Bragança-Miranda: Ver para Crer

Manuel Inácio, EB 1 de Rebordelo (Vinhais), 3.º C

Naquela manhã, o pingue, pingue da chuva que batia nas vidraças era abafado pela melodia harmoniosa da gaita-de-foles que dava a alvorada pelas ruas de Rebordelo.

Enquanto na maior parte das casas se iniciavam os preparativos para a festa do nascimento de Cristo, o Natal, em casa da pequena Sara faziam-se alheiras que haviam de curar ao fumo, pendentes dos lareiros, por cima do lume.

Não eram alheiras iguais às da maior parte das casas da região. A mãe de Sara já tinha cortado o pão, em finas fatias, acrescentado alho e colorau, faltando apenas juntar as carnes; galinha e outras aves, pois carne de porco não era permitida naquela casa.

Esta seria a única forma que tinham para mostrar ao resto do povo que também comiam fumeiro. Assim, ninguém desconfiaria que se tratava de mais uma família judaica que, como tantas outras, em Rebordelo tinha procurado refúgio e que todos os dias rezava a antiga oração:

“Diante de bos sr
venho a empesa r a rezar
Meu Deus me dai Aucillio
Pa ra bos Louvar em grandecer
em Nome do sr Adonai Amem. “*

Estariam, dessa forma, a salvo do terrível tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, que prendia todos aqueles que demonstrassem professar outra religião que não fosse a cristã. Muitos amigos e familiares seus já tinham sido levados e julgados.

Como era dia de fumeiro em casa da Sara, também ninguém iria estranhar não participarem na festa das Varas e na Encamisada, que acontecia dias 25 e 26, até porque ela dizia às amigas que tinha medo dos caretos e das suas assustadoras máscaras de couro com os olhos arregalados, e daqueles fatos, de chita ou seda, às cores, cheios de franjas, guizos e campainhas.

Assim como a Festa de Santo Estêvão, também o Ramo, que decorria nesse dia, lhes era proibido. Nele se representava o Ato da Criação, razão pela qual também não iriam assistir à encenação feita pelos habitantes da povoação.

Durante a tarde, o pai de Sara, o Sr. Josué Abraão, tinha-lhe pedido para que o acompanhasse a uma propriedade que possuíam, a cerca de 1 quilómetro da aldeia, onde trazia um rebanho a pastar. Era precisamente junto a uma fraga na qual se viam as marcas de umas ferraduras gravadas e onde o povo andava a erguer uma pequena capela.

Contava-se que uma pastorinha da aldeia ali teria visto Nossa Senhora a cavalo numa burrinha, a quem teria dito ser a Nossa Senhora da Penha. Tinha-lhe pedido para que as pessoas de Rebordelo rezassem por ela naquele local. E um fio de água que havia feito brotar de entre as pedras, tornado numa fonte de água milagrosa, iria curar as maleitas que assolassem a população.

Chegados ao local, enquanto o Sr. Josué recolhia o gado para dentro da corriça, onde pernoitaria e ficaria protegido do frio e dos ataques dos ferozes e famintos lobos, a Sara sentou-se num pequeno tronco, revestido de musgo esverdeado, que ali se encontrava caído.

Pouco depois, o som de umas ferraduras a tocar as pedras do chão denunciava o aproximar de um cavalo, despertando a atenção da rapariga.

A pequena Sara foi então surpreendida por uma burrinha que surgiu à sua frente e que, no seu dorso, transportava uma Senhora, coberta por um grande manto brilhante como o sol.
Imóvel, Sara não desviou os olhos daquela linda Senhora, que nunca tinha visto, surgida do meio do nada.

Abrandando a marcha, a burrinha passou ao seu lado. A Senhora dirigiu o olhar para Sara, esboçando um leve e ternurento sorriso. Continuaram e, poucos metros à frente, ao chegar junto de um rochedo, uma qualquer estranha magia abriu a fraga ao meio e desapareceram, misteriosamente, no seu interior. Sara permanecia imóvel e assustada com a cena que acabara de presenciar.

Tudo tinha acontecido tão rapidamente que nem tempo ou reação tivera para chamar pelo seu pai, que se encontrava dentro da corriça.

Quando lhe contou o que tinha acabado de acontecer ele mal queria acreditar. Mas o Sr. Josué não tinha a filha por mentirosa, aliás, tinha plena confiança nela. E o povo todo falava da tal Senhora que tinha aparecido à pastorinha. E as tais marcas das ferraduras eram verdadeiras. Ali estavam, bem gravadas naquela fraga!

Regressaram imediatamente a casa para contar à mãe de Sara aquele episódio que tinha tanto de fascinante como de perturbador.

Afinal a história da pastorinha, das ferraduras e da burrinha era real. A Sara também tinha visto a Senhora com os seus próprios olhos!

O acontecimento marcou profundamente a família da Sara, e, nesse mesmo dia, o seu pai decidiu juntar -se à população para auxiliar na construção da pequena capela, dedicada à Nossa Senhora da Penha. Ali se passariam a celebrar missas regularmente e, no dia 15 de agosto, havia uma grande festa em sua honra.

A partir daquele dia, sem que a população alguma vez tivesse desconfiado do contrário, Sara e a sua família converteram-se, tornando-se nos mais recentes cristãos de Rebordelo.

* Do manuscrito de Rebordelo, “Libro de Oraçoins ao Alticimo Deos todo Pedrozo’:escrito na primeira metade do século xrx, pertença da família de Abraão Gaspar.

Conto de Rebordelo (Vinhais), Unidade Pastoral Senhora da Encarnação, da autoria de Roberto Afonso in “Contos e Lendas Transmontanos / Vinhais”.
Desenhos: David Fernandes, Guilherme Fernandes, Leonor Guedes, Manuel Inácio, Rafael Pereira, Renata Dias, Tomás Morais e Vítor Borges.

 

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Agência ECCLESIA

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