Testemunho da fé já não dispensa a Internet que ajuda a encurtar distâncias
Quem poderia imaginar há dez anos um jornal de parede que pudesse ser lido em qualquer parte do mundo? Ou uma mesa de café onde se pudessem juntar milhares de pessoas? O testemunho da fé já não dispensa este meio que encurta distâncias.
No princípio era o blogspot
Annus domini 2003: Portugal é invadido pelos blogues. As primeiras entradas centram-se sobretudo no debate político. Depressa entram online novos temas – ciência, cultura e até questões mais banais e pessoais. Um blogue é um terreno onde o autor cultiva o que bem entender.
Na reflexão religiosa, é a comunidade evangélica que primeiro se fez notar. O destaque vai para Tiago de Oliveira Cavaco, a «Voz do Deserto», que se mantém uma referência na blogosfera portuguesa. Desta voz nasce um primeiro coro, o blogue colectivo «Os Animais Evangélicos», estrela de apenas alguns meses no cyberespaço, nem por isso pouco brilhante, ao mostrar uma parte do debate interno dos cristãos reformados. Apagou-se, não sem antes provocar a reacção de católicos para uma plataforma semelhante, «A Terra da Alegria», espaço que se abriu a diferentes sensibilidades religiosas e até a pessoas sem religião.
Fora do âmbito cristão, podemos encontrar blogues de relevo, como a «Rua da Judiaria», de Nuno Guerreiro Josué, judeu português a viver nos EUA, ou o «Povo de Bahá», de Marco Oliveira, onde a história e as especificidades dessa fé se cruzam com a reflexão sobre as questões religiosas em geral, de um modo fundamentado e informado.
O Evangelho segundo a Blogosfera
Não é possível apontar um blogue católico de referência, mas há na World Wide Web inúmeras sensibilidades e formas de acção com origem por todo o país.
José Manuel Pureza, apresenta-se no «Palombella Rossa» como “católico tresmalhado, com paixão pelo risco da fronteira e pela novidade quotidiana da vida” e lança desafios à Igreja e ao Mundo. Doutra perspectiva, em «A Casa de Sarto», J. Sarto e Rafael Castela Santos, dão conta de razões e convicções, num “blogue católico tradicional, antimodernista e antiprogressista”.
Muitos pequenos grupos eclesiais já perceberam que estar online pode ser um contributo para a dinamização de comunidades.
No «FASrondas» (Famílias, Aldeias e Sem-abrigo), um grupo de jovens voluntários, ligado aos Jesuítas, divulga os trabalhos de acção social junto dos mais carenciados do Grande Porto.
Os antigos alunos do Seminário da Imaculada Conceição, da Figueira da Foz, criaram um ponto de encontro no espaço virtual, «Semintendes».
Alguns padres já aderiram à blogosfera e utilizam-na como território de acção pastoral. Talvez o caso mais curioso seja o «Confessionário dum padre», onde o dever de segredo se prolonga para a identidade do autor, para dar testemunho do trabalho de pároco e fomentar o debate. Também de interesse, é a ideia do Pe. Carlos, do Arciprestado de Celorico da Beira, na diocese da Guarda, que criou um blogue para cada uma das sete paróquias que tem a cargo.
Mais a Sul, o Pe. Nuno Miguel, director do Instituto Justiça e Paz, em Coimbra, e responsável pelo pré-seminário nesta Diocese, assume, entre as tarefas que lhe ocupam a agenda, uma presença assídua na Internet, através de um blogue, «Para além das evidências».
“Para a geração a que pertenço, este mundo quase que se impõe. A comunicação acontece muito na Internet e eu sempre gostei de comunicar, pelo que foi natural tomar esta opção”, explica.
O Pe. Nuno Miguel admite que o blogue é “provavelmente o espaço onde sou mais eu” e onde escreve mais, “coisas existenciais, não apontamentos contextualizados”.
O tempo tem limites, admite, mas defende a “importância de estar aí”. E esse aí inclui a rede social Facebook.
Mais abaixo, na Diocese de Leiria-Fátima, o Pe. Luís Miranda é director espiritual do ano propedêutico no seminário. Pertence à Diocese de Coimbra, mas acompanha ali alunos de várias dioceses. «No coração de Deus» é o título que dá nome à sua presença neste grande espaço.
“A escrita é um hábito que me acompanha há muito tempo, sempre gostei de escrever, de escrever o que rezo”, confessa.
A conversa com os amigos levou, após perceber o mundo da blogosfera, a perceber que “poderia ser importante partilhar com gente anónima muito daquilo que é a minha experiência pessoal de fé, o meu entendimento da vida”. O Pe. Luís Miranda diz que “este meio aproxima muitos que podem estar distantes e provocar alguns que estão próximos”.
Nenhum dos dois se oculta atrás de “nicknames” ou identidades falsas, apresentando-se no mundo virtual como são na vida real: padres da Igreja Católica, que ali continuam a sua actividade.
O Pe. Nuno Miguel admite que “se tenho alguma mais-valia, é ser o que sou, padre, amigo” e que se “sente confortável com a ideia de ser padre e poder chegar mais longe, assim”.
Esta exposição abre portas para críticas e comentários dos mais variados quadrantes. O Pe. Luís Miranda assinala que “já aconteceu alguém escandalizar-se por tratar Deus por «tu» e escreveu-me um mail a dizer que um padre não podia tratar Deus assim”.
Nalguns casos, é já reconhecido como o padre do blogue “No Coração de Deus”, proporcionando “algumas conversas”.
Os blogues também chegaram ao episcopado português. D. António Couto, bispo auxiliar de Braga, mantinha antes da ordenação episcopal uma presença assídua no blogue da Sociedade da Boa Nova. Posteriormente assumiu, singularmente, um blogue, onde partilha com os cibernautas uma «Mesa de Palavras».
Outras margens
O debate religioso na blogosfera vai para além das manifestações confessionais. Joana Lopes, durante muitos anos católica activa, agora afastada de qualquer convicção religiosa, manifesta, «Entre as brumas da memória», um olhar atento também sobre os assuntos da fé. Já no «Diário Ateísta», encontramos uma visão crítica e muitas vezes corrosiva da religião.
As questões inerentes ao fenómeno religioso não escapam à actualidade e é normal terem lugar em blogues de tendência política: o «Abrupto» de Pacheco Pereira, o «Arrastão» de Daniel Oliveira ou os colectivos «31 da Armada» ou «Cinco Dias». Surgem a propósito do Médio Oriente, das caricaturas de Maomé, dos discursos de Bento XVI com referências ao Islão ou sobre as relações entre o Estado e a Igreja. Até o «De rerum natura», da autoria de sete cientistas não escapa às questões religiosas.
Os blogues são mais uma porta, numa igreja que não se quer fechada.
Redacção/Rui Almeida