A missa que se celebra no princípio de Dezembro numa igreja da Baía homenageia simultaneamente Santa Bárbara e Iansã. Entre o Natal e os Reis, no Norte, no Nordeste, em Minas Gerais ou em S. Paulo, folias que misturam elementos cristãos, africanos e indígenas conferem uma animação especial à adoração do presépio. Na passagem do ano, praticamente por todo o litoral, gentes de todas as raças e credos vão à praia prestar homenagem a Iemanjá. O Brasil é assim mesmo. Um cadinho cultural em que também as religiões se cruzam e se enriquecem. 4 de Dezembro. Salvador faz festa a Santa Bárbara. As homenagens iniciam-se com uma missa na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no centro histórico da capital da Baía. Na igreja cheia, os fiéis cantam e dançam ao som do atabaque e agogô, instrumentos típicos da cultura negra e também utilizados inicialmente no candomblé, religião afro-brasileira que cultua os orixás – deuses das nações africanas de língua ioruba, etnia originária do território dos actuais Togo, Benim e, sobretudo, Nigéria –, dotados de sentimentos humanos, como ciúme e vaidade. E não são apenas os católicos a venerarem a santa. Fiéis, sacerdotes e sacerdotisas do candomblé também participam na cerimónia, que invade as ruas da cidade em forma de procissão. É que, para o candomblé, Santa Bárbara representa Iansã, um dos orixás do panteão africano, senhora dos raios, dos ventos e trovões. Esse encontro de religiões acontece também noutra esfera. Na própria Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, construída há três séculos por escravos africanos que fundaram uma fraternidade homónima, está enterrado o primeiro babalorixá (sacerdote do candomblé) da Baía. Nos altares barrocos, Santa Bárbara divide o espaço com outros santos, todos negros: Benedito, António de Cartegeró, Martinho de Porres, Ifigénia, Bakhita e outros. Dia 31 de Dezembro. Outro momento importante de manifestação religiosa toma conta do Brasil, sobretudo das cidades do litoral. Na passagem do ano, a população em geral, católicos e não católicos, presta homenagem a Iemanjá, cujo nome deriva de Yeye oman ejá – «Mãe cujos filhos são peixes», em ioruba. Brasileira, índia e africana «Iemanjá é uma deusa abrasileirada, o resultado da miscigenação de elementos europeus, indígenas e africanos», diz a pesquisadora em tradições culturais Rosane Volpatto. Explica que os grandes seios de Iemanjá se devem à origem africana. Os cabelos longos e lisos prendem-se à sua linhagem ameríndia e é uma homenagem à Iara dos Tupi-Guarani. No Sul e Sudeste do Brasil, é homenageada no dia 31 Dezembro; na Baía e noutros estados do Nordeste, no dia 2 de Fevereiro. As oferendas também diferem, mas a maioria delas consiste em pequenos presentes, como pentes, velas, sabonetes, espelhos, flores. Na celebração do solstício de Verão, os seus filhos devotos vão às praias, vestidos de branco, e entregam ao mar barcos carregados de flores e presentes. Muitos agentes de pastoral consideram certas devoções e práticas religiosas afro-brasileiras ou de origem indígena como comportamentos desviantes, deturpações da fé ou sinais de ignorância religiosa. Não é raro que padres e bispos acusem publicamente as pessoas ligadas, por exemplo, ao candomblé de viverem um sincretismo – a associação de duas religiões num único culto, com as suas simbologias e doutrinas mescladas. O candomblé chegou ao Brasil no século XVI, com o tráfico de escravos negros da África ocidental. Sofreu grande repressão dos portugueses, que o consideravam feitiçaria. Para sobreviverem às perseguições, os adeptos passaram a associar os orixás aos santos católicos. Por exemplo, Iemanjá é associada a Nossa Senhora da Conceição; Oxóssi a São Sebastião; Ogum a São Jorge; Xangô a São Pedro. O mapa das religiões A partir de pesquisas em todo o território nacional, Roger Bastide, um dos grandes estudiosos do assunto, fez uma espécie de mapa das religiões africanas no Brasil. De acordo com o mapa, todo o Norte do país, da Amazónia à fronteira com Pernambuco, foi marcado pela influência indígena. Isso é ainda evidente na «pajelança» do Pará e da Amazónia, no «encantamento» do Piauí e no «catimbó» das demais regiões. No meio dessa grande área de influência indígena, criou-se uma espécie de ilha onde os africanos conseguiram marcar presença. É sobretudo em