D. José Cordeiro
Diocese Bragança-Miranda: Uma «revolução silenciosa»
De tenra idade ou «bispo bebé», como lhe chamou uma criança, D. José Cordeiro está a fazer uma «revolução silenciosa» na diocese de Bragança-Miranda. Com olhar vivo e próximo dos seus, o prelado revisitou ideias antigas, deu-lhes um toque pessoal e está a reorganizar a diocese do nordeste transmontano.
Este «gigante adormecido» acorda lentamente e caminha com o pastor porque “a grande mudança na concretização das unidades pastorais é o paradigma pastoral que não é assente, única e exclusivamente, no clero, mas em todos os baptizados”.
Agência ECCLESIA (AE) – É natural de Bragança e agora é bispo desta diocese. Recentemente, afirmou que esta diocese era um gigante adormecido, mas que vai acordando lentamente. Já acordou na totalidade?
D. José Cordeiro (JC) – Ela está a acordar e eu estou a crescer. Há dois anos que estou no exercício do ministério episcopal e quando celebrei o segundo aniversário (02 de outubro de 2013), uma criança de cinco anos disse que eu era um bispo bebé. Sinto-me ainda nessa condição e este território está a acordar e a crescer. Nestes dois anos, dá para confirmar isso mesmo. Já são alguns os frutos que podemos colher das três prioridades que lançámos, no início, a partir de uma assembleia do clero: reorganização da diocese, formação permanente do clero e a formação permanente dos leigos.
Quando um gigante adormecido acorda, provoca alguns estragos. Primeiro que se adapte à luz, às novas realidades e às mudanças… É este processo lento, determinado e, ao mesmo tempo, humilde. É à luz das orientações conciliares e da comunhão que se gera a Igreja.
AE – Um gigante adormecido quando acorda, provoca alguns estragos. Já provocou alguns estragos?
JC – Acho que sim (risos), mas é normal. O provocar e o incomodar as pessoas… Já o referi, várias vezes, quando me questionaram sobre tal, que prefiro ser criticado por fazer, por incomodar (depois da tomada de consciência do que somos e de ter os pés bem assentes na terra) do que me acomodar. Não me quero acomodar…
AE – Ainda é muito novo para se acomodar…
JC – Espero que não, mas isso da acomodação pode acontecer em todas as idades. A Palavra de Deus incomoda-nos todos os dias e o Evangelho exige, de nós, essa abertura à surpresa e à novidade. Não é mudar por mudar, mas para ser mais fiel e mais autêntico ao Evangelho. Alguns estragos aparecem porque se mexe com interesses e, se calhar, com negócios (usando as palavras do Papa Francisco). Às vezes, as pessoas usam os mesmos meios que usam na vida social e na vida política e depois aplicam-nos à Igreja e causam alguns estragos. Devemos estar muito atentos e essa é uma missão do bispo: ser vigilante e acompanhar como pai, pastor, amigo e irmão.
Os estragos são relativos às mudanças porque a conversão exige uma mudança do coração, mas exige, em simultâneo, o deixar estilos, pensamentos e modos de ser e viver que não são tão consentâneos com o Evangelho.
AE – Está vigilante em relação a esses negócios e interesses?
JC – Claro que sim. No âmbito da própria Igreja, da acção social e ao nível interno… Recordo aquilo que dizia Bento XVI: «Os inimigos da Igreja não estão fora, mas estão cá dentro». Perante estas realidades é preciso purificar. Voltar às fontes. Mas se as pessoas não têm essas fontes é mais difícil esse processo porque algumas podem ser tão religiosas que não chegam a ser cristãs. Não basta ser religioso ou piedoso.
AE – A diocese já passou de um cristianismo sociológico, de uma religiosidade popular, para um cristianismo convicto e centrado na fé?
JC – Esse é um processo muito lento. Prefiro falar em piedade popular do que, propriamente, em religiosidade popular. A piedade popular assenta nas raízes da fé e tem alguma relação com a liturgia. Estamos a fazer esse esforço. O primeiro ano, à luz da proclamação do Ano da Fé, esteve muito voltado para a liturgia, como a primeira escola da fé.
AE – Não sentia as comunidades como escolas da fé?
