1.Aprender também com o fim
A unidade orgânica da liturgia da palavra de hoje recorda-nos a essência do ministério de um Presbítero. Tal como Cristo, o Presbítero é ungido (Evangelho) não para proveito próprio, mas para uma missão destinada aos outros (Livro de Isaías), a fim de que reproduza com convicção as mesmas palavras do salmista: «Senhor, cantarei eternamente a vossa bondade».
Nesta Missa crismal «o pão fortalece o coração do homem e o azeite faz brilhar no seu rosto a alegria» (das catequeses de Jerusalém), testemunhando a beleza, a serenidade e a paz do perfume da unção.
Uma tentação presbiteral muito comum vem-nos descrita na segunda leitura: é o risco de se olhar para Cristo apenas como Alfa e esquecer que Ele também é Ómega. É o risco de nos contentarmos apenas com o início da caminhada, ignorando a finalidade última para onde ela deve aportar. Daí não ser de estranhar que, depois de se acabar o entusiasmo inicial da caminhada, quando surgem os grandes obstáculos, emerge uma crise existencial que depois se traduz numa crise vocacional.
O grande teólogo Karl Rahner, nos seus escritos sacerdotais, referia que o que distingue a fé de um presbítero dos restantes membros do Povo de Deus era o facto de ser uma “fé orante”. Ao contrário do que se pensa, não se distingue por ser uma fé intelectual, porque fez um curso de teologia, mas por ser uma “fé de joelhos”. E na oração, o Presbítero deve ter a coragem de colocar diante de Deus os desassossegos, as adversidades, as ingratidões e os insultos que sofre na sua missão. E porquê? Porque se foi Deus que nos criou, então só Deus pode dar resposta a essas dificuldades porque só Ele sabe o que é o melhor para cada um de nós.
Como todos sabemos, caro Presbítero, Deus não te chamou apenas para o início, para uma fase da vida, para uma faixa de tempo…, mas chamou-te para sempre: chamou-te do princípio até ao fim! Deus não te quer a part-time, mas a full-time. É certo que Deus poderia ter chamado outros melhores que tu, mas chamou-te a ti, porque viu em ti algo que muitas vezes nem tu consegues ver e compreender em ti próprio, algo que é fundamental para que Ele opere a sua providência.
A beleza da vida espiritual reside neste dinamismo escatológico: Deus só nos permite conhecer o início, mas não o fim. E quando esquecemos que há um fim, o Cristo Ómega, para onde nos encaminhamos, aí é que está o problema: não te agarres à “nostalgia do início” que não se repete mais, mas encaminha-te para o fim, abrindo-te ao mistério que vem ao teu encontro, enriquecendo-te com o inaudito.
2. O alimento básico do ministério
Porém, este dinamismo espiritual esvai-se se não se alimenta diariamente daquilo que é o seu alimento básico.Ao celebrarmos em breve o Congresso Eucarístico Nacional, hoje não poderíamos deixar de reler o nosso ministério presbiteral a partir desta chave hermenêutica. Se a Eucaristia é a «fonte e centro de toda a vida cristã», como sustém o número 11 da Lumen Gentium, para o Presbítero ela deve ser algo mais: a fonte, o centro e também a finalidade do seu ministério. O presbítero vive da e para a Eucaristia: é esta a razão principal da sua missão. E daí perguntamos: poderá um Presbítero viver sem a Eucaristia (diária)? Deixo que cada um responda no seu interior a esta pergunta.
No imponente documento em que articula o sacramento da Eucaristia com o mistério da Igreja, o Papa João Paulo II recordou-nos este axioma: «a Eucaristia edifica a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia» (EE 26). Mas o mesmo já não podemos afirmar do Presbítero: a Eucaristia edifica o Presbítero (PO 5), mas o Presbítero não faz a Eucaristia. Não a faz porque ela não depende exclusivamente da sua ação humana, mas do mistério cristológico que habita nele: é Cristo-Igreja que age por meio dele. Até podemos ter uma Igreja sem padres, mas não podemos ter uma Igreja sem Eucaristia. A Igreja não depende exclusivamente do Presbítero, mas é este que depende exclusivamente da Igreja. E é dela que ele recebe o mandato de Cristo, o fundador e fundamento da Igreja, para celebrar a Eucaristia: «fazei isto em memória de mim» (Lc 22, 19; 1Cor 11, 24.25) e não conforme os seus caprichos momentâneos.
