Homilia do Bispo do Porto na Solenidade da Imaculada Conceição Celebramos, irmãos, a Imaculada Conceição de Nossa Senhora, Padroeira de Portugal. E queremos celebrá-la com todo o significado de cada uma destas palavras. À Imaculada Conceição refere-se o Catecismo da Igreja Católica (nº 490) nos seguintes termos: “Para vir a ser Mãe do Salvador, Maria foi adornada por Deus com dons dignos de uma tão grande missão. O anjo Gabriel, no momento da Anunciação, saúda-a como ‘cheia de graça’. Efectivamente, para dar o assentimento livre da sua fé ao anúncio da sua vocação, era necessário que Ela fosse totalmente movida pela graça de Deus”. Com tal saudação a surpreendeu o Anjo, no diálogo evangélico: “Tendo entrado onde ela estava, disse o Anjo: ‘Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo’. Ela ficou perturbada com estas palavras e pensava que saudação seria aquela”. É, de facto, assim, a graça de Deus: tão absolutamente d’Ele, que encontra a melhor prova na humildade de quem a recebe. A “cheia de graça”, por isso mesmo “imaculada”, comprovou-se assim em humildade total. Como diria depois: “O Senhor pôs os olhos na humildade da sua serva”. Naquela saudação angélica se verificaria a velhíssima profecia, que ouvimos no trecho do Génesis, qual proto-evangelho: “Disse então o Senhor Deus à serpente: ‘Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta te esmagará a cabeça…’”. A inimizade da mulher em relação à serpente é a essencial imunidade de Maria em relação ao mal, porque fruto antecipado da vitória da sua descendência, ou seja, de Cristo, sobre todo o pecado. Vitória de Cristo, Sol de justiça de que a Imaculada Conceição é a aurora. Sol de justiça de que todos os baptizados, por graça do mesmo Cristo, hão-de ser constante esplendor no mundo. Di-lo-emos no Prefácio, louvando o Pai pelo que realizou e realiza em Cristo, em Maria e na Igreja: “Senhor, Pai santo, […] é nossa salvação dar-vos graças […] na Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria. Vós a preservastes de toda a mancha do pecado original, para que, enriquecida com a plenitude da vossa graça, fosse a digna Mãe do vosso Filho. Nela destes início à santa Igreja, esposa de Cristo, sem mancha e sem ruga, resplandecente de beleza e santidade”. E, dizendo “resplandecente”, estamos necessariamente a tomar-nos quais comunicadores da verdade, beleza e bondade de Cristo, que nos restaura pelo baptismo – como o fizera antecipadamente em sua Mãe, desde o primeiro momento da sua concepção – em humanidade autêntica, porque convivida com Deus, única origem e verdadeiro fim de nós todos. Ouvimo-lo na Carta aos Efésios: “Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. N’Ele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade na sua presença…”. Percebeu-o Paulo, desvendando em si e na Igreja nascente o mistério surpreendente da graça. Enaltece-o hoje a Igreja inteira, vendo-o realizado antecipadamente em Maria, a Imaculada Conceição necessária para a nova “Conceição” do Mundo, na redenção de Cristo. Como na primeira terra, saída apenas do poder criador de Deus, nasceu o primeiro Adão, Maria aparece qual “nova terra”, onde Deus recria o mundo com o novíssimo Adão, Jesus Cristo, nosso Senhor. É bom, belo e necessário recordarmos estas coisas, tão nossas pela graça divina. É sempre em Maria, que nos havemos de rever, pessoalmente e como Igreja. A graça de Cristo continua em nós, baptizados, o que começou em Maria, para recriar o mundo. A partir de Deus, sempre a partir de Deus, acolhido como Criador, Pai e “amigo dos homens”. Assim O referimos na liturgia, assim O devemos acolher e respeitar continuamente. Nada em Maria se passa fora de tal acolhimento, estendendo a sua Imaculada Conceição a cada instante da vida: aceitou a maternidade divina, aceitou o acompanhamento de Cristo até aos pés da