JC – Em algumas comunidades isso já acontecia, mas no comum e de forma tão sistemática e continuada como estamos a fazer, vai acontecendo. Noto isso também nas visitas pastorais. Já visitei, até ao momento, mais de 90 paróquias e mais de trezentas comunidades. A liturgia começa a ser vivida e entendida como a melhor escola da fé.
Este ano estamos a viver o «ano da vocação», para que cada um tome consciência da sua vocação e missão na Igreja. De baptizado e seguidor de Jesus Cristo. Neste ano pastoral, colocámos a conjugação de três verbos: rezar, chamar e testemunhar. Este caminho é lento, mas progressivo.
Naquilo que vou verificando na conversa com os colaboradores – os presbíteros – e na relação directa com os fiéis leigos, vou percebendo o desejo enorme de acertar o passo com Jesus Cristo e de fazer da oração essa alegria do coração.
AE – Está neste território eclesial há dois anos como bispo, sente que está a fazer uma revolução silenciosa ou barulhenta?
JC – Já a apelidaram de revolução silenciosa, mas não tenho pretensão nenhuma disso. Apenas pretendemos construir juntos e estarmos abertos aos novos caminhos da missão. O que estamos a fazer é a renovação na continuidade. Isto não começou do nada, mesmo a reorganização. Mesmo as «Unidades Pastorais» era algo que já estava no papel, no ano 2000. Agora, depois de actualizado e revisitado, está no terreno com as dificuldades inerentes daquilo que é próprio à mudança e à novidade. Estamos a potenciar ao máximo todos aqueles meios que nos conduzam a sermos uma só e mesma Igreja. Temos de percorrer o caminho da união e da paz para que haja esta consciência de Igreja. Notei isso, depois de alguns anos fora, [esteve em Roma] que não há esta consciência de uma Igreja diocesana. Queremos trilhar esta eclesiologia de comunhão.
AE – Apercebeu-se que tinha adultos com fé de criança?
JC – Refiro isso, constantemente, nas visitas pastorais, brincando um pouco com esse jogo de palavras. Alguma fé que existe no âmbito da piedade popular é de pessoas que tiveram alguma preparação e fundamentação da fé para a primeira comunhão, para o crisma ou, eventualmente, para o matrimónio, mas depois acharam que aquilo «vem do céu aos trambolhões» e desligaram. Por isso, temos adultos com fé infantil.
AE – Mesmo com o sacramento da Confirmação?
JC – Sim porque isso não é automático, nem mágico. É a conclusão da iniciação cristã, mas que exige um aprofundamento constante e permanente. Tal como as pessoas cultivam outros âmbitos da sua vida técnica, profissional e académica, na fé tem de acontecer o mesmo. A relação com Deus tem de ser continuada pela oração, pelos sacramentos, pela prática da caridade e pela formação. Felizmente que as propostas de formação que estamos a fazer na diocese estão a ser muito bem correspondidas.
AE – O envelhecimento do clero e da população na realidade diocesana é visível. Assiste-se a uma continuada desertificação humana?
JC – É preocupante e alarmante. Estamos na maior diocese do norte do país, em termos territoriais, com uma população à volta das 137 mil pessoas, mas com 326 paróquias e 634 comunidades. Ainda hoje para ir de Bragança a Freixo de Espada à Cinta preciso de duas horas. Tudo isto revela a nossa situação de interioridade. Nestas condições ainda se torna mais difícil a nossa missão. É com estas características e com estas pessoas que nós vivemos.
Nota-se, por um lado, o envelhecimento e, por outro, o não nascimento. Para além disto assistimos também à fuga do capital humano e do grande potencial para outros pontos do país e para o estrangeiro. Verifico isso nas comunidades que visito e, sobretudo, de casais novos. Este «boom» da emigração é semelhante aos anos 60 do século passado.
AE – Um retrocesso na evolução…
JC – Claro que sim. Nos últimos 50 anos perdemos metade da população e isso é um retrocesso. Não é indicador positivo de um desenvolvimento integral desta região. Daquilo que vou conhecendo, cada vez mais se deve passar por uma aposta consistente na agricultura (não a de marcos e de divisão), mas aquela de quilómetros. Uma agricultura bem pensada e estruturada. Também na cultura, no património material e imaterial que é tão rico. Sem esquecer o turismo e, de modo especial, no turismo religioso. Assistimos ao encerramento de tantas realidades. É confrangedor deixar de ver os sinais de trânsito nalgumas aldeias.
