Cabo Delgado: « Os números são dramáticos», diz bispo de Pemba sobre consequências da violência

A violência religiosa causou mais de 5 mil mortos e mais de um milhão de deslocados nos últimos cinco anos na região do Cabo Delgado, no norte de Moçambique. O dado, inscrito no Relatório da Liberdade Religiosa no Mundo 2025, serve para início de conversa com D. António Juliasse, bispo de Pemba e Presidente da Comissão Justiça e Paz da Conferência Episcopal de Moçambique, o entrevistado deste domingo da Renascença e da Agência Ecclesia

Foto Vatican News, D. António Juliasse

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Desdobrou-se nos últimos dias os alertas para o aumento da violência em Cabo Delgado. E fê-lo, por exemplo, durante a 14ª Assembleia Plenária dos Bispos da África Austral. Isso significa que a instabilidade está de volta à região?

Eu não usaria a palavra estar de volta, porque nunca cessou. O conflito de Cabo Delgado tem oito anos, oito anos ininterruptos. O que tem acontecido é que às vezes não há muita divulgação ou não há muita informação a respeito do que está a acontecer em Cabo Delgado.

 

Sobretudo a nível internacional? Deixou-se de falar dos ataques e das mortes em Cabo Delgado, contudo isso não significou uma diminuição do problema…

Sim, sim, é exatamente isso. O que eu fiz na nossa 4ª Assembleia Plenária da IMBISA [Associação Inter-regional dos Bispos da África Austral] foi tentar informar todos os bispos sobre o que está a acontecer.

 

E que relatos mais recentes, pode partilhar connosco?

Nós tivemos no mês de junho, julho, agosto, setembro, outubro, ataques intensos e dispersos em toda a província de Cabo Delgado, provocando nova onda de deslocados, mortes e muitas igrejas destruídas para além das várias outras infraestruturas, incluindo a habitação das povoações. Portanto, a característica desta violência permanece como foi desde o início, com novos elementos que mostram que eles vão aprimorando cada vez mais as suas estratégias e técnicas de violência.

 

E até que ponto estas situações estão estritamente ligadas à questão da liberdade religiosa, ou colocando a questão de outra maneira: muitas destas ocorrências são por razões econômicas?

Diria que os dois elementos, os dois fatores; o religioso e os económicos e sociais, são de ter em conta, mas na verdade há muitos mais fatores que estão todos interligados. O elemento económico, a pobreza, a falta de oportunidades para a juventude e até a falta de sonhos, de ver que os seus sonhos podem ser realizados, colocam os jovens vulneráveis para poderem aceitar qualquer tipo de aliciamento, que envolve também ganhos económicos ou até uma ocupação para eles. O elemento económico está presente, mas o que nós temos visto e que motiva bastante o tipo de violência e de adesão é o fato de usarem a ideologia extremista jihadista e que mobiliza bastante os jovens dos círculos islâmicos extremistas.

 

As diversas instituições de carácter humanitário que operam no terreno também são confrontadas naturalmente com as dificuldades causadas por essa instabilidade e insegurança. Tem conhecimento de algumas que foram obrigadas, por exemplo, a deixar de operar?

Nós temos tido reuniões de coordenação com as agências humanitárias que operam aqui em Cabo Delgado, através da Cáritas de Diocesana, ou de tempos a tempos tenho tido audiência no meu escritório para me informar em o que está a acontecer. Muitas organizações não estão a operar em zonas muito mais tensas, por falta de segurança e agora estão a tentar mudar um pouquinho de estratégia nessas zonas onde eles não podem operar. Estão a tentar encontrar organizações locais constituídas por pessoas que se encontram naquela região para poderem fazer a sua vez.

 

Uma delas eram os Médicos Sem Fronteiras, que na última semana diziam que não tinham possibilidade e meios para poder operar?

Os Médicos Sem Fronteiras estão em zonas até mais críticas, estão presentes, mas o problema às vezes é que os recursos começam a escassear, porque não sendo visualizado, não sendo muito falado este conflito de Cabo Delgado ao nível internacional, o interesse de financiar as organizações humanitárias também diminui e várias organizações estão a sofrer por causa disso.

