Biblista português critica livro do Papa

Pe. Carreira das Neves fala de uma abordagem estritamente «canónica» aos textos dos Evangelhos O Pe. Joaquim Carreira das Neves, um dos mais conhecidos especialistas em Sagrada Escritura do nosso país, considera que o novo livro de Bento XVI apresenta uma visão algo limitada da pessoa de Jesus, “não a partir de um estudo crítico”, mas a partir da “vontade de Deus”. “Há sempre um Jesus a descobrir, ainda hoje, à luz do Espírito Santo, vamos descobrindo a real pessoa de Jesus”, assegura. Esse aspecto não está presente, segundo Carreira das Neves, na obra de Bento XVI, que acaba de chegar às livrarias portuguesas. A crítica vai para a maneira como o Papa vê a Bíblia, numa “perspectiva canónica”, mais habitual na América do Norte, citando “o Antigo Testamento e o Novo Testamento, os Sinópticos e os textos de São João da mesma maneira”. “Jesus de Nazaré” é a primeira obra de Joseph Ratzinger publicada depois da sua eleição como Papa, em Abril de 2005. Nela, Bento XVI procura apresentar ao leitor “o caminho da minha interpretação da figura de Jesus no Novo Testamento”, que passa por devolver a credibilidade aos textos canónicos, mostrando “o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o «Jesus histórico» em sentido verdadeiro e próprio”, como uma figura “historicamente sensata e convincente”. A posição do Papa vem contrariar uma divisão, já clássica, entre o “Jesus histórico” e o “Cristo da fé”, construído a posteriori. O Pe. Carreira das Neves alerta, ainda assim, para o risco de “a figura do Jesus real ficar pouco enriquecida sem o estudo sério do método histórico-crítico”. Logo no prefácio da obra, o Papa aponta as limitações do método histórico-crítico, uma abordagem aos textos que, através do estudo e pesquisa bíblica, procura levar em conta o contexto histórico que envolve o texto, fazendo uma avaliação crítica de todas as relações desta informação com o sentido do texto. As problemáticas levantadas por este método levaram muitas pessoas, como lembra Carreira das Neves, a “perder a fé na própria Bíblia” e a preferirem textos esotéricos de grande sucesso mundial. Os estudos bíblicos procuram “de forma muito séria”, repor estas questões “no seu devido lugar”, evitando os extremismos literários ou historicistas. “Não há que ter medo de estudar a Bíblia, através de métodos sérios, porque senão podemos cair em fundamentalismos e isso é grave”, refere o sacerdote franciscano, para quem “há muitas maneiras de ver o mesmo Jesus”. “O Papa é um homem da verdade e por isso é que fala tantas vezes da verdade e da história, no seu livro”, acrescenta. O Pe. Carreira das Neves valoriza as passagens do livro em que o teólogo Joseph Ratzinger coloca em paralelo passagens dos Evangelhos com a realidade moderna, mormente “quando estuda as Bem-Aventuranças, as tentações ou o Pai-Nosso”. “Não há dúvida de que ele é alguém que vê na Palavra de Deus a resposta para muitas das questões do mundo moderno – política, economia, ausência de Deus, relativismo – e tira ilações pastorais e morais que são interessantíssimas”, indica. Bento XVI escreve que “o método histórico-crítico é indispensável para uma exegese séria e disponibilizou uma grande quantidade de material e conhecimentos que permitem reconstruir a figura de Jesus com uma profundidade que até há poucas décadas era difícil de imaginar; mas só a fé pode fazer-nos compreender que Jesus é Deus”. “Quem quer entender a Escritura segundo o espírito com que foi escrita, deve atender ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura”, defende Joseph Ratzinger logo no início da obra. É este prefácio, contudo, que sublinha que o livro não é “de modo algum um acto de magistério”, mas um expressão de “busca pessoal”. “Por isso, cada um tem a liberdade de me contradizer”, escreve o Papa. Esta Quarta-feira, Carreira das Neves lançou a sua obra “Bíblia, o Livro dos livros”, onde dedica várias páginas ao livro de Bento XVI. Para este especialista, é possível que “Jesus de Nazaré” segundo Ratzinger venha a “fazer história”. “A obra do Papa vai obrigar muitos professores de Teologia a seguirem o livro, mesmo que não de uma forma cega”, refere, frisando que, caso contrário, os estudantes “poderiam chegar à conclusão de que o professor não está de acordo com o Papa e isso é perigoso”. O exegeta português sublinha que sem uma fundamentação da “verdade histórica” a fé cristã seria “puro mito, uma lenda”. Aqui, Bento XVI “é o homem que nos chama a repensar a verdade a partir da própria história”. Neste contexto, o Pe. Carreira das Neves recorda que “a história bíblica está cheia de géneros literários, sagas, mitos, e isso tem de ser devidamente estudado”. O sacerdote franciscano confessa expectativa relativamente à prometida segunda parte da obra de Joseph Ratzinger, em especial no que se refere ao chamado Evangelho da Infância. “Todos nós desejamos saber o que vai dizer o Papa, à luz da história e à luz da exegese”, conclui.

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