Cada um de nós é uma personagem do presépio e tem de sentir-se envolvido nesta história

O padre José Tolentino Mendonça, poeta e biblista, analisa os primeiros capítulos do Evangelho de São Lucas, à luz do atual tempo do Natal, onde todos os símbolos, como os animais no presépio ou a manjedoura, são importantes e contextualizados

Agência Ecclesia (AE) – São Lucas é o evangelista que nos dá uma narrativa mais completa e talvez com um rosto mais humano destes episódios do nascimento de Cristo?

Padre José Tolentino Mendonça (JTM) – Dentro dos evangelhos, apenas Mateus e Lucas têm o Evangelho da infância e é muito interessante porque ambos os evangelhos, contando a mesma realidade, situam-se em ângulos diferentes. Mateus escolhe falar de Jesus a partir de São José porque lhe interessava apresentar Jesus sobretudo para as comunidades judaicas, que eram cristãs, e então ali o papel do pai, do pai adotivo era o papel principal.

Lucas dá-nos duas grandes curiosidades, por um lado quem é o guia até ao presépio é Maria, a figura de Nossa Senhora no Evangelho da Infância de Lucas é aquela que abre as portas ao entendimento do primeiro mistério de Jesus. E depois o próprio Evangelho da Infância em Lucas, e isso é muito interessante, é como um musical, é uma polifonia, no final de cada grande cena nós temos um canto. Temos o canto do Benedictus, depois da anunciação a Zacarias que ia ser pai de João Batista, temos o cântico do Magnificat, quando Maria e Isabel se encontram, e temos o cântico do Nunc dimittis quando Simeão tem ao colo o menino na primeira apresentação no templo. De maneira que é também um Evangelho com muita alegria e temos também o coro dos anjos que vêm anunciar aos pastores que hoje lhes nasceu um salvador. É um Evangelho guiado por Maria, atravessado por uma profundidade teológica enorme mas também por um tom alegre, musical, quase como que se Lucas construísse uma polifonia de todas as nossas vozes num louvor ao menino que nasce.

 

AE – A narrativa da anunciação, Maria surpreendida pelo anjo que lhe aparece e faz esta revelação. Como podemos contextualiza-la, como surge esta narração ou este processo escolhido por Deus para se anunciar a uma rapariga de Nazaré (Galileia, Israel)?

JTM – As anunciações fazem parte da religião de Israel, também no Antigo Testamento nós temos anjos enviados a transmitir uma notícia de Deus, de maneira que quando Maria viu um anjo não morreu de susto porque de certa forma, no coração e na fé dela existia essa prática de Deus, de enviar dessa forma as suas mensagens. E o anjo é sempre condutor de uma mensagem muito importante da parte de Deus.

O texto da anunciação é um texto formidável a vários pontos de vista. Um deles é porque estabelece de facto um diálogo, não é uma imposição, é uma proposta que Deus faz aquela rapariga de Nazaré. O anjo revela-lhe o plano de Deus e Maria coloca questões, pergunta como é que isso pode ser, quer perceber o mandato de Deus e só quando o seu coração é ganho pela confiança na palavra de Deus e nesta racionalidade na fé que ela vai construindo no diálogo com o anjo Gabriel é que ela diz o seu sim: “Eis escrava do Senhor faça-se em mim segundo a sua palavra”. É um texto de facto fantástico porque situa a mensagem de Deus numa história concreta, o nome da donzela é Maria, ela vive em Nazaré num contexto que é muito identificado, o seu esposo chama-se José, estão todos bem identificados e é assim uma história concreta que Deus se dirige, com a qual Deus dialoga e convida Maria e também José, porque é agregado a esta história, convida-os a viverem a emergência da aventura do divino na história pelo mistério da encarnação de Jesus.

 

AE – Este “faça-se em mim”, esta resposta de Maria é um aceitar de uma realidade maior, não vemos aqui uma preocupação com pormenores da parte dela. Ela tem a perceção que será difícil?

