Rui Ferreira, Arquidiocese de Braga
1 – Nos últimos três anos, os cristãos foram continuamente acometidos por palavras como “sínodo”, “processo sinodal” e, até, “sinodalidade”. Efetivamente, a Igreja vivenciou entre 2021 e 2024 um momento de singular encontro e reflexão, que pretendeu reavivar a nossa “comunhão plural”, tendo como objetivo essencial a construção de comunidades cristãs orientadas para a missão, “unidas pelo facto de se reunirem para dialogar, discernir e decidir”[1]. Dando continuidade, e propondo-se aprofundar o magistério inaugurado pelo Concílio Vaticano II, o Sínodo partiu do pressuposto, sempre impreterível, de que “cada batizado é convocado para ser protagonista da missão”. Se nada mais fosse pretendido deste processo sinodal, a consciência crescente desta ideia na Igreja – particularmente pelos seus bispos e presbíteros – já representaria um enorme progresso para todos nós.
2 – A ideia de uma Igreja em que cada batizado tem a possibilidade de vivenciar um papel ativo na sua comunidade, não deixa de aparecer como revolucionária perante o contexto eclesial que se nos apresenta. É verdade que as mudanças impulsionadas pelo Concílio Vaticano II foram gerando uma transformação relevante nas estruturas eclesiais, no entanto, a Igreja continua profundamente clericalizada, organizada de uma forma excessivamente hierárquica e burocrática, facto que compromete a mudança estrutural pretendida. E essa enfermidade foi devidamente identificada pelo Sínodo: clericalismo. É urgente, pois, que a Igreja inicie um processo de “desconstrução de quadros mentais herdados e de modos habituais de fazer as coisas”[2], tendo em vista o surgimento de um “novo estilo eclesial”. Esta nova forma de ser Igreja pode começar por aspetos que nos podem parecer menores, mas são representativos da mentalidade dominante. Desde a forma como se organiza a disposição de uma sala, até à ordem de trabalhos de uma reunião ou por uma constituição mais plural de grupos, comissões ou departamentos.
3 – As Igrejas locais são agora chamadas a implementar, nos diversos contextos, as indicações autorizadas contidas no Documento Final do Sínodo, através de uma reflexão comunitária, que exige “uma participação mais ampla dos leigos e leigas nos processos de discernimento eclesial e em todas as fases dos processos de decisão”[3]. A palavra “discernimento” é decisiva neste documento, registando 69 ocorrências, maioritariamente remetendo para o imperativo discernimento comunitário que as conclusões deste Sínodo devem provocar nos diferentes setores da Igreja. Reconhecendo os obstáculos provocados pelo “cansaço”, “resistência à mudança”, ou pela “tentação de fazer prevalecer as nossas ideias sobre a escuta da Palavra de Deus e a prática do discernimento”, o Papa Francisco deixou bem claro o caráter inclusivo do texto agora publicado. Isto porque o documento final não pretende ser um normativo orientador de mudanças[4], mas sim um “guia para a missão das igrejas, nos diversos continentes, nos diversos contextos”, que possibilite a sua “transformação interna”.
4 – O primeiro passo para a sinodalidade é precisamente o arrependimento e conversão. Tal como na nossa vida quotidiana, só após superarmos a dureza dos corações, poderemos abrir-nos à comunhão[5]. Este processo, inspirado na vivência dos primeiros cristãos, pode constituir-se como um ponto de partida determinante para a renovação de qualquer comunidade cristã, seja uma diocese, uma paróquia ou um qualquer grupo apostólico. É verdade que as palavras “sinodal” e “sinodalidade” têm tomado conta dos discursos, documentos ou cartas apostólicas, no entanto, aparece pouco vertido nas atitudes e ações concretas. Quando vemos responsáveis clericais pegarem no chicote, presumindo-se encarnados do mesmo espírito que conduziu Jesus Cristo no episódio dos vendilhões do templo, e arrogando-se da sua autoridade para tomar decisões e “pôr tudo na ordem”, sem escutar os legítimos membros das comunidades afetadas pelas suas decisões, contraditamos toda a essência da sinodalidade, rejeitando almejar o imperativo consenso dos Fiéis (consensus fidelium) e fomentando o clericalismo que dizemos reprimir. No dizer do Papa Francisco, a sinodalidade oferece “o quadro interpretativo mais adequado para compreender o próprio ministério hierárquico”[6], desempenhado particularmente por bispos e presbíteros.