AE – Qualquer dia colocam a sinalética de reserva de caça.
JC – Em muito lugares isso já acontece.
AE – Há cerca de 27 mil hectares de terra desaproveitada no distrito. O que fazer?
JC – Uma pergunta a devolver aos responsáveis ao nível autárquico e ao nível governamental. Creio que há muito a fazer e a fazer de uma maneira inteligente e responsável. Mas isso dá que fazer… Por isso não há tanta gente envolvida e a pensar de forma global e integrada este nordeste transmontano. Já se perderam muitas oportunidades desde há uns anos a esta parte e, sobretudo, com tantos incentivos da União Europeia. Estes foram demasiadamente localizados e não tiveram a perspectiva do todo.
AE – A solidão dos idosos é uma realidade preocupante. Chegou mesmo a escrever uma carta pastoral sobre este assunto.
JC – É uma realidade que me ocupa e preocupa. Faz parte dos programas das visitas pastorais o encontro com os mais idosos em casa ou nos centros sociais paroquiais. Tanto me ocupa que se criou em Bragança e noutros lugares da diocese um lugar de escuta, de atendimento e relação de ajuda. Começamos pela parte sacramental e espiritual – às quintas-feiras das 09.30 às 17.00 – onde estão oito sacerdotes no atendimento do sacramento da reconciliação, oração e adoração ao santíssimo. Temos o intuito de acolher as pessoas, justamente por causa da solidão. A par disto, estamos na criação de um gabinete inter-disciplinar que envolve psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e também alguns sacerdotes para o encaminhamento daqueles casos que ultrapassam o âmbito sacramental e espiritual.
AE – O sentimento de angústia vive no meio dos brigantinos e dos bragançanos.
JC – Nota-se, infelizmente, não apenas nas pessoas mais idosas, mas também é muito preocupante junto dos mais novos. Gente sem perspectiva de futuro. Não é por acaso que em Portugal, o medicamento mais vendido é o anti-depressivo. Noto isso, infelizmente, nesta zona. Necessitamos de mais pessoas disponíveis para ouvir, estar e acolher.
AE – Mas estamos numa sociedade onde impera o ruído…
JC – É possível que sim, mesmo no nordeste transmontano onde ainda pensamos que existe uma vida mais saudável. Aqui sentimos o positivo e, se calhar ainda mais acentuado o negativo, da globalização. Por isso, o ruído não deixa escutar o silêncio e não deixa escutar os outros. As pessoas não têm tempo, nem paciência… Muitos, só necessitam de ser ouvidos. O acompanhamento não deve ter a componente moralista, nem direcionista.
AE – Nestes diálogos que tipo de carências as pessoas apresentam?
JC – Até ao momento, as pessoas têm apresentado carências espirituais e afectivas, resultantes da própria solidão. Existem também as carências materiais e essas, felizmente, vamos tendo ainda respostas sociais para elas. A Igreja diocesana tem a responsabilidade de mais de 70% de acção social. O que tem incomodado mais, ultimamente, são as pessoas que começaram a sentir a privação daquilo que há uns meses não tinham. Esta situação tem incomodado muito e, especialmente, as pessoas que vêm pela primeira vez.
AE – Nem tudo é negro e lamuriento na diocese de Bragança. Existe sangue novo com a presença do Instituto Politécnico. Recentemente afirmou: “a juventude pode contar comigo”.
JC – Desde a minha nomeação para este serviço e ministério, dispus-me a ser colaborador da alegria e da esperança dos jovens. E assim temos feito. É com alegria que registamos um aumento dos jovens, não apenas nas celebrações litúrgicas, mas também nos movimentos e grupos juvenis.
Por outro lado, mesmo com a presença do Instituto Politécnico o futuro começa a ser algo preocupante. Este ano, já se notou uma diminuição de presença na cidade. Em simultâneo é um desafio, visto que estão a chegar à cidade, muitos jovens provenientes de vários países.
