Beatificado Religioso a quem a Gestapo «roubou» deficientes para os matar

 

 Eustáquio Kugler, Irmão de S. João de Deus, que foi provincial da Ordem Hospitaleira  na Baviera  no tempo do Hitler,  desde 1925 a 1946, ano da sua morte, foi beatificado  no dia   4 de Outubro de 2009  em Regensbourg (Ratisbona) na Alemanha.

Logo no início do seu governo consagrou  a Província a  Nossa Senhora, a Mãe de Deus, de quem era muito devoto e a quem rezava o rosário desde a sua vida em família. O Irmão Estáquio  Kugler   teve muita dificuldade em entrar na Ordem  por sofrer  de uma ferida numa das pernas por acidente na queda de um andaime. A ferida teimava em não fechar e só cicatrizou quando trabalhava como ferreiro na Centro de deficientes  mentais de Reichenbach dos Irmãos de S. João de Deus. Ao ver-se curado  fez o voto de se fazer Irmão de S. João de Deus apesar de continuar  a coxear um pouco.

Eustáquio nasceu a 15 de Janeiro de 1867 em Neuhaus, paróquia de Nittnau nas proximidades de Reichenbach, sendo o mais novo de sete, quatro filhos e três filhas (afinal como o autor). Foi nesta cidade que entrou na Ordem Hospitaleira a 15 de Janeiro de 1893, dia em que completava 26 anos. Esta casa que eu visitei em 1972 e 1994, antigo mosteiro beneditino comprado pela Ordem em 1890, dispõe de  grande quinta e  tem semelhanças com a  Casa de Saúde de Vilar de Frades – Barcelos. Reichenbach ia marcar uma parte significativa e  dolorosa da vida do Irmão Eustáquio. Depois do noviciado e profissão voltou a ela e ali  professou solene em 30.10.1898. Foi prior em diversas casas a partir de 1905 até à primeira eleição para provincial em 1925. Construiu o grande hospital geral  da Ordem em Regensbourg, mais tarde sede da província, e o melhor da Baviera, inaugurado em 1929, onde  há longos anos  é venerado e invocado na capela dos seus restos mortais.

O seu calvário na defesa dos valores da hospitalidade e dos doentes assistidos começou com  a ascensão de Hitler ao poder em 1933 e exigiu dele muita oração e fidelidade ao Senhor, patentes nos diários dos seus retiros. A euforia com o nazismo  nos Centros e Hospitais da Ordem arrastou muitos, e até Irmãos, a abandonar os seus compromissos  pela causa hitleriana. Sofreu durante anos os alvos persecutórios da Gestapo, polícia política do Hitler, extensivos a todas as ordens religiosas, à Igreja Católica e às suas posições anti-racistas incompatíveis com os ideais nazis da purificação da raça  pela esterilização dos deficientes e condenação à morte em campos de concentração. Todos os pretextos  serviam desde obter denúncia de alegados desmandos morais de irmãos, homossexualidade à  busca de documentos incriminatórios de arquivo.

A partir de  1937 suportou  mais de 30 interrogatórios  sob pressão desumana da Gestapo que pretendia pressionar  o”santo” Eustáquio a  denunciar, de qualquer maneira, os irmãos e  dá-los por culpados para os prender  e incriminar, e assim perseguir a Igreja. De uma das vezes,  após  interrogatório prolongado, e já na Igreja onde recorria à oração diante do SS Sacramento, o Irmão Eustáquio  perdeu os sentidos por stresse e teve que ser socorrido pelos médicos. Nem mesmo assim a Gestapo  desistiu de investir contra a sua humilde  fortaleza.

Um outro dos maiores sofrimentos foi ir sabendo, sem o poder  impedir,  do transporte forçado de centenas de  utentes, deficientes e judeus, dos centros da Ordem para “outras” instituições que não eram mais que campos de morte. Ao todo a Ordem declarou, após a guerra, que das suas casas tinham sido arrebatados pela polícia cerca de 1.760 internados, deficientes psíquicos, ou físicos e que agora, acabada a guerra, não apareciam em parte nenhuma. Pelas duas vezes que visitei a Casa de Reichenbach me diziam os Irmãos que   dali tinham sido carregados vários camiões deles e que os Irmãos ainda tinham salvado  bastantes disfarçando-os com fatos de trabalho e distribuindo-os por várias tarefas. Foram assim arrebatados  600 da Casa de Straubing (1940-41) e eliminados a seguir; de Reichenbach todos os judeus (1940); da Casa de Attl todos (Set 1940); e outros  de Joannesbrunn (1940).

No “seu” hospital  sequestrado pelas tropas americanas, morria o Beato rodeado de Irmãos  e amigos no dia 11 de Junho de 1946, segunda feira de Pentecostes. É este um breve perfil do novo Beato. Razão tem José Luis  Repeto para dar o título Misericordia y Fortaleza à sua  biografia  à base da documentação do Processo de beatificação (Jerez de la Frontera, 2001) e a um opúsculo o de Un gigante de la Hospitalidad, (Madrid, 2009). Onde hauria ele essa força, confiança e misericordiosa hospitalidade nas provas? Na oração e adoração a Jesus Eucaristia e  na entrega  a Nossa Senhora a quem se devotou toda a sua vida.

Aires Gameiro

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