Busca de Deus contra o relativismo e o fanatismo

Discurso do Papa ao mundo cultural francês destaca importância das raízes cristãs na cultura europeia Bento XVI deixou esta Sexta-feira um alerta contra o “fanatismo fundamentalista”, apelando a uma compreensão correcta da Bíblia e do conceito de liberdade, para evitar a destruição da racionalidade. O Papa falou durante cerca de 50 minutos, num aguardado discurso dirigido a 650 representantes do mundo cultural francês, entre os quais se encontravam Jacques Chirac e Giscard d’Estaing, entre outros. Aos presentes, apontou dois riscos do nosso tempo: o já referido “fanatismo fundamentalista” e a “arbitrariedade do relativismo”. O Papa centrou-se sobre o papel dos mosteiros como “locais da busca de Deus” que salvaram a “cultura antiga” e criaram uma nova cultura. Neste contexto, ao destacar a importância da Bíblia, convidou a uma interpretação que vá para lá da letra, como “antídoto contra o fundamentalismo”. Segundo Bento XVI, a verdadeira “atitude filosófica” é “olhar para lá das coisas penúltimas e pôr-se em busca das últimas, as verdadeiras”. Esta busca de Deus, “quaerere deum”, foi o fio condutor do longo discurso papal. Inspirado pelo local onde se desenrolou o encontro – o Colégio dos Bernardinos, uma jóia da arquitectura cisterciense, do século XIII – Bento XVI falou longamente do papel do monaquismo nas origens da teologia ocidental e da cultura europeia. “Aquilo que fundou a cultura da Europa, a busca de Deus e a disponibilidade para ouvi-lo, permanece ainda hoje como o fundamento de toda a verdadeira cultura”, afirmou. Citando São Bento (480-547), que falava na “confusão dos tempos” quando fundou o monaquismo ocidental, o Papa frisou que esta confusão continua presente e que, tal como dizia São Paulo, Deus é o “grande desconhecido” do nosso mundo. “Uma cultura meramente positivista, que atirasse para o campo subjectivo – como não-científica – a questão sobre Deus, seria a capitulação da razão, a renúncia às suas possibilidades mais altas e, por isso, o colapso do humanismo, cujas consequências não poderiam deixar de ser graves”, indicou. Bento XVI deixou outro alerta, ao considerar que “seria fatal se a cultura europeia de hoje compreendesse a liberdade só como a falta total de obrigações e, com isso, favorecesse inevitavelmente o fanatismo e a arbitrariedade”, conduzindo à “destruição” da liberdade. O Papa citou por diversas vezes os escritos de São Paulo para frisar que há “um limite claro para o arbítrio e a subjectividade”. “Na origem de todas as coisas não deve ser colocada a irracionalidade, mas a razão criativa; não o acaso cego, mas a liberdade”, disse Bento XVI noutra passagem do seu discurso, antes de traçar um paralelo entre as cidades de hoje e o tempo de São Paulo, no século I: “Hoje, como então, por detrás das numerosas imagens de deuses está escondida e presente a pergunta sobre o Deus desconhecido”. Elogio do monaquismo Bento XVI lembrou que “os monges desejavam a coisa mais importante, “encontrar a própria Vida”. “Por detrás do provisório, procuravam o definitivo”, sublinhou. “Como eram cristãos, não se tratava de uma aventura num deserto sem caminho, de uma busca em total obscuridade. O próprio Deus colocou marcos no caminho, ou melhor, aplanou as veredas. Por isso a tarefa deles era descobrir o caminho e segui-lo”, precisou. Para o Papa, a busca de Deus requer intrinsecamente “uma cultura da palavra”. “A biblioteca, como também a escola, fazia assim parte integrante do mosteiro”, recordou. Bento XVI sublinhou que “a Palavra que abre o caminho da busca de Deus e que é, em si mesma, esse caminho, é uma Palavra que suscita o nascimento de uma comunidade”. “A Palavra de Deus só chega até nós através da palavra humana, através das palavras humanas, por outras palavras, é somente na humanidade dos homens que Deus nos fala, através das suas palavras e da sua história”, prosseguiu. Para o Papa, “a Escritura tem necessidade de ser interpretada, tem necessidade da comunidade onde se formou e viveu”. “A estrutura própria da Bíblia constitui um desafio sempre novo colocado a cada geração. Por sua natureza, ela exclui tudo o que hoje em dia se designa como fundamentalismo”, assegurou. Bento XVI indicou que “a Palavra de Deus nunca está simplesmente presente na mera literalidade do texto. Para a atingir, é necessário uma superação e um processo de compreensão que se deixa guiar pelo movimento interior do conjunto dos textos e, a partir daí, tornar-se igualmente um processo vital”. Este processo vital é vivido num “tensão entre o elo da inteligência e o elo do amor”. Por isso, indicou, “esta tensão entre o elo e a liberdade, que vai bem para além do problema literário da interpretação da Escritura determinou também o pensamento e a obra do monaquismo e modelou profundamente a cultura ocidental”. Já na parte conclusiva da sua intervenção, Bento XVI referiu ainda a dupla dimensão da vida monástica – “ora et labora” (reza e trabalha), para referir que sem esta cultura do trabalho que, com a cultura da palavra, constituiu o monaquismo, “são impensáveis o desenvolvimento da Europa, o seu ethos e a sua concepção do mundo”.

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