AE – A multiculturalidade chegou à cidade.
JC – Começamos a sentir isso, mas não sei se Bragança está preparada para responder a essa multiculturalidade e, nomeadamente, a Igreja. Estamos a tentar e a dar passos para que seja um acolhimento e resposta positiva. Mesmo em relação aos agrupamentos escolares estou um pouco pessimista, já fui mais optimista. As escolas que existiam espalhadas pelas aldeias estão a congregar-se nas sedes de concelho.
AE – O bispo da esperança com registos de pessimismo?
JC – Não… Isso nunca. A cultura da lamentação em mim, à minha volta e nesta igreja, não quero que «monte a sua tenda». É preciso olhar com esperança o presente e o futuro. É a cultura da esperança que nos anima. A fé não é uma ideologia… A lamentação de dizermos que estamos longe, somos periferia, somos interior, não tem lugar. Essas são as nossas características e não nos podemos comparar a ninguém.
AE – Ao nível da pastoral juvenil e da pastoral universitária que projectos estão a decorrer na diocese. Que trabalhos específicos estão a fazer com esta camada populacional?
JC – Temos um serviço diocesano da pastoral do ensino superior, a capelania do Instituto Politécnico, o secretariado diocesano da pastoral juvenil e vocacional. Estes serviços estão a dar passos lentos, mas a construir algo sólido. Estão a envolver os jovens.
A par disso, nas unidades pastorais e a nível local – com os professores de Educação Moral e Religiosa Católica e as famílias – estamos a fazer com que os jovens se sintam protagonistas na acção pastoral da Igreja e no anúncio do Evangelho. Não fazemos para os jovens, mas fazemos com os jovens.
AE – Chegou a fazer uma caminhada com eles até Santiago de Compostela.
JC – Foi uma experiência singular de fé. Na conclusão estavam mais de 600 pessoas. As «lectio divinas» e as jornadas diocesanas da juventude têm sido experiências muito positivas.
AE – Como são as relações da diocese de Bragança-Miranda com as dioceses vizinhas espanholas?
JC – Positivas. Ainda não implementámos nada de concreto ao nível diocesano, mas ao nível local transfronteiriço estão mais do que consolidadas. Existem momentos comuns entre as várias localidades.
AE – Mais virados para Espanha do que para o litoral português?
JC – Não (risos). Sou membro do colégio episcopal, mas antes de mais da Conferência Episcopal Portuguesa. No entanto, o nosso território faz fronteira com 5 dioceses espanholas…
AE – Mas voltando à realidade do nordeste transmontano, D. José Cordeiro é o pastor que anda a bater nas portas das casas dos cristãos e perguntar se pode entrar?
JC – Mais do que bater nas portas das casas, bato nas portas do coração. Tenho aprendido muito e tem sido uma grande escola. Tem sido a parte mais bela do ministério episcopal nestes dois anos. As visitas pastorais são o coração do ministério episcopal, numa relação de proximidade e simplicidade. Procuro sempre dizer às pessoas que o centro da visita pastoral não é o bispo, mas é Cristo. Algumas pessoas, sobretudo as pessoas de mais idade, não estão à espera de um bispo tão novo.
AE – Como é que surgiu esta ideia de dividir a diocese em unidades pastorais?
JC – A diocese continua com as 326 paróquias e as 634 comunidades, mas agora articulada em 33 unidades pastorais. Destas, 25 já estão implementadas no terreno.
AE – Sentiu resistências do clero para esta inovação?
JC – Não senti tanto quanto pensava, mas senti algumas como é normal. A maior dificuldade não foi a implementação das unidades pastorais porque esse estudo já estava realizado no ano 2000, mas a redução dos arciprestados. Quando cheguei tínhamos 12 arciprestados e passar para 4 foi mais dura essa reorganização.
Nas unidades pastorais, no seu objectivo fundamental, não houve reacção. Houve reacção mas aos hábitos adquiridos e, sobretudo, porque era uma pastoral muito centrada na figura do pároco. A grande mudança na concretização das unidades pastorais é o paradigma pastoral que não é assente, única e exclusivamente, no clero, mas em todos os baptizados. Com esta quantidade de paróquias só temos 60 padres no activo.
LFS