Passou-se há muito tempo. O milénio ainda não tinha dobrado. Os telemóveis eram raros e pesados. O euro era apenas um sonho sem nome. A internet dava os primeiros passos.
Na escola de teologia para leigos, eu explicava que a angelologia era o parente mais pobre da teologia no pós-Vaticano II. Nada de significativo se tinha escrito nas últimas décadas, dizia eu, apesar de um livro do maior teólogo católico, Karl Rahner, que tinha morrido uns dez anos antes. O próprio livro de Rahner era, sem dúvida um dos seus mais fraquinhos, porque ele, explicava eu na aula, sabia bem o que o seu conterrâneo Bultmann tinha dito: que não se posso acender a luz elétrica e ouvir rádio e acreditar ao mesmo tempo em anjos e demónios. A ciência, que é um dom de Deus, tive de sublinhar, destruiu as antigas doutrinas do diabo, dos anjos e dos demónios, que, aliás, eram secundárias na teologia cristã.
Uma aluna remexia-se na cadeira e a certa altura diz:
– Sr. Padre, se pensa que vou deixar de rezar ao meu anjo da guarda e que não ensino a oração aos meus filhos, está bem enganado.
Percebi logo que mais gente estava incomodada com as minhas explicações e adiantei que continuaríamos a falar de anjos e demónios depois das férias do Natal. Era a última aula antes do Natal e não queria que os meus alunos terminassem o período com um certo incómodo quanto às crenças recebidas – algo muito frequente quando se estuda teologia. Por isso, lancei uma última questão:
– Reparem bem. E se pensássemos nos anjos como funções de Deus? Lembram-se dos anjos que aparecem na Bíblia?
Alguém desatou a dizer nomes de anjos, mas um homem que pela idade podia ser meu pai disse logo:
– Desses todos, só três interessam para a Bíblia: Gabriel, Rafael e Miguel.
– Obrigado, disse eu ao senhor que mais tarde viria a ser diácono permanente e acrescentei:
– E qual a função de Gabriel?
Quase responderam em coro que era “anunciar”. Sugeri então que reparassem nos anjos que seriam referidos na liturgia por esses dias e nas suas funções, desejei Bom Natal e concluímos a aula. Uma das alunas ainda me disse, quando já todos saíam:
– Hoje estava para faltar à aula porque queria ir ver como é o centro comercial, mas ainda bem que não faltei. Sempre me interessou esta questão dos anjos, embora nem saiba bem em que pensar. Ou melhor, em que acreditar. E também me intriga porque é que os anjos são sempre representados como jovens. Não há anjos velhos?
Fiquei contente com a partilha e a pergunta. Porque é que não há anjos velhos? Porque é que os anjos são sempre jovens? Serão um reflexo da eterna novidade de Deus? Por esses dias tinha aberto um grande espaço comercial no centro da cidade de Aveiro e quase só se falava disso. Toda a gente queria visitar o centro que comercial que não era como os outros, porque as lojas tinham abertura para o ar livre. Era natural que os alunos da escola de leigos, vindos de várias partes da Diocese, quisessem dar um pulinho ao Fórum.
A escola de teologia para leigos e agentes pastorais funcionava numa sala anexa ao Centro Universitário, pelo que, depois das aulas, que eram em período pós-laboral, costumava tomar um café ou comer qualquer coisa no bar frequentado por jovens universitários. Num das mesas, quatro jovens conversavam com entusiasmos sobre tecnologias. Eram estudantes ou investigadores de Eletrónica e Telecomunicações. Um deles chamou-me para me juntar à conversa.
– Venha cá, sr. Padre, veja se anima o Zé, que está triste como a noite.
Todos se riram com a descrição que hoje poderia ser tomada como racista. O Zé era angolano, casado, com filhos, e estava mesmo triste. Uma tristeza de saudades da família. De saber que passaria o Natal longe dos seus e do seu país. Com bolsa do seu país, fazia um mestrado ou talvez uma pós-graduação em telecomunicações com emprego garantido numa empresa angolana de telecomunicações.
Sugeri ao Zé que não passasse o Natal sozinho. Aliás, estava afixado no placard do Centro Universitário um convite para a Ceia de Natal dos alunos estrangeiros ou sozinhos da academia aveirense. A ceia do ano anterior tinha-se tornado famosa porque o diretor do Centro Universitário Fé e Cultura, que era padre e professor de Música na Universidade de Aveiro, sentado ao piano, ia perguntando aos alunos de onde eram e logo tocava de improviso uma melodia do seu país. Um sucesso de acolhimento e boa disposição.