 

Nesse sentido também, como é que é a igreja local que continua a ser um sinal de esperança para este povo em diáspora permanente? 

Nós definimos aqui a nossa forma de ser como igreja cujo rosto de Cristo é aquele rosto de Cristo na Cruz. Esta imagem que nós temos na nossa missão é também a nossa força para saber que nós temos de ser missionários mesmo nestas circunstâncias muito difíceis, e também sermos para o povo um sinal de esperança, não é? Isso eu tenho visto, experimentado pessoalmente quando vou em visitas pastorais, quando eles me dizem que é possível chegar e eu vou, e vejo a alegria enorme que eles demonstram porque Deus está presente, Deus não os abandona e a figura de um pastor, de um missionário faz quase concreta esta presença de Deus que não os abandona.

 

O Papa Francisco foi sempre um farol bem vivo na denúncia da situação e o Papa Leão também já fala com frequência deste conflito. O senhor acredita que enquanto não houver uma posição firme internacional não vai ser possível sanar este conflito?

O Papa Francisco foi muito próximo de Cabo Delgado, temos aqui apoios que vieram diretamente dele, temos dois hospitais construídos e que estão em seu nome, construídos nas zonas dos deslocados. O Papa Leão também tem muito interesse, ele pronunciou-se na praça de São Pedro, mas fora desse pronunciamento público de oração, de pedido de oração, o Santo Padre tem estado sempre atento ao que está a acontecer aqui através do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, e, portanto, nós ficamos muito confortados por esta presença tão paterna, tão cordial do Santo Padre aqui, nesta situação que nós vivemos.

 

O desconforto é porque a comunidade internacional não tem uma posição firme?

Eu não sei, porque isto já ultrapassa a todos os contornos diplomáticos, não é? Ultrapassa-me, porque como sabem, este é um país e a comunidade internacional não pode avançar se não há posições claras dentro do país e o que é que podem colaborar, o que é que podem ajudar.

 

Tem dito que a violência nestes oito anos nunca parou e a pergunta é:  as autoridades nacionais, as autoridades moçambicanas são impotentes para travar estes ataques terroristas?

É que este tipo de guerra que estamos a ter não é o que o país já teve antes. O país teve a guerra dos 16 anos, sabia-se onde é que estavam as tropas da RENAMO e havia clareza nisso, mas com o terrorismo que nós vivemos agora, ou esta insurgência, que não se definiu claramente qual o nome que se pode dar, é mais complicado. Eles falam do califado e falam da jihad, e também nós sabemos que estão ligados ao Estado Islâmico, porque eles mantêm sempre uma publicação corrente nos sites do Estado Islâmico. Isto mostra que é uma violência que tem ligações internacionais, e, portanto, o seu combate não pode ser só adstrito aqui, as forças armadas locais. O problema para combater o terrorismo aqui em Cabo Delgado, não será apenas a geografia de Cabo Delgado. Tem de incluir várias outras respostas nacionais e respostas internacionais, penso que ali é que há ainda dificuldade de se perceber.

 

E insisto: falta então essa resposta internacional, não é?

Falta, falta, falta uma resposta mais coordenada ao nível nacional e também uma resposta internacional.

 

Um ano depois das eleições gerais, marcadas por momentos de tensão e contestação, o país pode finalmente dizer que regressou à normalidade? Já agora, que leitura faz do atual clima político e social em Moçambique? Há condições reais para um diálogo inclusivo?

Voltar à normalidade como quando terminou o Covid, não é voltar para trás. É que nós voltamos a uma situação, digamos, de falta de violência e tal. O país ficou pacificado, mas não é que o país voltou para a situação que se encontrava antes. Aquele momento que se seguiu às eleições gerais de outubro do ano passado criou uma consciência crítica muito grande e dá para perceber até hoje a situação tensa que o país vive. As pessoas estão muito atentas e até, de certa forma, muito exigentes em relação ao que é tratado politicamente no país. Portanto, o país ganhou, digamos assim, nova forma de estar e de ser em relação à coisa pública e em relação aos assuntos políticos. Agora há apelos ao diálogo nacional e inclusivo.

