No início da Semana Santa, é convidado da Renascença e da Agência ECCLESIA D. José Cordeiro, arcebispo de Braga, cidade que por estes dias atrai milhares de peregrinos e turistas para celebrações com características únicas no país

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
A Semana Santa de Braga ainda mantém a designação da mais tradicional e mais popular no país. Isto tem algum efeito ao nível da prática religiosa?
Sim, experienciar, celebrar a Semana Santa em Braga tem um sabor muito especial. Há três anos fiz-lo pela primeira vez e senti essa atmosfera grandiosa, que traz essa tradição no seu peso, no verdadeiro sentido. Quando se fala em tradição não é a mesma coisa que tradições, é o grande depósito da fé, que está concentrado nesta semana e do modo especial no Tríduo Pascal. Se o é para toda a Igreja, em Braga ainda é com maior intensidade, solenidade, profundidade e interioridade naquilo que procuramos, neste esforço de renovação na continuidade, respeitando também esta hermenêutica da continuidade, fazer sobressair o coração do coração do ano litúrgico, que é o mistério da Páscoa.
Este ano, Braga é também a capital portuguesa da cultura. Falava de renovação, pergunto se houve preocupação de renovar também as propostas culturais e espirituais em 2025?
Sim, estão em renovação, porque está tudo interligado, a fé torna-se cultura, com impacto social e é manifestação daquilo que não se pode dizer, do indizível, do invisível, mas nessa renovação também em ordem à purificação e à conversão. Há ritos que são extraordinários e por si falam, há outros que precisam dessa tal purificação, como por exemplo a procissão teofórica em Sexta-Feira Santa, com alguma renovação este ano, para se respeitar o espírito da própria liturgia e não se entrar em qualquer tipo de encenação ou de teatralismo – mas que seja no alinhamento do próprio sentido mais profundo do Tríduo Pascal.
Falou do impacto cultural, mas há também um impacto económico para toda a região decorrente da Semana Santa. Isso reflete-se na forma como as diferentes entidades preparam esta celebração?
Sem dúvida e há uma boa articulação na Comissão da Semana Santa, que envolve a autarquia, os empresários, a Igreja, as instituições, as confrarias, as irmandades, as instituições culturais. Reflete-se na presença de tantos turistas e peregrinos, porque há este misto onde se sentem de uma maneira especial os peregrinos, aquelas pessoas que vão para fazer essa experiência da interioridade pascal, sobretudo na celebração de Laudes de sexta e sábado e depois durante toda a manhã, na celebração da Reconciliação – no ano passado, éramos 12 padres a confessar e estivemos toda a manhã neste serviço de escuta e de acompanhamento. Mas reflete-se também nos hotéis e na vida social da cidade.
As autoridades dizem que, por exemplo, a procissão mais participada é a do Enterro do Senhor, de Sexta-feira Santa, que pode envolver cerca de 100 mil pessoas. A procissão da Burrinha, na quarta-feira à noite, também está num crescendo e é uma verdadeira catequese bíblica, pastoral, espiritual, porque é sempre à luz do itinerário pastoral da arquidiocese.
Há algum estudo sobre o impacto econômico da Semana Santa?
Eu penso que sim, que a Associação Empresarial ou Comercial já tem esse estudo e ele é favorável para que ainda seja assumida com maior cuidado e sem medo a Semana Santa como a centralidade do programa cultural e espiritual da cidade de Braga.
Do ponto de vista mundial, a Semana Santa é o ciclo litúrgico central do calendário católico. Já falou de algumas manifestações específicas que Braga tem nas suas celebrações. Como é que a arquidiocese assume o desafio de aproveitar este espaço de evangelização?
É, de facto, a maior escola da formação litúrgica ao longo do ano, antes de mais com o presbitério, com o Seminário Maior Conciliar, com os vários ministérios da catequese, da liturgia, da caridade, evolvendo o mais possível e fazendo sobressair esses ritos no caminho de Páscoa que juntos estamos a percorrer, na arquidiocese, até 2033, em ordem à celebração dos dois mil anos da Páscoa. O rito que para mim é mais significativo é o da Vigília Pascal, o chamado ‘accendite’: depois da renovação das promessas batismais, por três vezes se apaga o Círio Pascal e por três vezes se reacende, com o canto do arcebispo, num crescendo, com essa expressão latina, ‘accendite’. Acender, acende-te, para dizer que a fé, ao longo do percurso da vida, tem altos e baixos e às vezes pode mesmo apagar-se, ou quase apagar-se, e é preciso reacender, é preciso que a comunidade tenha os tais adultos na fé e os acompanhantes para que se reacenda a fé na esperança e na caridade.