Cruz, aceitou o acompanhamento do corpo eclesial de Cristo em permanente Pentecostes. Com Ele, é agora também connosco, para a vida da Igreja, para a vida do mundo. A partir de Deus, em cada momento de cada dia, vigilantes, orantes, disponíveis e responsáveis. As coisas dependem de nós, porque com Maria, dependemos de Deus. A Igreja cresce e o mundo recria-se, porque o nosso coração acolhe o poder do amor de Deus. Permiti-me circunstancializar brevemente a meditação. Celebramos a Padroeira de Portugal; realiza-se em Lisboa uma conferência euroafricana; ordenarei de seguida um diácono passionista. Quando Nossa Senhora da Conceição foi proclamada Padroeira de Portugal, o nosso país tinha restaurado há pouco a sua independência. Não faltou quem visse nesta coincidência um sentido profundo e profético. O grande António Vieira, por exemplo, ligaria os dois factos, como se a Imaculada Conceição de Maria indicasse a Portugal um rumo certo e universal, que seria a realização mundial do Evangelho de Cristo, exclusivamente a partir de Cristo. Passaram séculos. Temos hoje diante nós, como sociedade portuguesa, tarefas imensas de geografia mais próxima. Pobrezas a ultrapassar, desenvolvimentos autenticamente humanos a prosseguir, esperanças a consolidar. Que cada um de nós, católicos portugueses, estejamos na primeira linha de qualquer destas fronteiras, com o empenho e a persistência de quem encontra em Deus a sua força. No Deus de Jesus Cristo, que nos coloca em qualquer destes lugares como estava Maria na Anunciação: “Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”. Seja imaculada a nossa disposição, intangível a nossa vontade, absoluta a nossa entrega. A recriação do mundo, com Cristo e Maria, tem agora, necessariamente, o nosso protagonismo cívico e solidário. Realiza-se neste dias a conferência euroafricana de Lisboa. África é o nosso mais próximo vizinho, em termos continentais. Mas pela nossa antiga presença lá, bem como pela crescente presença aqui de pessoas africanas, a vizinhança tornou-se coexistência. A graça de Maria foi para a salvação do mundo e Nossa Senhor da Conceição também é Nossa Senhora de África. Dói-se o seu coração de Mãe, de quanto lá falta, quanto à saúde e à educação, quanto ao desenvolvimento e aos direitos humanos. Como em Caná mediou a intervenção de Cristo, para que não faltasse o vinho, intervém agora junto de muitos discípulos do seu Filho para se desdobrarem em acções solidárias e evangélicas – solidárias porque evangélicas! – que felizmente se repetem e crescem. Na nossa Diocese e no nosso País são já relevantes as iniciativas de colaboração e geminação entre comunidades, paroquiais ou outras, com correspondentes africanas. E é bom verificar como todas crescem assim, interna e externamente. Não tenho dúvidas de que também aqui chega a Imaculada Conceição de Nossa Senhora, continuando por nós a obra redentora de Cristo, que nela teve o primeiro fruto e cooperação. Nisto e no necessário acolhimento e justa integração dos imigrantes africanos que nos procuram. Ordenarei de seguida um irmão nosso, diácono passionista. A graça divina, pelo sacramento da Ordem, continuará nele a obra de Cristo servo de todos, porque servo do Pai. Assim mesmo se intitulou Maria, como lhe ouvimos: “Eis a escrava do Senhor”. Estimado irmão, olha para Maria, para seres absoluto discípulo de Cristo, agradando ao Pai no serviço dos irmãos. Não receberás outro Espírito, pela imposição das mãos. As tuas próprias mãos se tornarão assim proximidade e dádiva, sempre e para todos. Quero também exprimir aos nossos Irmãos Passionistas a gratidão e a estima da Diocese do Porto pelo serviço que lhe prestam, de acordo com o seu carisma, tão próximo da Cruz do Senhor, onde o mundo se refaz, como no Coração de Maria. Sé do Porto, 8 de Dezembro de 2007 + Manuel Clemente, Bispo do Porto