A conversa dos alunos retomou o assunto das tecnologias. Um deles partilhou que fazia parte de um projeto de uma espécie de “páginas amarelas da internet”, um serviço para saber o que se podia encontrar na grande teia, que “estava a crescer exponencialmente”, “sem ninguém mandar nela”, uma “anarquia saudável”, “sem centros nem poderes”. Tudo expressões da conversa.
– Chama-se Serviço de Apontadores Portugueses. SAP. Mas um colega meu diz que é preciso acrescentar “Online” para ficar SAPO, disse o universitário.
Fiquei fascinado com o assunto e conversamos mais um pouco pela noite dentro. Fiquei a saber que na Universidade havia uma sala onde alguns alunos chegavam a passar duas, três, cinco e até dez horas seguidas a “conversar online” com qualquer outra pessoa que tanto podia estar na cadeira ou lado como no outro lado do mundo.
A conversa não terminou sem um dos estudantes me perguntar algo que, no contexto do dia e da aula, foi uma estranha coincidência:
– Há padroeiros para tudo, não há?
– Sim, há santos padroeiros para quase tudo. Mas não pense que os sei de cor. Talvez encontre alguma lista de padroeiros nessa coisa da internet…
– Quem é o padroeiro das telecomunicações?
– Ah… por acaso, não é um santo. É um anjo, Gabriel – disse eu.
Pensando na aula anterior, reparei que, perante estudantes de ciências religiosas, tinha dado a entender que essa coisa dos anjos estava ultrapassada. E agora, diante de especialistas em tecnologias, estava a afirmar a ação de um anjo. Será que os anjos desapareceram com a luz elétrica e a rádio e regressam com a internet?
A conversa terminou pouco depois, o grupo dispersou-se e, quando eu abandonava o Centro Universitário, alguém corre no meu encalço. Era o Zé.
– Então, Zé. O que se passa? Vai à ceia de Natal do Centro Universitário, não vai?
– Sim, vou, como lhe prometi. Estou triste por estar sozinho cá, mas ainda mais por não ter notícias da minha família.
Explicou-me então que já não via a mulher e os três filhos há mais de três meses. De quinze em quinze dias telefonava. Mas nem sempre as comunicações funcionavam. “Está a ver porque é que o meu país precisa de técnicos de telecomunicações, não está? – disse-me a certa altura da conversa. E explicou-me ainda que telefonar era muito caro e que a bolsa nem sempre chegava a horas. Não era preciso ser muito perspicaz para perceber o que se passava:
– Você não tem dinheiro para telefonar à sua família, não é?
– Isso mesmo.
– Tome lá. Telefone à vontade e se conseguir enviar uma pequena prenda aos seus filhos… – Não completei a frase, interrompido pelo agradecimento por eu lhe ter dado dois mil escudos.
Chegou o dia de Natal. Numa paróquia dos subúrbios da cidade de Aveiro, a celebração estava cheia. No meio da assembleia de rostos conhecidos, uma idosa de cabelos muito brancos. Parecia-me muito feliz e fiquei surpreendido quando, no final da celebração, foi ter comigo à sacristia. Nunca a tinha visto por ali.
– Sr. Padre, hoje é um dia muito feliz para mim. Um novo natal, um dia de ressurreição!
– Sim, disse eu, pensando que a Encarnação do Natal tem em vista a Ressurreição da Páscoa, mas não deveria ser esse o ponto.
– Sabe, hoje o meu neto já passou o Natal em casa. Esteve no hospital, às portas da morte, quase morria estrangulado na janela do jipe novo do meu filho. Mas recuperou como que por milagre. Toda a família está feliz.
Dito isto, a senhora pôs-me qualquer coisa no bolso do casaco que eu estava a vestir depois de me desparamentar e saiu da sacristia.
Ao chegar a casa, pus a mão no bolso para ver o que a senhora lá tinha posto. Encontrei uma nota de dois mil escudos. A nota que eu tinha dado para alegrar o Natal de alguém que estava longe da sua família regressara por meio de alguém que tinha visto a alegria regressar à sua família.
No domingo seguinte, Dia da Sagrada Família, regressando à mesma comunidade, esperava ver a senhora para lhe agradecer o dinheiro. Não estava lá. No final da missa, perguntei a três ou quatro pessoas se conheciam a senhora idosa que me tinha vindo falar no dia de Natal. Ninguém a conhecia. Ninguém sabia de nada. Fiquei perplexo. Só me vinha à cabeça este pensamento:
– Há anjos, sim. E podem ser velhos.
Jorge Pires Ferreira