JTM – Ela quer perceber o essencial. Maria quer perceber o essencial, pergunta “como poderá ser” e quando ela percebe que o próprio Deus virá em auxílio da fragilidade humana, que o próprio Deus conduzirá essa história, ela abre o seu coração numa atitude que para nós é um grande modelo. A palavra de Maria continua a ser inspiradora para a Igreja de todos os tempos, Maria no fundo sabendo uma parte mas não sabendo tudo dispõem-se na confiança a viver como parceira esta história sagrada.

 

AE – É um relato que no remete algo idêntico para o anúncio de Zacarias. O anúncio do nascimento de João que é quase o apresentador de Jesus.

JTM – É interessante porque São Lucas conta precisamente a história de Jesus sempre em paralelo com a história de João Batista. E nós podemos encontrar no Evangelho da Infância, nos primeiros três capítulos do Evangelho de São Lucas uma espécie de pandã de sincronia, a palavra exegética síncrise, uma comparação à anunciação Zacarias à anunciação Jesus: Zacarias canta, Maria também canta; à uma missão confiada a João batista, à uma missão confiada a Jesus; João Batista nasce, Jesus nasce. Depois acabam por se encontrar no capítulo terceiro, na cena do batismo de Jesus precisamente por João Batista mas onde João Batista se assume como percursor, como aquele que prepara o caminho deste Deus que vem em Jesus de Nazaré.

 

AE – Existe aqui um dado interessante que é a proposta do anjo a dois casais quase impossíveis: Zacarias casado com uma mulher de idade avançada e Maria que era virgem, que não estava casada, que estava apenas prometida.

JTM – Essa é de facto uma palavra muito interessante porque são dois nascimentos que têm o seu quê de problemático. Não são evidentes e isso mostra de facto que o modo como Deus vem à nossa história não é evidente, não é pelo caminho mais imediato e previsível mas há a imprevisibilidade de Deus. Aquilo que o anjo explica a Maria, a Deus nada é impossível. E de facto o que nós vemos é Deus vencer os impossíveis da história. A história concreta destes dois casais, Isabel e Zacarias, Maria e José para revelar a sua palavra.

 

AE – Esta visita de Maria a sua prima Isabel, que leitura podemos fazer deste pôr-se a caminho?

JTM – É uma cena extraordinária que diz muito de Maria: Maria pôs-se a caminho, apressadamente pelas montanhas da Judeia para ajudar Isabel. Por um lado há um fundo histórico normal, uma mulher grávida e uma pessoa já com alguma idade como Isabel precisa de uma presença amiga, feminina, nos trabalhos do parto que a ajude nos últimos tempos da sua gravidez e nos primeiros dias em que é mãe. Isabel precisava de ajuda mas Maria leva no seu seio uma ajuda maior que não é apenas a ajuda que uma mulher amiga pode dar a outra. Que uma parenta pode dar a outra mas é transportar o menino no seu seio, Jesus vai em socorro de Isabel e de João Batista que está para nascer como vem em socorro da nossa humanidade.

 

AE – É neste contexto que surge o Magnificat que é um cântico de exortação, de louvor, de reconhecimento.

JTM – É um cântico extraordinário, conta o abraço, o encontro daquelas duas mulheres e é como que uma dança em que se recupera a grande tradição do cântico feminino que anuncia a ação libertadora de Deus. De facto muitas palavras do Magnificat não são originais na boca de Maria, elas já nos aparecem, por exemplo, na boca de Ana, a mãe do profeta Samuel, e em outros passos da escritura e é um texto como uma força de fé extraordinária porque Maria enuncia a libertação de Deus, a alternativa de Deus. Este Deus que rebusca a história, que a revira mostrando as possibilidades inauditas que a história conserva. Ele reira os soberbos dos seus tronos, ele despede os ricos de mãos vazias, ele exalta os humildes, ele realiza as promessas de misericórdia feitas a Abraão e a nossos pais. É o cântico da alternativa de Deus, é de facto um cântico de uma beleza extraordinária e é interessante lembrar que Sofia de Mello Breyner quando lhe perguntavam qual é o poema mais lindo que conhece respondia sempre que “é o Magnificat no Evangelho de São Lucas”. É de facto o mais belo poema da humanidade em que se canta não apenas o passado mas canta-se o presente atuante redentor de Deus nas nossas histórias.