São Luís do Maranhão que escravos originários do Daomé deixaram traços das suas religiões no «tambor de mina». «No resto do Nordeste foi muito marcante a contribuição dos Ioruba, povo de origem (sobretudo) nigeriana que conseguiu reconstruir no cativeiro toda a estrutura religiosa tradicional. É o que ficou no “xangô” de Pernambuco, Alagoas e Sergipe e no “candomblé” da Baía», explica o padre e missionário comboniano Heitor Frisotti, que estudou a fundo a relação entre o candomblé e o cristianismo. No Rio de Janeiro, até ao início do século XX, houve influência de duas nações: a Ioruba, que cultuava os orixás, e a Banta, cujo culto é conhecido sob o nome de «cabula». A «macumba» surgiu da introdução de determinados orixás e ritos iorubas na «cabula». De acordo com a explicação do padre Frisotti, a religião banta não era muito estruturada: não tinha uma classe sacerdotal forte, como a dos Iorubas, nem cerimónias ricas como o candomblé. Por isso, a macumba adaptou-se com maior facilidade à estrutura urbana da grande cidade. Hoje está mais presente no Rio de Janeiro e São Paulo. A grande cidade produziu também outra religião, a «umbanda», verdadeira síntese brasileira de quase todas as expressões religiosas populares produzidas até hoje, do catolicismo popular ao espiritismo kardecista, do candomblé à macumba. Une, pois, o elemento europeu, o indígena e o africano. Amar Deus e os orixás O facto é que a maioria dos brasileiros, criados no mundo do sincretismo religioso e cultural, não deixa de acender as suas velas para algum anjo-da-guarda e, ao mesmo tempo, procurar a bênção dos orixás na pajelança, na macumba, na umbanda e no candomblé. De acordo com dados do Censo 2000, os católicos brasileiros são 73,8 por cento dos habitantes. Os praticantes das religiões afro-brasileiras ficam-se pelos 3,5 por cento. Embora tenham aumentado desde o censo de 1991, quando representavam apenas 0,4 por cento (cerca de 650 mil pessoas). O professor Reginaldo Prandi, da Universidade de São Paulo (USP), acredita que o censo fornece dados subestimados, porque muitos, oficialmente, se dizem católicos e não se comportam como tal. Além do mais, a Federação Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Fenatrab) calcula que esse número deve ser muito superior, pois parte dos frequentadores dos cerca de 20 mil terreiros do país ainda prefere declarar-se católica, por causa da longa história de perseguições e discriminações. «O povo não quer saber se é coisa da Igreja Católica ou do candomblé ou de outra religião. Ele está preocupado é com o seu bem-estar e a sua saúde espiritual», diz o missionário comboniano Fidèle Katsan. Natural do Congo, o padre Fidèle é coordenador da pastoral afro da arquidiocese de Salvador. O padre Fidèle e outros agentes pastorais da mais africana das capitais brasileiras afirmam que o povo-de-santo (como são chamados os adeptos do candomblé) reivindica o direito de pedir o baptismo católico e mandar rezar missas. Dizem que assim aprenderam com seus pais, que costumam levar os filhos à igreja e ao terreiro. O povo do candomblé ama a Deus, os orixás e a Igreja. Diálogo com os terreiros A pastoral afro, em Salvador e no resto do país, procura aproximar mais os valores da cultura negra às celebrações católicas. «Quando realizamos celebrações, há quem diga que estamos levando o candomblé para dentro da igreja. Por isso, é preciso todo um trabalho de consciencialização, porque o povo foi educado a ver o candomblé como algo do Diabo. E isso por culpa de nós, católicos», diz o missionário. Quando se fala de sincretismo, a experiência mística do padre francês François de l’Espinay (1918-1985) não pode deixar de ser lembrada. De 1974 até à sua morte, aprofundou o caminho de solidariedade e diálogo com os fiéis dos terreiros em Salvador. Dizia: «O filho do candomblé pode, ao mesmo tempo e sinceramente, pertencer ao candomblé e à Igreja. São dois momentos da sua vida, dois meios de expressão religiosa. Isso pode tornar-se um problema se a gente se fecha exclusivamente dentro do pensamento ocidental.» Para L’Espinay, «as pessoas do candomblé não misturam absolutamente os ritos. Candomblé é candomblé; Igreja é Igreja. A prova disso está em que, se a gente perguntar a uma filha-de-santo como é que faz para saudar Oxalá e o Senhor do Bonfim, ela responderá, sem hesitar: «Para o Senhor do Bonfim, eu faço o sinal da cruz; para Oxalá, o dobale (prostração ritual).» O ecumenismo da pobreza Na mesma linha de actuação trabalha o teólogo da libertação e monge beneditino Marcelo Barros, que lembra os valores defendidos pelo Concílio Vaticano II em relação ao diálogo com as outras religiões. «De acordo com o Concílio Vaticano II, o ecumenismo é a vocação da Igreja, porque a divisão é contrária ao projecto de Deus. Por sua história, compreendia-se o ecumenismo como sendo o movimento pela unidade das igrejas. As outras tradições eram respeitadas, mas não se procurava o que hoje, na América Latina, chamamos de “macroecumenismo”.» Barros lembra as palavras e o exemplo de D. Hélder Câmara, com quem trabalhou como assessor para assuntos ecuménicos na arquidiocese de Recife, nos anos 60 e 70: «Para D. Hélder, a coisa mais pecaminosa é a miséria e a mais ecuménica é a luta para que todos possam viver. Dizia: “A pobreza é ecuménica. Não distingue católico e protestante, cristão e não cristão”.» Considerada uma das figuras mais importantes da história recente da Igreja no Brasil e na América Latina, D. Hélder, que faleceu em Agosto de 1999, via os líderes do candomblé entre os mais marginalizados pela sociedade e pela Igreja. Costumava dizer que a Igreja tinha uma dívida histórica para com as comunidades negras. «Fomos cúmplices do colonialismo que escravizou os seus corpos e, pior ainda, perseguiu o seu espírito. Os padres, sem conhecer suficientemente, julgaram a religião dos negros como demoníaca e perseguiram-na. Hoje, temos obrigação de testemunhar a presença de Deus junto dos pobres, não só no plano individual mas também nas suas comunidades e suas expressões religiosas.» D. Hélder e o Preto Velho O teólogo recorda que, uma vez, acompanhou o arcebispo a um bairro popular. Passando nas ruas, D. Hélder cumprimentava as pessoas e entrava em cada barraca. Chegou atrasado ao centro comunitário, onde as pessoas o esperavam para uma reunião. Numa das casas, um senhor da umbanda deu-lhe de presente uma imagem do Preto Velho (um dos espíritos da religião africana). D. Hélder chegou à reunião, trazendo nos braços o Preto Velho. A quem se espantou com o atraso, explicou: «Estava a encontrar-me com um irmão, do qual séculos me distanciaram.» Quando lhe perguntaram se o contacto do arcebispo com líderes de outras religiões negras não favorecia o sincretismo e a confusão, D. Hélder respondeu: «O sincretismo existe desde que os nossos antepassados obrigaram os negros a baptizarem-se. Durante séculos, eles foram obrigados a viver a sua fé de modo escondido. O que eu faço é reconhecer o seu direito a exercerem a sua religião. Sei que muitos, desde crianças, são, ao mesmo tempo, católicos e de um culto afro. Conhecendo-os, vejo que são pessoas de tanta fé e tão dedicadas aos outros que só posso pensar que essa integração faz bem.» Inculturação da fé Por muito tempo, o povo do candomblé foi alvo de perseguições e discriminações. Nos jornais do começo do século XX, que testemunham as investidas policiais contra os terreiros, aparecem as verdadeiras razões: o racismo e a política de branqueamento das elites brasileiras. Os terreiros de candomblé são considerados lugares cheios de engano e superstição, coisa selvagem, de negros e mulheres, onde curandeiros exploram crendices, prometendo curas. Verdadeiros «focos de imoralidades e conflito»… Mais recentemente, também no campo da discussão antropológica o sincretismo deixa de ser directamente identificado com mistura, confusão ou empréstimo, e passa a ser considerado como «uma realidade universal dos grupos humanos quando em contacto uns com os outros», defende Faustino Teixeira, teólogo leigo e professor na Universidade Federal de Juiz de Fora. «Trata-se da transformação de elementos da identidade em razão do encontro com a alteridade (realidade alheia, ndR), de uma tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar (dar novo significado, ndR) o seu próprio universo», define ele. Como Faustino e Barros, muitos outros teólogos tendem a reconhecer que o cristianismo pode receber de outras culturas e de outras religiões elementos que iluminem sua própria identidade, abrindo-se, assim, a uma recepção mais positiva do conceito de sincretismo e de seu significado. O teólogo Mário de França Miranda, por