Braga: Homilia na celebração da Paixão do Senhor

1. Experiência Humana

Há uns tempos atrás, num programa televisivo, um portador de cancro, a quem lhe diagnosticaram pouco tempo de vida, afirmava com convicção o seguinte: “Provavelmente morrerei da doença, mas o que nunca acontecerá é a doença matar-me”.

2. Sinais dos Tempos

De facto, há desafios quotidianos na nossa vida que nos fazem sentir imperfeitos, inseguros e aterrorizados. E diante desses desafios, que cada um tem diante de si, há uma pergunta que fazemos constantemente: – Serei eu capaz de ultrapassar o difícil exame da escola?

– Serei eu capaz de aguentar o insuportável dia de trabalho?

– Serei eu capaz de pagar o crédito bancário que me falta?

– Serei eu capaz de continuar a acreditar neste país?

– Serei eu capaz de recuperar daquela desilusão familiar?

– Serei eu capaz de corrigir os meus defeitos?

– Serei eu capaz de cuidar bem daquele meu familiar que me está confiado?

– Serei eu capaz de, enquanto pai ou mãe, proporcionar aos meus filhos o futuro que merecem?

– Serei eu capaz de perdoar aquele vizinho que me odeia e me difama?

– Serei eu capaz de arranjar emprego?

– Serei eu capaz de recuperar desta doença que me fragiliza?

– E serei eu capaz de celebrar a fé com autenticidade?

3. Liturgia da Palavra

Curiosamente, uma vez pregado na Cruz, Jesus apenas reza todo o salmo 22, o qual também começa com uma pergunta de reivindicação: “Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?”

A Cruz é a consequência dos quatro delitos cometidos por Jesus: o delito contra a lei judaica, ao propor uma nova interpretação da mesma; o delito contra o vínculo à terra, ao propor uma nova concepção territorial a partir do Reino de Deus e de uma vida eterna que supera as limitações deste mundo; o delito contra a família tradicional, ao propor o modelo comunitário e alargando os laços familiares; e o delito contra o Templo de Jerusalém, ao referir que a adoração a Deus não se cingiria aos judeus nem dentro do Templo, mas a todos os homens e em qualquer lugar, sendo adorado “em espírito e verdade”.[1]

4. Desafios Pastorais

Olhando para este cenário, certamente que todos nós temos um carinho especial pelo Papa João Paulo II. E das inúmeras imagens públicas sobre a sua vida, confesso que é inesquecível aquela sua última aparição pública numa janela do Vaticano. Aquele jovem Papa desportista, comunicador, animador de massas, viajante e cheio de energia de outrora, estava agora “acabado”, no limiar das suas forças físicas, dependente de uma cadeira de rodas, afectado por uma grave doença de Parkinson, com um ar extremamente sofredor e já sem conseguir falar.[2] Mas mesmo assim, fez questão de aparecer à janela, naquela manhã de domingo, não para fazer mais um brilhante discurso, mas apenas para se expor, para mostrar o seu sofrimento, para mostrar as suas feridas, para mostrar a sua derrota.[3]

De facto, se na sociedade actual só vigora o que é jovem, o que é forte, o que é belo, o que é saudável, o que tem sucesso, esta imagem do Papa sofredor ensina-nos que os mais fracos, os doentes, os paraplégicos, os idosos, os desempregados e os derrotados também são amados por Deus.

Aliás, na encíclica Evangelium Vitae, publicada a 25 de março de 1995, o Papa João Paulo II elabora uma reflexão brilhante sobre a dignidade da vida humana. Deste documento podemos retirar duas ideias principais: a vida humana é um dom concedido por Deus, redimido por Cristo, ungido pelo Espírito Santo e confiado à responsabilidade humana; e a vida humana é um valor inviolável que deve ser sempre defendido em todas as circunstâncias.[4]

Há coisas maravilhosas. A vida, no sentido global da palavra, ultrapassa-as a todas. É dom a trabalhar e valor a defender. As circunstâncias de que ela é revestida são proclamação de direitos duma dignidade que deveria ser inquestionável, mas nem sempre o é.

Os sinais de morte parecem prevalecer em confronto com a realidade que nos circunda. A morte de Cristo convida-nos a amar a vida, nossa e dos outros, dos nascituros ou dos moribundos. Sim, a vida deve ser amada na sua existência ou no permitir que ela aconteça. São alarmantes a descida brutal da taxa da natalidade mas, mais do que isso, precisamos de olhar para aquilo que se semeia nas escolas, na comunicação social, nos diálogos entre amigos. Urge uma inversão de marcha a fim de evitar o fim do país. A morte de Cristo está a reclamar mais vida e mais vidas, e isto só com uma cultura da vida se conseguirá. Só ela convence e ultrapassa as razões e motivos que, com o nosso consentimento, se vão espalhando.

5. Conclusão

“A cruz não é uma demonstração de violência, de sofrimento e de morte, mas pelo contrário, é uma mensagem de amor, de um amor mais forte que a própria morte.”[5]

Cristo é muito mais que um herói de Hollywood. O mistério da sua Paixão não pode ser captado com a objectiva de uma máquina de filmar[6], porque a sua Paixão continua evidente nos dias de hoje, uma vez que a Cruz não significa a ausência de Deus, mas que Deus coloca-se ao nosso lado, num acto de plena solidariedade humana.

Por isso, e para terminar, uma das mais belas formas de expressarmos a nossa fé, é o beijo paradoxal que damos à Cruz de Cristo nesta celebração. Um beijo no qual revemos as nossas próprias feridas e onde reconhecemos que a fé não expressa o medo da morte mas antes o desejo da vida.

Por tudo isso, deixo-vos a pergunta: seremos capazes de abrir os olhos e de nos comprometermos com os beijos de compaixão a dar em tantos rostos sofredores?

Peçamos então ao Senhor que nos conceda a “alegria da vida” para saborearmos a sua compaixão na doença que nos fere, que nos magoa, que nos desumaniza e que pode levar-nos a perder a esperança.

D. Jorge Ortiga, A.P.; 18 de abril de 2014.

[1] Cf. Enzo Bianchi, Jesus de Nazaré. Paixão, morte e ressurreição, 35-44.

[2] Cf. Alain Vircondelet, São João Paulo II, 9.

[3] Cf. Pe. Jorge Vilaça, Uma bala… 30 anos depois, in Igreja Viva (Suplemento do jornal «Diário do Minho»), 6 de janeiro de 2014, 7.

[4] cf. José-Román Flecha, Bioética, 41-44.

[5] Tomas Halik, A noite do confessor, 254.

[6] Cf. Tomas Halik, A noite do confessor, 258.

 

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