Daí ser importante recordar uma segunda tentação presbiteral que nos é dita pelo Cardeal Seán O’Malley: a tentação de pensarmos que o “cálice é um troféu”. De um outro modo, sussurra-nos o Pe. Abílio Correia, o Presbítero da Eucaristia: «Jesus no sacrário é a nossa luz e a nossa vida: d’Ele irradia o sol que aquece e abrasa o nosso coração nas chamas do mais puro amor».
Uma das belezas das visitas pastorais é que, para conhecermos o estilo pastoral e espiritual de um Pároco, não é preciso fazer muitas perguntas nem observar as suas obras, basta uma coisa: reparar no modo como ele celebra a Eucaristia. E daqui acrescento uma terceira tentação presbiteral: a “tentação da oração eucarística II”.
O Missal Romano é um livro volumoso, mas infelizmente apenas folheado em poucas páginas. A sua riqueza litúrgica, pastoral e espiritual, proposta nos vários formulários apresentados, é grande escola de oração, que não pode ser vetada ao Povo de Deus. Não temos esse direito! Recordo a advertência de Santa Teresa d’Ávila: «É pelo preparo do aposento que se conhece o amor de quem acolhe o seu amado».
Caros Presbíteros, não tenhais medo de arriscar rezar outras orações eucarísticas, de ensinar outras respostas eucológicas, de promover outras formas previstas de celebração e de “dar o pão” consagrado na própria celebração. E, daqui, devo acrescentar mais uma coisa: enquanto Presbitério de Braga, acolhamos o novo calendário próprio da Arquidiocese, já aprovado e hoje publicado, não deixando cair no esquecimento o que nos identifica como Igreja bracarense em oração. A Liturgia não é propriedade de alguns, mas um património de todos. Caso contrário, torna-se apenas mais um debate teológico, em vez de ser mais uma fonte de graça eucarística.
3. O sacerdócio é uma “história de Eucaristias”
Não obstante estas orientações que vos gostaria de deixar, pois é o meu dever enquanto vosso pastor, eu hoje quero sobretudo dizer-vos uma coisa, caros Presbíteros. Talvez não seja de todo errado dizermos isto: a história de um Presbítero também se pode narrar como uma “história de Eucaristias”. E um belo exame de consciência que poderíamos fazer neste momento era colocarmo-nos debaixo desta pergunta matemática: quantas Eucaristias já celebraste na tua vida presbiteral?
Com sinceridade, eu penso que quase nenhum Presbítero consegue responder a isto. No entanto, embora a Eucaristia seja sempre a mesma, quantos e quantos Presbíteros aqui presentes já celebraram as Eucaristias mais inóspitas, pois acreditam no poder transformador que a Eucaristia confere? Enquanto vosso pastor, hoje queria apenas agradecer-vos isso. Sim, quero agradecer as vossas Eucaristias na única Eucaristia de Cristo-Igreja! Não porque sois uns “colecionadores de Eucaristias”, mas porque sois “filhos da Eucaristia”.
Quero agradecer-vos não apenas a Eucaristia celebrada com um grande grupo de acólitos bem preparado e rodeado de incenso, mas também… aquela Eucaristia celebrada sem acólitos e sem incenso.
Quero agradecer-vos não somente a Eucaristia celebrada com paramentos de alta-costura, mas também… a Eucaristia com aqueles paramentos já gastos de celebrações durante décadas, porque a paróquia não detém grandes posses económicas.
Agradeço-vos ainda não só a Eucaristia celebrada em igrejas grandes, confortáveis e com ar-condicionado, mas também… a Eucaristia celebrada no meio da montanha com um grupo de peregrinos e a Eucaristia celebrada de manhã cedo numa igreja simples e debaixo de um frio tremendo, que até gela as mãos que consagram.