exemplo, também defende esse ponto de vista: «Sem renunciar à preocupação teológica com a identidade da experiência salvífica cristã, podemos ver o sincretismo como parte do processo de inculturação da fé.» Negros trocados por doces Nos festejos de Natal, são comuns manifestações de sincretismo, que fundem elementos do candomblé e da cultura e religião indígenas com os ritos católicos. A mais famosa é a Folia de Reis, em que tradições indígenas misturadas à europeia adquirem uma fisionomia cabocla. Vão de 23 de Dezembro a 6 de Janeiro. Quinze dias cheios, em que os foliões não fazem outra coisa senão dançar, comer, beber e correr as casas onde estão armados os presépios. Esses grupos, que saem durante o ciclo natalício para homenagear o nascimento do Menino-Deus, peregrinam de casa em casa. Onde chegam, cantam para pedir licença para entrar, cantam para que se abram as portas. Fazem a louvação dos santos, louvam as pessoas da casa, pedem as esmolas para a realização da festa, e agradecem. Geralmente as famílias são generosas: oferecem comidas e bebidas. É uma festa sempre que a folia chega – uma festa da comunidade. Há ainda celebrações em que tradições africanas misturadas à europeia adquirem uma fisionomia crioula; tais como os congos e reisados, que ainda se realizam em cidades do interior. Outra manifestação religiosa eivada de sincretismo é o auto de quilombos, encenação dramática feita frequentemente no Natal, em estados do Nordeste. Com danças e cânticos, procura-se reconstituir os quilombos, núcleos povoados por escravos fugitivos durante o século XVII. São representadas duas guerrilhas: uma de índios, outra de negros aquilombados. Os negros, vencidos, são levados em folia pelas ruas, onde são vendidos ou trocados por rebuçados e doces… Glossário Babalorixá: zelador dos orixás, mais conhecido como pai-de-santo. Caboclos: Espíritos ancestrais cultuados no candomblé e na umbanda. São representados, geralmente, como índios do Brasil ou de terreiros da África mítica. Cabula: Nome dado ao culto da nação banta no Rio de Janeiro. Os Bantos formam um grupo linguístico e cultural que se estende dos Camarões até ao Sul do continente africano, incluindo Angola e Congo. Congos: Manifestação cultural e religiosa em homenagem a São Benedito, onde se encena a luta pela liberdade, tendo como personagens principais escravos e nobres do império. Filho-de-santo, povo-de-santo: Diz-se de todo aquele que é fiel do candomblé. Iara: Deusa das águas, segundo a mitologia do povo indígena Tupi-Guarani Kardecismo: Filosofia religiosa que, tendo como base a manifestação das almas dos mortos, tenta levar as pessoas a uma conduta mais correcta. Foi trazida da França, onde o movimento encontrou em Allan Kardec não só um seguidor apaixonado como também o principal codificador, daí o nome «kardecismo» em sua homenagem. Macumba: Religião que surgiu da introdução de determinados orixás e ritos iorubas na cabula. Orixá: Divindades cultuadas no candomblé; umas são forças da natureza, outras são espíritos que retornam sob a representação de animais, outras ainda são espíritos ancestrais. Pajelança, encantamento e catimbó: Culto celebrado pelos povos indígenas para a cura de doenças e comunicação com os antepassados. Há esses nomes, dependendo da região do Brasil. Preto-velho: Termo que designa um tipo de entidade característica dos cultos de umbanda. Representam os espíritos de negros escravos que se notabilizaram pela sua humildade, sabedoria e magia. Reisados: Também chamados de Folia de Reis, esta manifestação cultural e religiosa homenageia o nascimento do Menino-Deus, sendo realizada entre 23 de Dezembro a 6 de Janeiro em todo o Brasil. Santos negros: São Benedito, Santo António de Cartegeró, São Martinho de Porres, Santa Ifigénia. Tambor de mina: Religião criada a partir de elementos indígenas da pajelança, cristianismo e uma tradição afro-brasileira. Surgiu em São Luís, capital do Maranhão, expandiu-se pelo Pará, Amazonas, outros estados do Norte e para as capitais que receberam grande número de migrantes do Norte, como Rio de Janeiro e São Paulo. Xangô: Orixá relacionado com o fogo, o raio, o trovão. Ialorixá: zeladora dos orixás, mais conhecida como mãe-de-santo. Iorubas: Um dos povos da Nigéria que foram trazidos como escravos para o Brasil. Paulo Pereira Lima, in “Além-Mar”, nº 532