5 – Como (bem) afirma Tomáš Halík, “o Sínodo deve libertar a Igreja do “clericalismo”, em que os bispos e presbíteros assumem isoladamente as decisões, mesmo quando aparentemente tomadas de forma colegial, mas também de leigos que assumem uma forma de estar “de apenas ouvir e esperar” as deliberações tomadas pelo clero. Quando alguns cristãos criticam o Papa e o Sínodo pelo facto de não provocar as mudanças revolucionárias que esperam na Igreja, estão precisamente a ser agentes do clericalismo que tanto criticam, uma vez que depositam apenas no clero a responsabilidade de produzir as mudanças de que a Igreja precisa[7]. Para o teólogo checo, o Sínodo oferece-nos os impulsos e energia necessários para irmos mais longe. O processo sinodal apenas pode gerar uma transformação se mobilizar todos os cristãos. A grande responsabilidade do clero é acolher as ideias e inspirações do Sínodo e despoletar o processo. Todos os cristãos devem assumir a sua responsabilidade neste processo.
6 – Não podemos, no entanto, resumir o papel do clero, mormente os bispos e o seu presbitério, à realização de assembleias sinodais, que, por mais que procurem o aprofundamento das inspirações que brotaram do Sínodo junto de religiosos e leigos imbuídos de missões concretas nas Igrejas locais, estão longe de ser suficientes para estender o seu lastro à generalidade dos cristãos de uma diocese. Não será esta uma oportunidade para promover sínodos diocesanos, capazes de promover a necessária análise à vitalidade cristã das comunidades, que coloquem todos os seus membros num processo de discernimento que conduza a efetivas mudanças, não impostas, mas que brotem de uma reflexão e de um diálogo participado?
7 – No caso concreto da Arquidiocese de Braga, como não recordar a extraordinária revitalização eclesial que ocorreu após o bem-sucedido Sínodo Diocesano realizado entre 1994 e 1997, que finalmente verteria para a estrutura funcional das comunidades muitas das mudanças propostas pelo Concílio Vaticano II, ocorrido mais de três décadas antes? Não será este momento histórico da Igreja uma oportunidade para promover o 41.º Sínodo Diocesano (um dos organismos de participação previstos[8]), no qual se registe uma participação ainda mais significativa do povo de Deus, “o sujeito comunitário e histórico da sinodalidade e da missão”[9]?
Rui Ferreira
[1] Documento Final da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, ponto 28 (disponível em www.synod.va).
[2] José Frazão – “Ainda só estamos no início – da Igreja clerical à Igreja sinodal”, disponível em https://pontosj.pt/especial/ainda-so-estamos-no-inicio-da-igreja-clerical-a-igreja-sinodal/
[3] Documento Final da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, ponto 76 b) (disponível em www.synod.va).
[4] Cf. PAPA FRANCISCO – Discurso por ocasião da comemoração do 50.º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos, 17 de outubro de 2015, disponível em www.vatican.va.
[5] Documento Final da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, ponto 6 (disponível em www.synod.va).
[6] PAPA FRANCISCO – Discurso por ocasião da comemoração do 50.º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos, 17 de outubro de 2015, disponível em www.vatican.va.
[7] TOMÁŠ HALÍK – “No Coração da Esperança”, Episódio 1, disponível em www.youtube.com/@RedeSinodal.
[8] Documento Final da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, ponto 103 (disponível em www.synod.va).
[9] Documento Final da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, ponto 17 (disponível em www.synod.va).