 

AE – Depois o nascimento. Numa primeira parte o texto fala da determinação das autoridades civis, o édito de recensear de César Augusto, de alguma forma também é uma forma de contextualização histórica e é um dado que aconteceu?

JTM – Lucas tem essa preocupação histórica de situar Jesus nas coordenadas do tempo e do lugar. E esse prólogo ao nascimento de Jesus é de uma enorme importância porque esse recenseamento de facto aconteceu, é um dado histórico e como em todos os recenseamentos as pessoas tinham de se deslocar de um lado para o outro. A razão pela qual Maria e José vivendo em Nazaré têm Jesus em Belém é cheia de uma grande verossemelhança histórica por causa deste recenseamento.

 

AE – Depois a questão do não haver lugar, como podemos ler esta situação, mesmo na realidade dos nossos dias em que as pessoas não criam lugar, não há lugar?

JTM – Podemos dar-lhe uma conotação histórica que tinha. Eles não estão na sua terra, estão ali deslocados, visitantes, forasteiros. Uma mulher grávida e em trabalhos de parto não é uma mulher que se possa acolher em qualquer lugar e é natural que naquela situação eles tenham tido muita dificuldade em encontrar essa hospitalidade mas tem também evidentemente uma leitura simbólica. Como se diz no prólogo de São João, “Ele veio ao que era seu e os seus não o reconheceram”. Este não reconhecimento há de marcar a vida de Jesus desde o primeiro instante da sua passagem pela terra.

 

AE – É escolhida aquela gruta, aquele lugar, não se especifica…

JTM – É um lugar de pastores, podia ser um piso térreo onde estavam os animais, podia ser uma gruta onde também os animais se recolhiam, mas era de facto um lugar marginal.

 

AE – Esta marginalidade tem uma carga que poderemos interpretar?

JTM – Tem também uma forte carga simbólica muito interessante. Tudo o que a narrativa descreve tem um grande sentido, por exemplo, a presença dos animais, o burro e o boi são muito importante no presépio ao contrário do que se pensa porque têm a ver com uma passagem do início do livro do profeta Isaías que diz, “o burro conheceu o seu dono e o boi conheceu aquele que o alimenta mas Israel não conheceu o seu Senhor”. A presença dos animais tem também quase que um sentido escriturístico, é quase como que um ato de fé para dizer que Jesus cumpre de facto aquela palavra e o facto de ser deitado numa manjedoura tem a ver com Jesus ser o alimento e se fazer dom. O seu último grande gesto, aquele que se perpetua no tempo é a eucaristia em que Jesus se torna alimento. Ele é colocado por Maria na manjedoura que é o lugar da comida, dos impuros. Jesus é alimento que se oferece e por isso também a manjedoura é um sinal que mais tarde vamos entender perfeitamente.

 

AE – Depois há o episódio dos pastores a quem o anjo anuncia este nascimento. O facto de serem pastores também podemos fazer uma leitura noutro prisma? Os pastores não são uma classe sacerdotal.

JTM – Há dois sentidos. Um é esse Evangelho da alegria, os anjos que dizem “anuncio-vos uma grande alegria que o será para todo o povo, hoje nasceu para vós um salvador”. É a grande alegria do nascimento de Jesus e o anúncio de uma salvação para todos, não para os eleitos mas uma salvação que chega a todos os homens e por isso veem os últimos. Isto é, aqueles que socialmente têm uma menor dignidade. Os pastores viviam fora das cidades, viviam a cuidar dos animais, eram considerados impuros e é interessante que são esses os últimos na escala social que primeiro chegam, que primeiro acolhem a adorar o Deus que nasce. Isso também já diz alguma coisa do ministério de Jesus que é o salvador de todos mas que abre o seu coração de uma maneira muito particular para os últimos de cada tempo e de cada sociedade.