Quero agradecer-vos a Eucaristia celebrada em igrejas cheias de pessoas, mas sobretudo… agradecer-vos aquela Eucaristia em que só estavas tu, o sacristão e mais uma pessoa na assembleia e sem intenção nem estipêndio, mesmo assim, tu não deixaste de celebrar aquela Eucaristia. Obrigado por não caíres nessa tentação! Porque o grande desafio do Cristianismo na atual pós-modernidade, como dissemos na celebração do passado Domingo, não é o ter as “igrejas vazias”, mas o ter as “igrejas permanentemente fechadas”. Não somos uma Igreja de números, mas de pessoas!
E, por fim, quero agradecer o esforço desumano que muitos de vós fazem todos os Domingos para que, embora conscientes de que brevemente teremos de repensar o nosso modo de agir pastoral com “menos missas e melhor Missa”, o sacramento da Eucaristia seja celebrado nas várias comunidades a vós confiadas e o “pão eucarístico” não falte à vida dos fiéis. Obrigado, caros Presbíteros: só um “amor louco” pela Eucaristia pode sustentar este esforço desumano que fazeis!
No aniversário da própria ordenação, pedimos a Deus na oração depois da comunhão para nos “eucaristizar” Nele: «fazei que a minha vida corresponda sempre ao mistério que celebro no vosso altar».
4. Um desafio eucarístico
Para terminar, apesar das diversas tipologias eucarísticas que todos já celebraram, hoje gostaria de vos lançar mais um desafio eucarístico. Um dos riscos da sinodalidade é que esta se torne num refrão usado para tudo ao ponto de não dar em nada. Mas nós não queremos que a sinodalidade missionária seja uma teoria, mas uma verdadeira práxis da Igreja, como tantas vezes nos apela o Papa Francisco.
Para tal, hoje quero pedir perdão a todos os Presbíteros pois, por ainda ser novo nesta missão arquidiocesana e com o abarcar de uma sobrecarga de trabalho, cometi uma falha imperdoável. No programa pastoral publicado no início do Ano litúrgico e pastoral, já deveria vir esta informação que agora vos peço.
Na manhã do próximo dia 2 de junho teremos o encerramento do Congresso Eucarístico Nacional no Santuário do Sameiro. E seria belo fazermos uma experiência eucarística sinodal: que todos os Presbíteros suspendessem a Eucaristia do Domingo de manhã nas suas paróquias e capelanias, de modo a participarem com os seus paroquianos nesta Eucaristia de encerramento. Às capelanias e paróquias estaria assegurada a Missa vespertina em todas elas ou no Domingo à tarde, de modo a garantir que não falte o pão eucarístico às pessoas com dificuldade de locomoção ou ocupadas nas suas profissões. Sei que, em muitos Arciprestados, muitos de vós já fazem esta bela e boa experiência aquando das peregrinações arciprestais.
Embora consciente do transtorno pastoral que isto cause, dados os eventuais compromissos já por vós assumidos, deixo-vos, no entanto, este mesmo desafio. A raridade da celebração deste mesmo Congresso Eucarístico, que no passado produziu tantos frutos espirituais na nossa Arquidiocese com marcas de santidade, é uma ocasião que não podemos desperdiçar. E como seria belo podermos fazer esta experiência de uma Eucaristia sinodal com toda a Arquidiocese representada com os seus Presbíteros e comunidades, essas comunidades que ao longo do ano já rezam semanalmente por este mesmo Congresso.
Por isso, caros Presbíteros, estou consciente de que vos peço uma coisa exigente, mas peço-vos isto em nome de um maior bem: em nome da Eucaristia e de tudo aquilo que desejamos que este Congresso produza nas nossas vidas. Nesta “aventura eucarística” pode também ressoar o ditado popular: «Deus dá o pão, mas não amassa a farinha», precisando das nossas mãos para tornar o pão acessível a todos.
Por fim, recordo as palavras metafóricas e sapienciais de São João Maria Vianney: «se as pessoas conhecessem o poder da Santa Missa, elas não morreriam de medo, mas de alegria». Por isso, caros Presbíteros, não deixes de rezar pelos frutos espirituais deste Congresso, pois eu continuarei a rezar a Jesus Eucaristia que cuide de cada um de vós, pois todos nós somos uma pequena migalha que forma esta grande hóstia viva, que é a Igreja, enquanto Corpo de Cristo (Rm 12,4-5), nossa Páscoa e nossa Paz.
D. José Manuel Cordeiro, arcebispo de Braga