Aveiro: Cáritas atende vítimas de violência doméstica do distrito e acolhe homens na única casa abrigo do país (c/vídeo)
22 Março, 2025 14:47
Programa 70×7 deste domingo esteve nos vários gabinetes de apoio, nomeadamente social, psicológico e jurídico, e ouviu três vítimas de violência doméstica: um homem, uma mulher e um residente na Casa Abrigo
Aveiro, 22 mar 2024 (Ecclesia) – Ele está casado há 46 anos e é vítima de violência doméstica, quando “há álcool”; após 13 anos de agressões, ela lamenta ter voltado várias vezes para o agressor; filho batia no pai, agora está na Casa Abrigo.
Três casos de violência doméstica acompanhados pela Cáritas Diocesana de Aveiro, onde funciona o Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica, que recebeu, em 2024, mais de cinco mil pessoas e acompanhou 800 vítimas.
“A verdade é que a situação não está a diminuir, e isso é grave”, afirmou Dora Graça, diretora técnica da Cáritas Diocesana de Aveiro que, a partir do atendimento social realizado na instituição há 20 anos, apercebeu-se da “regularidade” dos casos de violência doméstica.
“Estamos a falar em 2006, depois em 2008, já com uma análise a nível nacional, por parte do Estado, do elevado número de situações que eram reportadas. E Aveiro apareceu sempre numa posição nada, claro, feliz. Sempre nos primeiros lugares, enquanto distrito com mais casos de violência doméstica. Tendo nós já essa primeira preocupação, acabamos por ficar com a execução deste núcleo de atendimento a vítimas de violência doméstica, que tem um âmbito distrital”, afirmou Dora Graça.
A Cáritas Diocesana de Aveiro coordena o Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica, de que faz parte a Resposta de Apoio Psicológico a Crianças e Jovens Vítimas de Violência Doméstica, o Gabinete de Atendimento as Vítimas de Violência de Género, no Departamento de Investigação e Ação Penal, e também a Casa Abrigo de Homens Vítimas de Violência Doméstica.
Homem vítima de violência doméstica
Já estamos casados há 46 anos. E agora está tudo a terminar, porque é impossível continuar com esta situação por muito mais tempo, não é? Deixa sempre alguma tristeza e alguma… Mas é impossível viver numa situação destas. É impossível!
Eu mantive isto em anonimato até o INEM ter que ir umas três ou quatro vezes à minha casa. Assim que o INEM foi à minha casa e fiquei exposto perante os vizinhos, perante toda a sociedade, a partir dali, já não há mais que encobrir.
Assim que a gente chega a casa e as palavras agressivas… vê-se logo que há álcool, não é?
Tudo por causa do álcool. Existe ali um mau feitio também, mas o mau feitio nós… E já casados há tantos anos, nós conseguimos viver com pessoas de mau feitio quando a gente vai-se ajustando um bocadinho e vai ignorando certas coisas. Mas, juntamente com o álcool, é impossível. É impossível.
A gente vive com a ideia, com a esperança que as pessoas melhorem mas, neste problema, as pessoas nunca melhoram. Pioram. Estão sempre a piorar.
Eu não tenho outro sítio para onde ir e também não tenho meios económicos para pagar um sítio fora dali. É a minha casa, foi eu que a construí e não tenho meios de pagar um sítio para estar. E então tenho um sótão em cima, afastei-me para lá, mas nos primeiros dias mesmo lá foi difícil e tenho que ter sempre a porta com algumas armadilhas…
Eu acho que a melhor coisa é a gente dizer as coisas e pedir ajuda e não continuar a manter esta situação por muito mais tempo. Porque quanto mais a gente se cala e mais as coisas, mais a escalada vai, vai…
Mulher Vítima de violência doméstica
Foram 13 anos de casamento, foram 13 anos dessas coisas… Sempre a ficar-me com o dinheiro, pegava no meu telemóvel, controlava o meu telemóvel… Se eu quisesse comprar alguma coisa, ele ia comigo, eu não podia ir a uma loja sozinha. Eu agora com esta idade, quando o deixei, é que aprendi a levantar dinheiro, porque eu não tinha controlo nenhum, de nada. Estou a aprender agora muita coisa.
Começou-me a ameaçar também depois em casa: ‘ou deixas de falar para aquelas pessoas ou eu vou-te matar’. Antes de ir para o trabalho, muitas vezes, ele tirava-me as chaves de casa para eu não ir trabalhar, eu tinha que saltar o portão para poder ir trabalhar.
Chegar-me com a faca da cozinha, magoar-me, picar-me, à frente dos meus filhos…
Eu fugi para a casa dos meus pais durante a noite, com os meus filhos. E estive lá ainda há algum tempo, porque infelizmente há muitos casos e a justiça está um bocadinho lenta. Mas, entretanto, fui agredida pelo meu ex-sogro também, e tive de pegar nos meus filhos e ir para uma casa abrigo, até resolver a situação que também ainda está em curso, ainda não está bem resolvida, mas tive de ir para outra zona aqui perto, começar do zero, sem nada.
As coisas foram piorando por aí, com ameaças mesmo de morte. E eu comecei a contactar… Acabei por contactar mesmo a linha de apoio às vítimas.
Eu quando liguei para a linha do apoio às vítimas, perguntei se era mesmo violência doméstica, se me podiam ajudar, porque a maior parte era mesmo psicológico. E muitas mulheres não sabem que isso também é violência doméstica e acaba por ser muito grave, mesmo.
Se fossem todas as mulheres acompanhadas como eu fui acompanhada não voltavam para os agressores.
Utente da Casa Abrigo de Homens Vítimas de Violência Doméstica.
