Cada um de nós pode fazer a diferença

Em resposta aos efeitos da crise alimentar em Portugal – e ao consequente agravamento da fome, “a vergonha do mundo moderno”, a presidente do Banco Alimentar contra a Fome apela à serenidade, para conter a especulação. Isabel Jonet acredita que, mais do que donativos em dinheiro, as famílias carenciadas precisam de serviços de apoio e, nessa obra, cada contributo pode fazer a diferença No topo da agenda internacional, a crise alimentar que se adivinhava há meses e fez agora disparar, a nível mundial, os preços de alimentos tão básicos como as farinhas, o arroz ou o leite, está a preocupar governos e agências mundiais, organizações de intervenção social e humanitária e população em geral. Em Portugal, a situação pode agravar-se pela conjuntura económica, que está a gerar novos pobres urbanos, sobreendividados, mas a realidade exige acalmia nas reacções e “muita ponderação” nas medidas estratégicas a adoptar. O VER preparou um mini-dossier sobre o tema, procurando dar conta do contexto internacional e nacional desta crise alimentar, das muitas vozes que se levantaram, nas últimas semanas, contra o agravamento da fome, e do destino das Ajudas Oficiais ao Desenvolvimento, segundo o mais recente relatório da OCDE. Para avaliar o panorama em Portugal, entrevistámos uma das mais profundas conhecedoras da realidade no terreno das famílias carenciadas, a presidente da Federação de Bancos Alimentares contra a Fome, Isabel Jonet. O ministro Vieira da Silva já garantiu que “não há risco de fome” em Portugal, se a rede de instituições de apoio a pessoas carenciadas funcionar eficazmente. Que comentário lhe tece esta afirmação? De facto, existem riscos de carências alimentares. As famílias carenciadas têm orçamentos muito limitados, nos quais a parcela dispendida com a alimentação representa um grande peso, a par da factura gasta em medicamentos. Como o preço dos alimentos está mais elevado e como não podem deixar de comprar os medicamentos – precisam deles para viver – têm de comer menos e portanto, pessoas que já tinham uma nutrição deficiente, muitas vezes alimentando-se apenas com o que lhes é fornecido pelas instituições de carácter social, vêem-se agora confrontadas com uma situação muito dificil. Portanto, quando o Governo diz que não há risco de fome, isso depende de qual é o conceito de fome. A situação nos países desenvolvidos do Ocidente não é comparável com a situação em África, mas posso garantir que em Portugal há ainda muitas pessoas que não comem duas refeições completas por dia e estima-se que existam 35 mil que não comem sequer uma refeição completa. Os dados mais recentes do INE indicam dois milhões de pobres em Portugal… Sim, mas a pobreza não tem nada a ver com a fome, são medidas e conceitos diferentes. É preciso ver qual é o critério da pobreza, pois esses dois milhões de pobres são pessoas que muitas vezes comem. Agora, neste caso específico em que se dá um acréscimo no preço dos cereais, o que acontece é que as pessoas ficam sem recursos financeiros para adquirir todos os bens de que necessitam para se alimentar. No caso dos idosos, por exemplo, essa situação sente-se de uma forma ainda mais premente, porque a inflação no preço dos produtos alimentares tem sido muito superior à taxa da inflação nacional e, sobretudo, muito superior aos acréscimos nas pensões de reforma. Mas esta questão põe-se com igual aquidade no caso das famílias sobreendividadas, que constituem hoje um novo grupo de pobres. O que deve fazer o Estado, para controlar os preços e o consequente aumento da fome? Nas últimas semanas, várias instituições humanitárias e de carácter social vieram reclamar uma intervenção do Governo, por exemplo, criando fundos de alimentos, dando benefícios fiscais aos mais carenciados… No meu entender, não é dando dinheiro que se resolvem este tipo de situações. Eu sou mais adepta do dar serviços de apoio do que do dar subsídios, porque muitas vezes estes não são empregues naquilo a que se destinam. Ao Estado cabe a definição de estratégias e a adopção de medidas que venham potenciar esse tipo de estratégias. Não tenho, como ninguém tem, fórmulas mágicas, mas acho que nesta altura é fundamental manter a serenidade. Tenho visto pessoas mais velhas (que viveram em tempos com os limites à aquisição de bens próprios de uma situação de guerra) a entrar quase num pânico e essa intranquilidade só pode ter efeitos nefastos, porque leva a uma corrida aos supermercados que só produz uma escalada ainda maior dos preços, já que o aumento da procura gera especulação. Há que manter a serenidade e analisar a situação das pessoas mais carenciadas com ponderação. Mas então não defende a criação de fundos alimentares para fazer face ao agravamento da fome? – Em Portugal ainda não se justifica isso, e acho mesmo que temos de ter calma neste tipo de reacções que podem até, nalguns casos, ser excessivas. Temos de avaliar bem aquilo que é possível fazer. O programa comunitário de ajuda alimentar a carenciados irá distribuir, em 2008, 14 milhões de Euros em alimentos, segundo anunciou o ministro. Acha