiver objectivos de natureza programática, terá, pelo menos, o mérito de deixar claro, e em definitivo, que a missão evangelizadora da Igreja estará sempre truncada se “descurar o serviço da caridade” (n.º 22). Por isso, com a publicação desta Encíclica foi dado um grande passo para o reforço da consciência de que “o amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever, antes de mais, para cada um dos fiéis, mas é-o também para a comunidade eclesial inteira, e isto a todos os seus níveis: da comunidade local, passando pela Igreja particular, até à Igreja universal na sua globalidade” (n.º 20). É interessante verificar que já os nossos Bispos, na Instrução Pastoral sobre ” A Acção Social da Igreja” que publicaram em 1997, recomendavam o desenvolvimento da Pastoral Social no plano nacional e diocesano, esperando que nenhuma paróquia descurasse a criação ou consolidação de um serviço de acção social. (Cf IPASI 31 e 32). Neste comentário, limito-me a referir alguns dos aspectos que considero cruciais para a prática da caridade por parte dos fiéis, mas sobretudo como responsabilidade inerente à acção pastoral de cada comunidade cristã, tenha ela a dimensão de uma Igreja particular ou de uma paróquia. Ao iniciar o segundo capítulo da Encíclica, o Papa deixa, desde logo, bem explícito que a caridade da Igreja não é mais que a manifestação do próprio amor que une o Pai, o Filho e o Espírito Santo (“Deus caritas est”, n.º 19). Com efeito, nascida do amor de Deus, da graça de Jesus Cristo e da comunhão do Espírito Santo, a Igreja tem que testemunhar e actualizar, em cada tempo, o amor gratuito do Senhor pelos famintos de pão, de justiça e, em última instância, do Deus da esperança. Este “amor também precisa de organização” (n.º 20), porque o mundo da pobreza e da marginalização social é atravessado por múltiplos e variados factores que exercem a sua influência sobre ele. Se não existir uma autêntica organização e coordenação nas comunidades cristãs, não será possível lograr a realização de uma verdadeira acção libertadora das amarraras da miséria e da injustiça vividas por muitos irmãos nossos, pois cada um actuará segundo os seus projectos e interesses ou as “suas boas vontades”, apresentando uma multiplicidade de rostos e não mostrando, desde a comunidade, um único rosto: o do amor que brota do coração de Deus. É, por esta razão, imperioso que a “actividade caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e não se dissolva na organização assistencial comum, tornando-se uma simples variante da mesma” (n.º 30), não podendo perder a sua especificidade e identidade. Perante os problemas que, muitas vezes, nos perturbam como membros da comunidade eclesial, devemos olhar continuamente numa dupla direcção: para dentro e para fora (Cf n.º 34); para nós próprios e para o nosso agir (cf. n.º 37). São estes dois pólos que representam os autênticos desafios à prática da caridade. Deve realizar uma acção criadora, salvadora, para o interior e para o exterior. Só assim será animadora das suas próprias comunidades e da grande comunidade do mundo em que se incarna. Bento XVI alerta ainda para um dos grandes perigos em que poderão incorrer, os que realizam a acção sócio-caritativa que são o activismo, o secularismo e o proselitismo. Os dois primeiros poderão ser vencidos pela “oração, como meio para haurir continuamente a força de Cristo” (n.º 36); o terceiro nunca será tido como motivação por quem, com humildade, “sabe que o amor, na sua pureza e gratuidade, é o melhor testemunho do Deus em que acreditamos e que os impele a amar”(n.º 31). Muito mais se poderia reflectir sobre a segunda parte desta Encíclica. Mas oportunidades não hão-de faltar, porque acredito que os cristãos vão ler atentamente, meditar e ajudar as suas comunidades cristãs a pôr em prática estes tão oportunos e valiosíssimos ensinamentos de Bento XVI, cientes de que “para a Igreja a caridade (…) é expressão irrenunciável da sua própria essência” (n.º 25). Que assim seja! Eugénio Fonseca, Presidente da Cáritas Portuguesa