Breves considerações sobre o contexto social e jurídico decorrente do incumprimento por particulares de contratos de mútuo com hipoteca para aquisição de imóvel

António do Espírito Santo, advogado

I – Enquadramento da questão

A questão em análise neste texto surge em consequência de um reiterado incumprimento, neste momento, já de cerca de 700.000 famílias, dos contratos de mútuo para aquisição de habitação, devido essencialmente à crise económica e situações de quebra de rendimentos e desemprego em, particular de que sofrem tantos portugueses.

Se entendermos que, em média, uma família é constituída, no mínimo, por três pessoas, teremos forçosamente que concluir que este drama afeta mais de dois milhões de portugueses, ou seja, cerca de um quarto da população.

Não é objeto deste breve  estudo perorar ou tecer considerações sobre as causas da crise, do sobre-endividamento de Portugal, e das nefastas consequências de a mesma ter surgido, na sua dureza implacável, nos últimos dois anos, com a exigência aos portugueses de sacrifícios há bem pouco tempo inimagináveis.

Mas a verdade é que esta frieza dos números, torna esta matéria numa questão social premente de resolução mas que necessariamente terá de ser encontrada no respeito do sistema jurídico e na inclusão unicamente das situações que sejam objeto de tutela dentro do equilíbrio de direitos entre o devedor adquirente do bem e o mutuante que concede os valores necessários para prover à compra.

 

II – O Contrato de Mútuo (empréstimo) com Hipoteca

Define o artigo 1142º do Código Civil que o contrato de mútuo é aquele em que uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto no mesmo género e qualidade.

Fica, assim, desde já fixado que o contrato de mútuo (empréstimo) tem a perfeição dos seus elementos na entrega do dinheiro e na obrigação de o restituir, com os respetivos juros e encargos, no caso do mútuo oneroso – conforme artigo 1145º do Código Civil.

Por seu turno, e na aquisição de um imóvel, a hipoteca não é um elemento do contrato de mútuo mas sim uma garantia especial da obrigação do empréstimo que confere ao credor o direito de ser preferencialmente pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, sobre os demais credores.

Daqui resulta que, no atual quadro jurídico, não se poderá utilizar a expressão “ uma casa vale a dívida” na generalidade dos casos em que existem mútuos garantidos por hipoteca.

Com efeito, e como resulta do que atrás se disse, a entrega da casa, garantia do empréstimo, não extingue a obrigação mutuária porquanto não é dela elemento.

Deste modo, para que a entrega da casa extinga a obrigação, é indispensável que a garantia passe a ser, segundo circunstâncias muito específicas, também elemento essencial do contrato.

E isto assim é:

a) Ou por acordo entre as partes – mutuante e mutuário – ao abrigo do princípio da liberdade contratual;

b) Ou porque atos subsequentes das partes possam conduzir à conclusão de que o exercício dos direitos da hipoteca, garantia inicial do contrato de mútuo, acabaram por conduzir a que o objeto da hipoteca e o objeto do contrato fossem coincidentes.

Ora, para que tal aconteça é imprescindível não só que a compra do imóvel, financiada integralmente pelo mútuo, seja para habitação própria e permanente dos mutuários, como também que, por ato próprio, a entidade financiadora reconheça que o valor de venda do bem, única e totalmente adquirido por força do mútuo, seja no mercado inferior ao contratualmente definido, no momento da respetiva celebração.

É que, e voltando a salientar a separação entre o contrato e a garantia, como princípio geral, o risco da diminuição do valor das garantias hipotecárias é imputável ao devedor – artigo 701º do Código Civil.

Contudo, quando está em causa, hipoteca de imóvel adquirido com o produto do empréstimo para habitação própria e permanente, pontua, desde logo, o artigo 65º da Constituição da República Portuguesa que diz que todos têm direito, para si e para sua família a uma habitação condigna.

Deste modo, se os beneficiários do empréstimo virem a sua habitação própria e permanente ser vendida em processo executivo, ficando sem ela e, em função da quebra de valores não tendo outros bens, o sistema jurídico cria uma situação em que, sem culpa dos devedores, estes poderão ver ainda penhorados os seus vencimentos e reformas até 1/3 pela entidade emprestadora.

