Bento XVI apresenta a «essência» do Cristianismo

«Deus caritas est» explica o que o Papa e a Igreja acreditam sobre Deus, o amor e a humanidade Bento XVI apresentou hoje a sua primeira encíclica, “Deus caritas est” (Deus é amor), um texto breve que apresenta, verdadeiramente, a “essência” do Cristianismo. O Papa procura apresentar uma “fórmula sintética da existência cristã”: Deus é amor e os cristãos acreditam nesse amor, fazendo dele a “opção fundamental” da sua vida. O texto é estruturado em duas partes. A primeira, mais teórica, unifica os conceitos de eros (amor entre homem e mulher) e agape (a caridade, o amor que se doa ao outro); na segunda, centra-se na acção caritativa da Igreja, que apresenta como mais do que uma mera forma de “assistência social”, mas como uma parte essencial da sua natureza. Esta encíclica é a primeira do Papa e, por isso, a mais aguardada. Todos esperavam ver nela uma espécie de “programa” de pontificado, e, de certa maneira, ele está presente nas linhas da “Deus caritas est”. O Papa é um líder espiritual e, nesse sentido, Bento XVI apresenta à Igreja o que considera essencial sobre a fé cristã, aquilo que muitos dão por adquirido, mas que tantas vezes esquecem. Não apresenta uma agenda política, com grandes iniciativas e linhas de acção, mas apresenta o horizonte do Cristianismo, o programa de Jesus: amar a Deus e amar o próximo. A temática do amor é urgente, é eterna, está na origem do homem e espera-o no fim do seu caminho. Tudo isto é dito pelo Papa, com uma linguagem onde ressalta a sua sólida formação teológica, filosófica e cultural, com citações de outros Papas, do Magistério da Igreja, de filósofos da antiguidade e modernos, de escritores clássicos. O programa de Bento XVI tem sido o combate ao que ele próprio designou a “ditadura do relativismo”. Hoje, em vez de ditar regras e anátemas, o Papa procura responder às perguntas mais profundas da humanidade sobre a sua existência e o seu destino, lembrando que, no final dos tempos, será o amor o critério definitivo para decidir sobre “o valor ou a inutilidade de uma vida”. Como o próprio reconhece, “num mundo em que ao nome de Deus se associa, às vezes, a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência”, falar de Deus como amor “é uma mensagem de grande actualidade e de significado muito concreto”. Deus é apresentado, nesta encíclica, como “Criador do Céu e da Terra”, “fonte originária de todo o ser”, “Deus de todos os homens”, como Deus que “é amor que perdoa” e se apaixona pelo seu Povo, apontando-lhe o caminho do “verdadeiro humanismo”. A existências de Deus não limita a liberdade nem a realização pessoal do homem. “A história do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no facto de que esta comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim, o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impõem de fora os mandamentos, mas é a minha própria vontade, baseada na experiência de que realmente Deus é mais íntimo a mim mesmo de quanto o seja eu próprio”, escreve. Contra as correntes de espiritualidade que se vão tornando cada vez mais populares nos nossos meios, a encíclica refere que “a unificação do homem com Deus – o sonho originário do homem (…) não é confundir-se, não é afundar-se num oceano anónimo do divino”. O Amor A encíclica parte de uma citação da I Carta de São João: “Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele” (1 Jo 4,16). Para Bento XVI, começa aqui a desenhar-se o seu primeiro objectivo, revelado já esta semana durante um congresso no Vaticano – devolver ao “amor” o seu esplendor original. Hoje, como lembra o Papa, o amor é utilizado por tudo e por nada, o que faz com que, na maioria dos casos, estejamos na presença de caricaturas e não do verdadeiro amor. “O termo «amor» tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, á qual associamos significados completamente diferentes”, constata. Por isso, defende no seu documento que é preciso regressar à origem, “ao amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros”. Bento XVI surpreendeu ao anunciar, ele próprio, a data da publicação da encíclica, e tornou-se, esta segunda-feira, o primeiro Papa a falar sobre uma encíclica antes que ela fosse publicada. A surpresa estende-se, de certa maneira, ao facto de ter querido dedicar a sua primeira grande carta à Igreja ao tema do amor, “uma única realidade, embora com distintas dimensões”, desde o apaixonado “eros” que, passando por um caminho de “purificação”, desemboca no “agape”, no amor que renuncia a si mesmo, em favor do outro. O Papa admite que houve, na história da Igreja, uma “marginalização” do termo “eros”, apresentando uma visão panorâmica da concepção desse termo na história e na actualidade. Para Bento XVI, contudo, a Igreja “não destruiu” o eros, mas “purifica-o”, explicando que “a falsa divinização do eros priva-o da sua dignidade, desumaniza-o”. “O eros degradado a puro «sexo» torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma «coisa» que se pode comprar e vender, o próprio homem torna-se mercadoria”, alerta. Nesta matéria, explica, a fé cristã “sempre considerou o homem como um ser uni-dual, em que espírito e matéria se compenetram mutuamente”. “O homem, a pessoa, ama