No dia que reservou para os gestos mais significativos da sua visita à Turquia, Bento XVI relançou junto do Patriarca de Constantinopla o debate sobre a Missão universal do Papa. O tema foi aflorado, ao de leve, na declaração comum que assinaram, mas foi claramente abordado no discurso papal na igreja patriarcal de São Jorge, esta manhã. “O tema do serviço universal de Pedro e dos seus sucessores deu, lamentavelmente, origem às nossas diferenças de opinião, que esperamos superar, graças também ao diálogo teológico, retomado recentemente”, disse o Papa no final da celebração da Festa de Santo André, irmão de São Pedro. Bento XVI, teólogo de referência, sabe muito bem quais são as diferenças que separam as duas Igrejas e não foge ao tema. Por isso, frisou que o Papa, sucessor de Pedro como Bispo de Roma, tem uma “responsabilidade universal” e abriu as portas, na linha do que tinha feito João Paulo II, para o debate sobre novas formas de exercício para o “ministério petrino”. Esta questão tinha sido avançada pelo Papa polaco na encíclica “Ut unum sint” para ser reflectida em termos ecuménicos: “eu me reconheço chamado, como Bispo de Roma, a exercer este ministério (…). O Espírito Santo nos dê a sua luz, e ilumine todos os pastores e os teólogos das nossas Igrejas, para que possamos procurar, evidentemente juntos, as formas mediante as quais este ministério possa realizar um serviço de amor, reconhecido por uns e por outros” (n.º 88). Pouco depois do início do pontificado, Bento XVI referia que “o ministério de Pedro consiste num serviço peculiar que o Bispo de Roma é chamado a prestar a todo o povo cristão. É uma missão indispensável que não se apoia em prerrogativas humanas, mas sobre Cristo”. A questão do primado do Papa é um dos principais temas do diálogo entre as várias Igrejas Cristãs. Nenhuma contesta o primado de honra que o Bispo de Roma tem na Igreja universal, mas isto não resolve, até ao momento, a questão relativa à jurisdição desse primado. Para os católicos, o primado do Papa não é apenas de honra, mas de pleno poder de governo sobre toda a Igreja. Bento XVI tem feito questão de afirmar que a sua missão enquanto Papa não é um obstáculo à plena e visível unidade entre os Cristãos, mas sim um “apoio para o caminho rumo à unidade”. Em 2005, na solenidade litúrgica de São Pedro e São Paulo, apóstolos fundadores da Igreja de Roma, uma delegação ortodoxa visitou, como é habitual, o Papa. A ocasião foi aproveitada por Bento XVI para reafirmar a importância do seu ministério enquanto garante da “unidade”, assinalando que “como Bispo de Roma, o Papa desenvolve um serviço único e indispensável à Igreja universal: é o visível e perpétuo princípio e fundamento da unidade dos Bispos e de todos os fiéis”, sendo a referência central para a unidade doutrinal e pastoral. O Papa disse então à delegação ortodoxa que “o primado da Igreja que está em Roma e o do seu Bispo é um primado de serviço à comunhão católica”, assegurando que a unidade que procura desde o início do seu pontificado, entre todos os cristãos, não é “nem absorção, nem fusão”. Bento XVI não passou ao lado, como se vê, de uma das grandes questões no ecumenismo, pelo contrário, o sucessor de João Paulo II avança: é o Papa quem deve estar na frente do caminho ecuménico. Para quando a unidade? O dia de hoje fica na história das relações católico-ortodoxas, mas a própria declaração comum demonstra que, neste momento, a unidade está longe. Deixando de lado, quase por completo, quaisquer argumentos doutrinais, a declaração aposta em argumntos pastorais e práticos sobre a missão da Igreja. Os apelos feitos por Bento XVI e Bartolomeu I vão mais no sentido de se criar uma “plataforma comum” de diálogo e de acção, com testemunho conjunto na UE, no Médio Oriente, na luta contra o terrorismo, na defesa do Ambiente ou dos mais pobres e desprotegidos. Os avanços teológicos, esses, cabem aos especialistas da Comissão Mista Internacional, que procura desde Setembro – após anos de interrupção dos trabalhos – aprofundar as questões levantadas pelo debate em volta do tema “Conciliariedade e Autoridade na Igreja” a nível local, regional e universal. Apesar de todos reconhecerem a importância deste diálogo, a sua verdadeira dimensão requer um olhar sobre a história: a separação das duas comunidades cristãs foi consumada em 1054 e só conheceu melhorias nas últimas quatro décadas. Bartolomeu I não é o “Papa da Igreja Ortodoxa”, não tem poder sobre outras Igrejas nem tem uma grande comunidade a que presidir, em Istambul, mas seria um erro reduzir a importância do Patriarca de Constantinopla a uma dimensão numérica – da mesma forma que seria errado avaliar a importância do Papa pela dimensão do Estado da Cidade do Vaticano, por exemplo. O “primus inter pares” e líder espiritual dos cerca de 200 milhões de ortodoxos do mundo inteiro sofre a contestação interna do Patriarcado de Moscovo – que se distanciou desta visita do Papa -, mas conta com grande influência nos restantes Patriarcados históricos (Alexandria, Antioquia, Jerusalém) e nas Igrejas de tradição grega, do Médio Oriente e do Leste da Europa, numa comunhão de 16 Igrejas Ortodoxas. Bartolomeu I foi sempre um parceiro de diálogo privilegiado de João Paulo II, bem ao contrário do Patriarca Ortodoxo de Moscovo, Alexis II. João Paulo II apresentou ao Patriarcado de Constantinopla, durante o seu pontificado, um pedido público de desculpas pelo ataque dos cruzados em 1204 e devolveu as relíquias de São João Crisóstomo e de São Gregório de Nazianzo, Doutores da Igreja, em 2004. Bento XVI segue, agora, no mesmo caminho de amizade e diálogo fraterno, como foi hoje assumido, mas a “plena unidade” ainda poderá demorar décadas, se não mesmo séculos.