Gosto de estar aqui, na Casa abrigo. Uma instituição impecável. Come-se bem, está-se bem. As doutoras são excecionais… Toda a gente, os utentes também são pessoas que estão aqui por algo que aconteceu na vida deles, como eu… [Por causa de] maus tratos dos meu filho: fiquei sem as pernas… N primeiro mês, segundo e terceiro estava tudo bem. Depois começou-me a tratar mal, começou a bater e a tratar mal… Ganhei-lhe uma aversão que não o posso ver à minha frente! O caso está em tribunal, não sei se vai ser julgado se não…
Se eu tivesse as pernas não fazia isso, porque eu era homem para ele. Assim não. Não sei o que é que lhe passou pela cabeça. Começou a fazer isto, ainda hoje estou para saber porquê.
[Na Casa Abrigo] ajudaram-me em tudo, na minha pensão, estão a ajudar no pedido das próteses, que é oque eu mais quero na vida… Só quero as próteses para poder andar, porque ainda sou muito novo para estar agarrado a uma cadeira.
Foto Agência ECCLESIA/PR, Marina Silva e Mariana Mortágua Pinho
A Casa de Abrigo para Homens Vítimas de Violência Doméstica é coordenada pela educadora social e técnica de apoio à vítima Marina Silva, e tem como “principal função proteger estas vítimas, que podem vir ou não acompanhadas dos seus filhos menores, proteger as vítimas e assegurar a satisfação das suas necessidades básicas”, afirmou.
“Os homens vítimas têm algumas particularidades, algumas especificidades. Têm mais dificuldade em pedir ajuda, por exemplo, por várias questões relacionadas com a masculinidade, a hegemónica, com a forma como são educados”, referiu Marina Silva.
A psicóloga Mariana Mortágua Pinho trabalha na Casa Abrigo, que “deverá ser sempre a última fase de uma experiência de vitimação”, onde “infelizmente muitas das pessoas têm de terminar para conseguirem reorganizar-se a nível emocional e a nível de outras questões e áreas importantes da vida delas para depois terem uma vida mais saudável e estável”.
Foto Agência ECCLESIA/PR, Delcia Pereira
Delcia Pereira está do outro lado da linha quando vítima de violência doméstica ligam para o Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica e sustenta que “é sempre na fase do namoro” que começam os “sinais” de violência psicológica e física, “nomeadamente este do controle, dos ciúmes excessivos, em que as pessoas percecionam e interiorizam isto como algo normal”.
“Tem-se muito esta ideia de que quando eu entro numa relação, temos que ser o ‘nós’, o ‘eu’ e o ‘tu’ deixa de existir. Pressupõe-se que a partir do momento que se entra numa relação, tudo o resto tem que deixar de existir, e isto é um pressuposto geral, que não deveria ser”, afirmou.
Foto Agência ECCLESIA/PR, Mariana Monteiro Rocha
Mariana Monteiro Rocha acompanha crianças e jovens na Resposta de Apoio Psicológico a Crianças e Jovens Vítimas de Violência Doméstica, um serviço da Cáritas Diocesana de Aveiro que surgiu em outubro de 2021 e lida com “situações bastante delicadas e muito complicadas”.
“No namoro, há características que acabam por estar por detrás de comportamentos violentos, que muitas vezes não são reconhecidos pelas pessoas na relação com comportamentos violentos. Situações subtis, como partilha de palavras passe, saber com quem fala, com quem anda”, alertou Mariana Monteiro Rocha.
Foto Agência ECCLESIA, Isabel Lemos
Isabel Lemos trabalha no Gabinete de Atendimento a Vítimas de Violência de Género, no Departamento de Investigação e Ação Penal, e referiu-se a casos que “a maioria das pessoas não tem noção da gravidade” e que são acompanhado no gabinete.
“Este gabinete dá apoio não só a vítimas de violência doméstica, mas também vítimas de crimes sexuais de toda a natureza e também de maus-tratos, e é feito um apoio diretamente na magistratura, não só nas declarações de memória futura, como depois também assessorar da forma como a pessoa está, no estado emocional, dar esta devolução junto da magistratura, e até algumas diretrizes, algumas sugestões, e é um trabalho muito conjunto”, afirmou.
A diretora técnica da Cáritas Diocesana de Aveiro valorizou o trabalho conjunto e as parcerias com autarquias, forças policiais, o Ministério Público, a Segurança Social e outras organizações da sociedade, e apontou para um necessário “trabalho em rede” para ser possível detetar, atender e acompanhar pessoas vítimas de violência doméstica.
Foto Agência ECCLESIA/PR, Dora Graça
“Temos atualmente uma rede de intervenção aqui em Aveiro que reúne um conjunto de serviços, desde os públicos aos privados, às escolas, em que esta rede tem também o objetivo de refletir, de debater o que são, no distrito de Aveiro, todas estas questões no âmbito da violência doméstica, criar sinergias e também definir muito aquilo que são procedimentos, que é articulação, que é fundamental”, afirmou Dora Graça.
A diretora técnica da referiu também outros projetos em curso na Cáritas Diocesana, que partem do serviço de atendimento e acompanhamento social, o centro de alojamento temporário para pessoas em situação de sem-abrigo, acompanhados também no projeto chave de entrada, a casa de acolhimento residencial para crianças em situação de risco,o programa Incorpora, para a. integração de pessoas no mercado de trabalho, e o grupos cáritas, nas várias paróquias.
A reportagem sobre o atendimentos a vítimas de violência doméstica é emitida no programa 70×7, este domingo (na RTP2, pelas 07h30) e depois publicado no canal YouTube da Agência ECCLESIA.
Este domingo, termina a Semana Cáritas, assinalada pela Cáritas Portuguesa e a sua rede diocesana e paroquial, em torno do tema “Envolva-se”.