que este valor poderá ter de ser revisto, na sequência da crise alimentar? Obviamente, se pretendemos ajudar as pessoas e se os produtos alimentares estão mais caros, o programa de distribuição de alimentos a pessoas carenciadas tem de ser reforçado, mas tudo isto tem de ser visto numa estratégia mais global. Por exemplo, ao incentivar a cultura em terrenos agrícolas de plantas que servem para produzir biocombustíveis, em alternativa às culturas de cereais para fins alimentares e outros bens, está-se a perverter todo o sistema. Quando se arranca o trigo ou o milho para plantar soja ou cana de açúcar, porque são mais eficientes do ponto de vista do biocarburante, está-se a contribuir para que estes produtos agrícolas encareçam, obrigando a mais verbas financeiras. Portanto, há um conjunto de aspectos que têm de ser analisados e é aqui que os Governos têm de intervir, na definição dessas estratégias, o que requer muita ponderação. “Estima-se que em Portugal existam 35 mil pessoas que não comem sequer uma refeição completa por dia” E face aos “novos pobres”, os assalariados da classe média que estão endividados devido ao aumento das taxas de juro (especialmente no crédito à habitação), ao desemprego, aos baixos salários, ao aumento do custo de vida, em geral… é necessário incluir no programa de ajuda alimentar apoio a estes casos? Não, esses casos têm de ser ajudados de outra maneira, de modo a encontrarem alternativas para a sua vida, pois, na grande maioria, tratam-se de pessoas que estão em idade activa e têm um emprego com uma remuneração mensal, mas chegam ao final do mês e os rendimentos que têm não chegam para fazer face às despesas do seu agregado familiar. Disse recentemente que já receberam no Banco Alimentar pedidos de ajuda por parte de médicos, professores e outros profissionais qualificados… Sim, é verdade. Ainda esta manhã recebi um e-mail de um senhor que trabalhou como intérprete em Bruxelas, teve um acidente, voltou para Portugal e hoje não tem condições para pagar as suas despesas de alimentação e a prestação da casa. E são pessoas qualificadas… Que não devem entrar para as estatísticas do programa de ajuda alimentar? Devem entrar, mas com todo um olhar que é diferenciado. Por isso é que digo que tem de haver toda uma boa definição estratégica. O que eu também digo é que não irá haver escassez de alimentos em Portugal, mas uma subida de preços que afectará, de forma mais grave, as populações carenciadas. A não ser que sejam agricultores pobres que, segundo o secretário-geral da ONU, representam oitenta por cento da pobreza no mundo, não é? Sim, mas mesmo esses podem retirar mais alguns proveitos, mas isso não chega. Hoje em dia não há em Portugal agricultura de subsistência, logo, a partir do momento em que se dá um acréscimo exponencial nos preços de alimentos básicos, como as farinhas ou o arroz, as populações ficam sem flexibilidade orçamental. Quem vai sofrer mais com este fenómeno são as populações pobres. A crise alimentar é, de facto, gravissima, e a maior preocupação podem vir a ser os seus reflexos sociais, porque onde não há pão, normalmente há grandes disturbios. Mas temos de ter calma. Tem ideia dos números da fome no País? Não, mas sei que há muitas, muitas carências alimentares. Há pessoas que comem muito mal, crianças que só comem graças às instituições de apoio e que chegam às creches e escolas sem o pequeno almoço tomado. Muitos idosos só tomam uma refeição por dia. É claro que a nossa realidade não é comparável às situações que se vivem em África, onde as pessoas estão dias seguidos sem comer, mas há graves carências alimentares. Face a esta realidade, que pressão é necessária da sociedade civil para proteger as famílias mais carenciadas? Que medidas podem tomar as organizações humanitárias e qual é, nelas, o papel dos voluntários? As organizações humanitárias podem ter um papel ainda mais importante do que o do Estado, face à sua proximidade e ao valor humano do seu trabalho. Sobretudo, a grande mensagem que há aqui a passar é que cada um de nós pode fazer a diferença. O contributo de cada um, com a sua postura de vida, é que distingue a grande intervenção da sociedade civil. É fundamental que as pessoas não se fechem em si próprias, no seu individualismo, e percebam que, com a sua maneira de estar, podem realmente fazer a diferença. A última recolha do Banco Alimentar reuniu a participação de 18 mil voluntários, confirmando que as pessoas se mantém, apesar das dificuldades crescentes, disponíveis para dar. É isso que importa, que cada um contribua sempre, ainda que pouco? É, e sobretudo que contribuam com as suas aptidões e atitudes pessoais. Por exemplo, fechando a torneira cada vez que lavam os dentes, não para poupar na factura da água, mas porque a água é um bem escasso a nível planetário. As escolhas de cada um de nós reflectem-se no bem estar da comunidade, no seu todo. Em matéria de voluntariado, as pessoas percebem facilmente que é fácil ajudar e quanto maior for a crise, mais adeptos conseguimos juntar Gabriela Costa

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