Há certas críticas por não se incluir o Venâncio Mondlane, e que de certa forma, promoveu aquele ambiente todo que se seguiu às eleições. Há críticas em relação a isso, mas o exercício é saudável. É bom pôr os moçambicanos a discutirem os seus problemas e a tentarem encontrar, por via do diálogo, caminhos mais acertados.

 

A esse respeito, a Igreja Católica em Moçambique acaba de lançar a Cartilha Política para o Diálogo Nacional, uma proposta de educação cívica voltada para a consolidação da paz, da unidade e do desenvolvimento sustentável. Pergunto que impacto, olhando a tudo o que nos disse hoje, que impacto espera que ela tenha, sobretudo no envolvimento dos mais jovens e das comunidades cristãs? 

Nós achamos que, assim como para as eleições gerais, temos feito um trabalho de sensibilização, um trabalho de educação cívica, que desta vez também devíamos fazer alguma coisa. E fizemos a Cartilha da Política para o Diálogo Nacional e Inclusivo, que é como um instrumento para mobilizar os cristãos e as pessoas de boa vontade da sociedade moçambicana para entenderem os pontos que estão sendo discutidos. Nós tentamos colocar uma linguagem muito simples, usando uma metodologia, do que se trata, qual é o assunto, quais são os pontos críticos e qual é a visão da doutrina social da Igreja Católica em relação a isso, ou qual é a posição da Igreja de Moçambique, e essa posição foi tirada das muitas cartas pastorais que foram divulgadas ao longo dos tempos em relação aos assuntos políticos candentes em Moçambique.

 

Nós vamos terminar a nossa entrevista, a nossa conversa, e eu deixava para o final – até porque o referiu ainda há pouco, que por vezes a Comunidade Internacional está alheada do conflito – a possibilidade de deixar um apelo no sentido de tudo se fazer para tentar estancar estes oito anos de terrorismo em Cabo Delgado.

Para estancar o terrorismo em Cabo Delgado há dois aspetos importantes. O investimento para que a província de Cabo Delgado tenha mais possibilidade de gerar emprego e que os jovens possam realmente encontrar caminhos para poderem construir as suas vidas e sustentar as suas famílias. Isso é muito importante o investimento. E o outro caminho é ajudar o Estado moçambicano a compreender com mais propriedade o que está a acontecer e também favorecer com meios de combate aos fenómenos de terrorismo, até porque a Comunidade Internacional tem experiências em outros quadrantes. Seria bom trazer esta experiência para que o país também possa aprender e com isso ter meios para dar uma boa resposta ou uma resposta mais eficiente e efetiva. O diálogo também é outro caminho que acho que nós como Igreja sempre advogamos e penso que este caminho deve ser começado. E se for possível começar esse diálogo vai ser também muito importante a presença e a ajuda da Comunidade Internacional, tomando em consideração que o que está a acontecer em Cabo Delgado tem ligações internacionais já comprovadas.

 

E os números são dramáticos, não é?

Os números são dramáticos, só nos dois meses, setembro e outubro, temos novos 70 mil, alguns dados falam já de 90 mil deslocados, mas são novos deslocados que se juntam a tantos outros deslocados que estão aqui na província de Cabo Delgado. Alguns já não são considerados deslocados internos porque já estão há dois, três anos nessa condição e, portanto, são chamados por reassentados. Então nós temos a população reassentada porque foi forçada a sair da sua aldeia e está reassentada em zonas onde não há muitas condições também para poderem ter uma vida normal e depois juntam-se a isso novos casos de deslocados.  E as respostas de ajuda são cada vez mais diminuídas. Portanto, apelo para que não se esqueçam de Cabo Delgado e desta situação humanitária que cá passamos, porque sem ajuda internacional não podemos ter uma grande resposta. Por outro lado, também aproveito a Rádio Renascença para agradecer porque nestes oito anos nos campos de deslocados internos não temos registos de muitas mortes porque tivemos de certa forma essa ajuda de solidariedade que nos chegou de várias pessoas. Para aqueles que escutam esta entrevista e tenham participado com seus apoios de forma singular ou coletiva em favor de Cabo Delgado, como bispo da Diocese de Pemba, aproveito para deixar aqui o meu agradecimento.

 

 

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