António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
Contrastando com outros concorrentes, que optaram por castelos, carros e objectos de campanhas publicitárias de ocasião, aquele menino havia construído uma escultura de homenagem ao futebolista que mais admirava na equipa da sua predilecção. Com a bola colada à chuteira e naquela posição, o jogador encontrava-se na melhor situação que o menino considerava ideal para a marcação de mais um golo. Aquele jogador era o goleador da equipa e ele, o escultor de ocasião, pretendia homenagear o seu ídolo da bola naquele concurso de construções de areia que o Município local havia promovido. E era indescritível o entusiasmo daquela criança em quem o professor encontrava sensibilidade e talento de artista.
Tudo parecia estar perfeito e aproximava-se a hora da visita do júri. Nem o título faltava. Numa pequena pedra que as ondas do mar haviam polido, aquela criança, com letras desenhadas com perfeição, havia escrito: «O Goleador». Nada mais. Toda a gente sabia quem era o goleador. Não seria necessário indicar qualquer nome, pensava.
Mas, num instante, uma inesperada onda traiçoeira tudo desfez. Só a pedra de «O Goleador» resistiu e, mesmo essa, deslocou-se um pouco mais para além.
O tempo urgia. Era necessário superar a inesperada situação. O júri já começava a observar as obras de outros concorrentes e em breve chegou ao seu espaço.
– Onde está «O Goleador»? – Perguntou o presidente do júri ao olhar para aquela pedra colocada em lugar de honra naquele metro de praia onde parecia não haver mais nada para observar.
– Está ali dentro a festejar a vitória com o golo que ele meteu. – respondeu aquele menino enquanto, com tristeza, apontava para uma cova feita naquele espaço varrido pelo mar e que dava acesso a uma gruta cavada à pressa na areia molhada.
Consta que este menino ganhou o primeiro prémio do concurso.
Há dias comemorativos de tudo. Raros serão os dias do ano que não são comemorativos de qualquer coisa. Dias há que são múltiplos: neles cabem várias comemorações. Se uns são profusamente badalados, outros serão esquecidos e ignorados; uns mais necessários e outros mais supérfluos. Alguns serão até risíveis, pelo menos quando nos encontramos menos informadas. Tantos são que mesmo aqueles que foram criados para proporcionarem alguma disrupção na nossa vida acabam por nos deixar insensíveis. Outros há que foram de tal modo açambarcados pela sociedade de consumo que o seu significado profundo fica de todo ensombrado pelo afã do comércio. Por essa e outras razões, encaro sempre estes dias com algum espírito crítico.
Haverá muita gente que nunca terá ouvido falar no «Dia de Brincar na Areia». Eu, que tanto brinquei na areia com filhos, netos e sobrinhos, estava nesse grupo até há dias. Sim, foi há dias que soube que havia um «Dia de Brincar na Areia». Uma originalidade proveniente, como outras originalidades estranhas, dos Estados Unidos da América e que rapidamente se terá espalhado por muitos países. Soube-o casualmente quando me achava a pensar na data do Encerramento dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, dia 11 de Agosto. Numa daquelas maravilhas em que o Google é mestre, os jogos de Paris levaram-me, num instante, para um mar imenso de areia. O dia 11 de Agosto – fiquei então a saber – é também o «Dia de Brincar na Areia». Achei curiosa esta coincidência, enriquecida ainda mais porque esse é também o «Dia de Santa Clara», a santa de Assis que, deslumbrada com a pobreza evangélica de São Francisco, vai ter com este santo à Porciúncula e acaba por fundar a secção feminina da Ordem Franciscana.
Brincar na areia foi sempre comum nas praias de Portugal que as ondas foram colocando na nossa costa ao longo dos tempos. Nossa, do extremo da Europa, e de outras praias do mundo, como aquela do Norte de África, passeada por Santo Agostinho [354-430: 28 de Agosto] para desvendar os mistérios divinos ao som e movimento das ondas no vaivém interminável. Já nessa altura a praia seria o lugar de descanso, jogos vários e de brincadeiras de crianças na areia, mas também de desafios, poéticos e especulativos, que a imensidão das águas coloca ao espírito humano.
A lenda é bem conhecida e divulgada. Ela aparece até em várias versões e, como que a «brincar na areia», valerá a pena revisitá-la.
Naquela praia de Hipona, passeava-se Agostinho nas suas cogitações sobre o mistério da Trindade. O seu pensamento seguiria, certamente, o ritmo das ondas naquele contínuo vai e vem para tentar encontrar uma solução racional para aquele grande mistério de Deus Trindade. Entretanto uma criança havia feito uma cova na areia e, num movimento contínuo ao ritmo das ondas, com um pequeno recipiente vai trazendo água do mar para aquela cova. Agostinho pára, interrompe a especulação, observa por momentos a cena e atreve-se a dirigir-se ao menino entretido com aquele jogo aquático de deixar na sombra qualquer jogo da cidade de Olimpo.
– Olá! O que estás a fazer, meu menino?
– Olá! Estou a trazer toda a água do mar para esta poça. – respondeu, de imediato, a criança.
Tocado por aquele jogo de menino inocente, o Bispo de Hipona comenta:
– Oh, meu menino. Mas tu não vês que o mar é imenso e a tua cova é muito pequenina para poder conter toda aquela água? Vê que é impossível trazer o mar para a tua cova.
Aquele menino poderia ter dito que era uma brincadeira, que era a fingir. Seria a resposta mais natural. Mas foi outra e bem misteriosa a observação daquele menino que parecia brincar na areia como tantos meninos da sua idade.
– Pois fica a saber que é mais fácil para mim transportar toda a água do mar para esta pequena cova do que tu, só com o poder da tua razão, compreenderes as profundezas do mistério da Trindade.
Sem mais dizer, aquele misterioso menino desapareceu deixando bem visível a cova feita na areia da praia. E, por longo tempo, Agostinho, sem poder esquecer as palavras que acabara de ouvir, ali ficou, contemplativo, a olhar para aquela pequena cova.
Fosse quem fosse aquele menino brincalhão, o Menino Jesus ou um Anjo de Deus, o certo é que, como nos grandes mitos, esta lenda, não sendo verdadeira naquilo que narra, é verdadeira no que significa. Deus brinca suavemente com o Homem na imensidade da sua criação e o Homem brinca com Deus na pobreza e pequenez dos seus conceitos racionais.
Numa qualquer praia de brincadeira de meninos, há sempre uma cova frágil feita na areia a esconder a imensidão do Mistério Divino. Nessa praia qualquer, todos os dias podem ser dias de brincar na areia, mesmo quando a pobreza humana é tão grande como a de Clara quando se apresentou ao pobre Francisco de Assis.