 

AE- Estes últimos e no caso dos pastores também não se puseram com grandes perguntas para saberem ao certo o que tinha acontecido. Eles perceberam o mistério e puseram-se a caminho. Mais uma vez alguém que está a caminho?

JTM – Uma das coisas extraordinárias no Evangelho de Lucas é muitas vezes coloca-nos como modelo, os pecadores, os impuros porque ele diz: “os que se julgam santos justificam-se a si mesmos”, vivem numa autossuficiência e são aqueles que precisam de salvação que nos explicam o que é acolher a salvação. Também hoje podemos viver o mistério do Natal de uma forma muito autossuficiente, dispensando o próprio Jesus, como se o Natal fosse apenas uma conversa entre nós.

 

AE – No anúncio aos pastores a criança que nasceu é o salvador, já não é o filho de José e Maria. O que interessa é o salvador dado à humanidade?

JTM – Isso mostra a capacidade de ver o invisível. Quando os pastores se inclinam diante de Jesus estão a ver para lá daquilo que os olhos veem e o mistério da encarnação de Jesus pede de nós essa capacidade. Jesus é um de nós, vive a nossa história mas temos de ser capazes de olhar nele o Deus connosco, o Deus que se faz presente nas nossas vidas.

 

AE – O papel dos pastores não termina no facto de irem visitar porque eles regressam exultantes e anunciando aos outros o que viram. Este nascimento, esta mensagem não é para guardar no segredo, na satisfação pessoal de cada um é para comunicar aos outros?

JTM – Um dos traços muito belos na narrativa da infância é essa espécie de propagação. Eu vi e vou chamar outro a ver e vou dizer o que vi e vou contar e tece-se como uma espécie de polifonia. É como que uma luz que não se pode esconder e a propagação é hoje para nós um compromisso muito grande. No fundo vemos, ouvimos e lemos o que tocamos acerca do mistério da vida é aquilo que vo-lo anunciamos.

 

AE – É o desafio hoje passados estes anos nas conjunturas históricas, económicas e sociais que vivemos de nos deixarmos fascinar, emocionar, tocar por este nascimento do salvador que se revisita todos os anos?

JTM – Nós cristãos não vivemos estes acontecimentos apenas como acontecimentos históricos de um passado. Vivemo-los também na sua dimensão de presente e de futuro. Jesus não nasceu, nasce. Jesus não foi apenas contemplado por aqueles personagens que nós colocamos no presépio, cada um de nós é uma personagem do presépio e tem de sentir-se envolvido nesta história sentindo que ele nasceu para si. Jesus nasceu para que cada um de nós tenha a possibilidade de nascer mesmo sendo velho, mesmo sentindo que até já viveu coisas contraditórias mas somos chamados a sentir que Jesus nasce hoje para nos fazer nascer neste momento.

 

AE – Na forma de viver o Natal, os presépios já estiveram mais fora do imaginário do que agora?

JTM – Há um regresso. Penso que o texto de São Lucas pode ajudar muito. Era importante não cair numa estilização do presépio que o deslocasse do seu fundo bíblico porque há uma série de elementos que são muito importantes, como: o burro, o boi, a manjedoura. Pode parecer de facto que são supletivos mas são de facto elementos essenciais, tal como claro o menino, Maria e José. É interessante a tradição do presépio que é como o grande teatro do mundo, representam a vida nas aldeias e vemos os presépios populares portugueses, o de Machado de Castro mas mesmo esses de barro anónimos que todo o mundo é colocado no presépio. É muito bonito porque é acreditar que Jesus nasce neste mundo concreto e é muito curioso.

 

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Agência ECCLESIA

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