Vemos que em muitos países europeus há um aumento do número de adultos que procuram o batismo, algo que é ainda residual, digamos, em Braga, apesar de haver um aumento este ano no número de batizados na Vigília Pascal – 10 catecúmenos, na Catedral. É um sinal de que arquidiocese continua a ser, na sua essência, um território de tradição católica? Ainda há elevados níveis de prática religiosa?
Ainda há, sobretudo no que respeita à piedade popular, mas há um esforço que a arquidiocese está a fazer também no renovar, no primeiro anúncio, continuando com tudo aquilo que já existe e que seja do amadurecimento e do acompanhamento na fé. Como diz, na Vigília Pascal teremos 10 catecúmenos, com a particularidade de dois deles celebrarem o matrimónio na própria celebração. Em muitas outras paróquias demos essa autorização de acolherem na Igreja, na iniciação, dezenas de pessoas.
Qual é a proveniência destes catecúmenos?
São de várias nacionalidades, inclusive daquelas mais inesperadas, como a China.
Mais um efeito da imigração?
Exatamente, porque Braga é já uma cidade onde se nota esta interculturalidade e a inter-religiosidade que são desafios acrescidos à Igreja Católica naquele território.
Está-se a renovar a Igreja também desta forma?
Também está, e de um modo especial na cidade de Braga, isso é muito sentido, particularmente até com a presença dos brasileiros, as igrejas voltaram a encher e até nas propostas dos Cursos Alpha.
Braga claramente é um destino cada vez mais procurado pela comunidade dos brasileiros em Portugal. Estava a dizer que muitos já estão integrados nas paróquias, também sabemos que há outros que pertencem a diversas igrejas e comunidades cristãs. Há uma noção aproximada desta realidade? Ela representa também um desafio para as comunidades católicas?
É um enorme desafio. Dos dados que conheço, são cerca de 30 mil brasileiros que estão no território e muitos deles professam a fé católica. estão a renovar as comunidades onde estão inseridos, sobretudo com propostas de formação ativa e criativa na constituição de tantos grupos e movimentos. É certo que também, a par disso, existem muitos outros desafios com seitas e outras igrejas, outras religiões, com as quais procuramos também estabelecer o diálogo que já é possível. Por exemplo, a presença da Igreja Metodista em Braga, que é significativa: na terça-feira irei celebrar com eles a Páscoa para que todos estes sinais possam ser também sinais de esperança, no tempo da Páscoa. Pela primeira vez nestes três anos, irei celebrar ao Estabelecimento Prisional em Braga, em plena Semana Santa, estão reunidas as condições para que tal possa acontecer e é de facto um momento grande.
A Arquidiocese vai destinar a renúncia quaresmal à aquisição de livros litúrgicos, especialmente do Missal Romano, para oferecer às dioceses de Bafatá e de Bissau, na Guiné-Bissau, onde esteve em visita há algumas semanas. Que impressões trouxe da sua passagem por aquele país africano?
É uma experiência muito bela, muito intensa e profunda e para ser consolidada. Nasceu com o acolhimento de um padre para o doutoramento em Filosofia, na Católica, em Braga, e na relação que se estabeleceu com o administrador diocesano, um padre italiano, e neste momento já com o bispo eleito que na oitava da Páscoa estará em Braga para consolidarmos esta relação. Na ida lá, juntamente com a responsável do Centro Missionário da Arquidiocese, já levamos cem quilos de livros que foram entregues às paróquias e estamos também com o projeto da Biblioteca do Seminário Maior Interdiocesano de Bissau-Bafatá e na ajuda da criação da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica naquele país, para naquilo que nos é possível, na formação, na proximidade, na cooperação recíproca, podermos reforçar estes laços de fraternidade e de proximidade. É uma Igreja muito presente, muito significativa naquele território maioritariamente muçulmano.
Os dias em que estive, os dez dias, coincidiram também com o Ramadão e na nossa Quaresma, o que permitiu conhecer mais de perto essa realidade e fazer essa experiência num país de língua portuguesa, com os desafios que estão inerentes. A Igreja Católica está a fazer um bom trabalho e nota-se também com os catecúmenos que são apresentados agora na Vigília Pascal.
E a convivência entre muçulmanos, cristãos e católicos é diferente em Bissau e na Guiné do que é, por exemplo, noutros países da África, onde a hostilidade é progressiva?
Sim, com alguns riscos, mas é uma relação pacífica e sempre com muitos pontos de entendimento. Eu próprio fiz essa experiência na bênção de um terreno para a construção de uma capela em território muçulmano e depois, em troca, a comunidade cristã está a cooperar também na construção da escola corânica nessa mesma comunidade. Senti nestas comunidades, em concreto, uma relação muito humana, muito próxima, muito fraterna.
Costuma referir-se à paróquia de Santa Cecília de Ocua como a paróquia 552. Também esteve recentemente no território e não há muito tempo, na Renascença, o padre Manuel Faria descreveu que neste momento existem situações de fome extrema na região. Que notícias é que lhe têm chegado o terreno?