O que lhes inviabiliza o direito constitucional à habitação e viola, por isso, um princípio de ordem pública do nosso ordenamento jurídico.

Resulta, porém, de todo o exposto que esta ordem de razões é exclusiva da aquisição de habitação própria e permanente com as forças unicamente decorrentes do empréstimo.

Assim, a garantia hipotecária conserva a sua natureza de garantia e o risco da diminuição do valor de tal garantia é imputável ao devedor, designadamente nos casos de aquisição de imóvel para fins não habitacionais ou para habitação secundária.

Mas mesmo quanto à habitação própria e permanente há casos de inversão do risco.

É que até aí necessário se torna que a entidade de financiadora, em processo executivo para venda coerciva de habitação própria e permanente:

a) Não se oponha à venda judicial do bem, por valor inferior ao da hipoteca, quando notificado para o efeito, de acordo com o artigo 886º – A do Código do Processo Civil.

b) Venha exercer o direito de aquisição com dispensa de depósito do preço, segundo o artigo 887º do mesmo Código.

Neste caso específico, a hipoteca, inicialmente garantia, passa a objeto do negócio.

Na verdade, o produto do empréstimo foi para pagar única e integralmente determinado imóvel para habitação.

Abrangendo o empréstimo tão só tal imóvel, a aquiescência da entidade financiadora no preço de venda e principalmente a aquisição, por esta, por valor simultaneamente inferior à hipoteca e correspondente ao máximo de mercado, vem ressaltar a situação de que o valor de compra é o valor total que o bem hipotecado poderia cobrir.

Pelo que, e face à aquisição, a obrigação deve dar-se como finda.

Porém, cabe salientar, de novo, e em resultado desta exposição, que esta extinção da obrigação fica prejudicada se existirem outras hipotecas, em que o imóvel seja garantia, para outros fins como é o caso das obras, empréstimos para mobílias, etc, porquanto esses subsistem.

 

III – A Controversa e Douta Sentença do Tribunal Judicial de Portalegre

Após a prolação da douta sentença referida, temos assistido a toda a carta de diatribes  e de interpretações subjetivas da mesma, com comentários como “ entrega-se a casa e extingue-se a dívida” e ainda como se o Banco não aceita está de má fé e com enriquecimento sem causa”.

Contudo, a referida douta sentença não diz nada disso, mas antes faz um enquadramento jurídico que nos permite com ela concordar.

De facto, tem a referida sentença como pressupostos:

a) A celebração de contrato de mútuo, com hipoteca, para aquisição de um imóvel, em que foi aplicado o dinheiro do empréstimo;

b) O fim dessa aquisição como destinando-se a habitação própria e permanente dos devedores;

c) A mesma compra constituir um exercício de um direito constitucionalmente garantido – o de habitação;

d) A aceitação pela entidade financiadora do preço de venda judicial inferior ao da hipoteca;

e) A compra pela entidade financiadora pelo preço anteriormente aceite.

 

São, pois, estes os elementos bastantes para a douta sentença dizer que, sendo o imóvel adquirido, na totalidade, por força de hipoteca com base em avaliação da entidade financiadora para habitação própria e permanente e sendo o preço de venda judicial aceite pela entidade financiadora que por esse valor a comprou, seria abuso de direito e enriquecimento sem causa a não extinção da obrigação.

Há no entanto, que chamar a atenção de duas posições concretas que fluem desta sentença:

a) A primeira é que, conforme linearmente diz a decisão, se há outros créditos garantidos por hipoteca que não os estritos da aquisição, estes, mesmo com a aquisição do imóvel pela entidade financiadora, subsistirão;

b) A segunda é que não haverá enriquecimento sem causa e como tal abuso de direito do credor, se já houve incumprimento ou mora anteriores à desvalorização do mercado, caso em que a desvalorização já nem é objetiva nem muito menos imputável ao credor.

Assim, a douta sentença do Tribunal Judicial de Portalegre, sendo inovatória na sua decisão, faz um correto enquadramento jurídico, separando o trigo do joio, pelo que é abusivo fazer-se da sentença extrapolações e interpretações extensivas que o seu texto não consente.