como criatura unitária, de que fazem parte corpo e alma”, sublinha. “A fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenómeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões”, acrescenta. O matrimónio Desde o início da encíclica, o Papa apresentou a relação entre homem e mulher como o “arquétipo” do amor. No número 6, explica-se que o ser humano passa “do amor indeterminado e ainda em fase de procura” para “a descoberta do outro” e que dessa evolução do amor faz parte que ele procure um “carácter definitivo”: “no sentido da exclusividade e no sentido de ser para sempre”. “À imagem do Deus monoteísta corresponde o matrimónio monogâmico”, frisa. Assim, o matrimónio como aparece como fruto de um amor que “visa a eternidade” e compreende a totalidade da existências. A própria Bíblia, diz o Papa, mostra desde o início que “só na comunhão com o outro sexo” o homem poderá tornar-se “completo”. A encíclica lamenta que, muitas vezes, o amor entre casais seja reduzido a um prazer sexual egoísta, lembrando que o mesmo precisa de ser purificado, de modo a chegar “ao cuidado e à preocupação pelo outro”. Ao encontro de quem sofre O Cristianismo, escreve o Papa, nasce do encontro com um acontecimento, “com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, um rumo decisivo”. Não há, aqui, nada de abstracto e é por isso que Bento XVI dedica a segunda parte da sua encíclica ao que denomina “A prática do amor pela Igreja, enquanto «comunidade de amor»”. A encíclica deixa claro que esta acção não é uma mera assistência social, um “serviço meramente técnico de distribuição” ou uma forma de activismo político-ideológico. “Toda a actividade da Igreja é manifestação dum amor que procura o bem integral do homem”, pode ler-se. Para o Papa, a atenção para com os mais necessitados é uma resposta ao amor que vem Deus e exprime uma dimensão fundamental da Igreja, “um dos seus âmbitos essenciais”, tão intrínseco à sua natureza como a própria celebração dos Sacramentos ou o anúncio do Evangelho. Nenhuma destas dimensões pode estar separada uma da outra, como sublinha o Papa: “Se na minha vida negligencio completamente a atenção ao outro, importando-me apenas com ser « piedoso » e cumprir os meus « deveres religiosos », então definha também a relação com Deus. Neste caso, trata-se duma relação « correcta », mas sem amor”. Bento XVI afirma que a própria celebração eucarística “é em si mesma fragmentária se não se traduzir em amor concretamente vivido” e, apelando à Parábola do Bom Samaritano, vivido “aqui e agora”. “Qualquer um que necessite de mim, e eu possa ajudá-lo, é o meu próximo”, adverte. “A união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele Se entrega”, observa ainda. Essa prática do amor deve ser concretizada, também, pela Igreja “enquanto comunidade”, a todos os seus níveis. Dentro da Igreja, “a família de Deus no mundo”, não deve haver “uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguém os bens necessários para uma vida condigna”, sustenta o Papa. Justiça e Caridade Bento XVI dedica uma parte da sua reflexão à relação entre estes dois conceitos, começando por reconhecer que há “algo de verdade” nas críticas que se fizeram às obras de caridade da Igreja, quando não se empenharam para construir uma “ordem justa”. “A justiça é o objectivo e, consequentemente, a medida intrínseca de toda a política”, escreve. A doutrina social da Igreja teria, neste campo, a missão da “formação da consciência na política”, respeitando a separação entre Igreja e Estado. “O Estado não pode impor a religião, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiões; por sua vez, a Igreja como expressão social da fé cristã tem a sua independência e vive, assente na fé, a sua forma comunitária, que o Estado deve respeitar”, aponta a encíclica. Igreja e política O Papa considera, contudo, que a construção de uma “ordem justa” é uma tarefa “política” numa era marcada pela globalização da economia. A política, explica, “não pode ser encargo imediato da Igreja”. “A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça”, refere o documento. Ora, é precisamente sobre o papel do Estado que o Papa deixa alguns conselhos aos políticos de todo o mundo: “Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda”, precisa. Segundo Bento XVI, a humanidade tem de ter consciência de que “nunca haverá uma situação onde não seja precisa a caridade de cada um dos indivíduos cristãos, porque o homem, além da justiça, tem e terá sempre necessidade do amor”. Numa crítica ao marxismo e às “filosofias do progresso”, o Papa considera que “a humanização do mundo não pode ser promovida renunciando, de momento, a comportar-se de modo humano”, sacrficando o presente em função de um futuro “cuja realização permanece, pelo menos, duvidosa”. Com a globalização, a humanidade dos nossos dias conhece, através dos media, o sofrimento de cada parte do mundo, particularmente chocantes num momento em que se encontram à disposição “inumeráveis instrumentos para prestar ajuda humanitária aos irmãos necessitados”. Além da colaboração Igreja-Estado, o Papa pede uma “voz comum dos cristãos”, um empenho ecuménico na actividade caritativa.

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