Neste momento e já depois do Ramadão – porque a nossa paróquia de Santa Cecília e de Ocua, em Cabo Delgado, Diocese de Pemba, se situa num território maioritariamente muçulmano – começam a sentir-se movimentações que trazem alguma preocupação e vigilância. No entanto, a Igreja continua com essa ajuda próxima das pessoas e neste momento até está a decorrer um curso para catequistas, na programação normal da Semana Santa e das atividades que temos em curso, nomeadamente o apadrinhamento de 220 jovens, raparigas, para o secundário. Felizmente foi possível conseguir isto, gostaríamos de apoiar mais para ajudar na formação das mulheres, na própria promoção da sua dignidade humana. Não conseguimos resolver todos os problemas, mas no lugar onde estamos, aquela comunidade do padre Manuel Faria com a Sandra e a Paula, é um sinal de esperança para aquele povo, nas mensagens, na partilha que fazemos, sentimos isso e que sem nós seria muito pior.
Essas manifestações preocupantes a que se referiu têm a ver com novos ataques terroristas?
Pode ser, há algumas notícias que conduzem a isso, ainda não tenho mais dados e não falei sequer com o senhor D. António Juliasse, bispo de Pemba, foram só informações das nossas conversas últimas, mas estamos a acompanhar. Todos os dias, o Centro Missionário Arquidiocesano faz esse ponto de situação, a nossa maior ocupação é junto das comunidades que nos estão confiadas e também dos seminaristas que acolhemos aqui – temos sete seminaristas em formação da Diocese de Pemba, dois deles este ano já regressarão à Diocese. Um novo desafio também está para acontecer e até porque há renovação das equipas, esperamos que possa trazer novos horizontes de esperança. Bom seria que a paz fosse efetiva ali no território, com tudo aquilo que compreende desenvolvimento integral e integrador que ainda está muito longe.
Até por causa disso, pergunto se tem também acompanhado, como é que tem sido a recuperação das consequências do último ciclone?
Tem sido muito lenta, as ajudas também são as possíveis, mesmo aquilo que nós conseguimos na Arquidiocese e em muitos outros lugares. Sei que outras paróquias fora da Arquidiocese de Braga, na Diocese de Viana do Castelo, fizeram a renúncia quaresmal para este fim. Estamos a tentar ajudar o mais possível as famílias, na reconstrução das capelas, dos lugares de encontro e sobretudo também na sustentabilidade daquelas comunidades. Agora decorre o tempo das chuvas, é um tempo de esperança para aquele povo, esperamos que as colheitas também sejam boas para que as famílias se possam reorganizar.
As situações de fome de que nos falava o padre Manuel Faria persistem?
Sim, pelos dados que temos, persistem, porque nós não conseguimos acudir a todas as situações. Aos que estão mais próximos da missão ou dos programas de apoio, é-lhes possível manter essa sóbria alimentação diária, enquanto não têm o fruto das suas colheitas, mas em áreas mais longínquas do centro da paróquia ainda se sente essa grande dificuldade. O padre Manuel Faria, nos artigos que tem escrito e também na entrevista que deu aqui, é testemunha em primeira mão desta dura realidade na missão.
Esta vai ser uma Páscoa marcada pela incerteza, a vários níveis, também com conflitos militares e guerras comerciais. Sente que vai ser mais difícil passar uma mensagem de esperança?
É difícil no tempo que nos toca viver, porque é muito complexo: é a guerra económica, é a guerra que corre na Ucrânia, na Terra Santa, em tantos outros lugares do mundo; são as ideologias que não respeitam a dignidade da pessoa humana, a sua identidade e este desenvolvimento em ordem à paz, ao progresso, à ecologia integral. Por isso, torna-se difícil a transmissão da paz, mas a própria celebração da Páscoa anual é um momento privilegiado de sermos testemunhos de paz pelos nossos gestos, pela nossa ação. Antes de mais, para quem é crente, pela oração confiante naquilo que é a nossa esperança e por isso não engana, como nos propõe para este Jubileu o Papa Francisco – sermos peregrinos de esperança e de uma esperança que não engana, porque é Jesus Cristo, é Ele o caminho, a verdade e a vida. Sem a cruz não há Páscoa e sem Páscoa não há cruz e ser peregrino é isto mesmo, é encarar a realidade numa procura constante de ultrapassar os obstáculos e torná-la um lugar de esperança.
A esperança tem de espantar, nós temos de nos surpreender e esse é o grande anúncio da Páscoa: que Cristo ressuscitou, que Ele nos ama, que nos quer bem e todos os nossos gestos e ações têm de ser nesse caminho de Páscoa para trazer mais luz, mais alegria e beleza a este mundo que habitamos, para que continue a dar gosto e consigamos também rasgar, cada vez mais, horizontes de esperança para toda a humanidade.