 

IV – Sistema Paralelo no nosso Sistema Jurídico

A Exoneração do Passivo restante em Insolvência de Pessoas Singulares

Para além desta cadente questão do incumprimento dos contratos de mútuo para aquisição de habitação própria e permanente, tem-se igualmente vindo a assistir na sociedade portuguesa a um exponencial crescimento de insolvências de pessoas singulares.

A opção por este processo advém, algumas vezes, de os interessados suporem que a exoneração do passivo restante em 5 anos é o remédio para todos os males.

Assim não é, porém!

Na verdade, dispõe o artigo 235º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (CIRE) que a exoneração do passivo restante respeita a créditos não satisfeitos no processo de insolvência.

E determina o artigo 239º do mesmo código que do rendimento disponível, para efeitos de exoração do passivo se exclui, o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.

Daqui resulta que a pessoa singular que se apresenta à insolvência e que tenha um empréstimo contraído exclusivamente para habitação própria e permanente, terá de ver a sua casa ser vendida no âmbito da liquidação do ativo.

Contudo, se for o credor hipotecário a adquiri-la, e não sendo a insolvência culposa por parte do devedor, conforme artigos 243º, 238º e 189º do CIRE e por esta ordem interpretativa, segundo a sentença do Tribunal de Portalegre a dívida findará quanto, e unicamente, aparte da aquisição para habitação.

Caso, no entanto, seja terceiro, ou, mesmo agora, ainda o credor hipotecário, este último mantém o seu crédito a ser pago, rateadamente, nos cinco anos subjacentes pelo rendimento disponível.

Só que esse rendimento disponível é o que resta depois designadamente de o devedor retirar as despesas do montante digno que inclui o arrendamento.

Assim, se no CIRE se contempla a hipótese de um arrendamento alternativo, depois da venda do imóvel de habitação própria por preço inferior à hipoteca, situação paralela terá de suceder nas vendas judiciais em que o credor seja adquirente não podendo deixar o devedor sem hipóteses económicas de arrendar casa alternativa.

 

V – Direito Comparado

Várias ordens judiciais europeias têm já estudado legislação com vista à implementação de medidas de flexibilização para eventual reestabilização de contratos de mútuos com hipoteca em clara mora ou incumprimento.

E nesse sentido e como situação semelhante e paralela à Portuguesa, tomamos a liberdade de chamar a atenção para a publicação, em Espanha, do Real Decreto Ley 6/2012 de 9 de março que legisla medidas conducentes à reestruturação da dívida hipotecária daqueles que se encontram no chamado umbral de exclusão.

Contudo, o artigo 3º deste Decreto Lei claramente define que o mesmo se aplica só a empréstimos concedidos com hipoteca sobre habitação própria e permanente.

Daqui que se possa dizer que os pressupostos e as previsões normativas são aquelas que se desenvolveram ao longo destas linhas.

 

VI – Conclusão

a) Exclusivamente com referência a contratos de mútuo com hipoteca para aquisição de habitação própria e permanente, poderá admitir-se a extinção da obrigação, com a aceitação do credor expressa em acordo, ou tácita mediante a admissão do valor da venda judicial e, por maioria de razão, quando o credor adquire o imóvel.

b) Tal acontece por o objeto do contrato ser tendencialmente coincidente com o objeto da garantia;

c) Estão, por isso e obviamente, excluídos desta solução e desta imputação de risco, os contratos de mútuo com hipoteca destinados a aquisição de imóvel não habitacional, para habitação secundária, ou hipoteca sobre habitação mas cujo empréstimo se destine a fins diversos – Multiopções, crédito a consumo, etc.

d) Esta alteração de risco, também só aplicável a situações que não se encontram em mora ou incumprimento por parte dos devedores, antes das alterações do mercado e consequentes valores.

e) A inversão objetiva de risco surge e adicionalmente tem base de justificação por estar em causa o direito constitucional à habitação permanente e para que seja possível que esse direito se mantenha, sem mais onerações no mercado de arrendamento.

f) Em termos de direito futuro, “de jure constituendo” e para além do alargamento do prazo dos empréstimos, muitos deles já no prazo máximo, admite-se como justificável, dar a preferência de arrendamento dentro dos valores de mercado aos devedores hipotecários em mora ou incumprimento.

Lisboa, 14 de maio de 2012

António do Espírito Santo, Advogado

Professor Auxiliar do ISCTE – IUL

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