Antropólogo e investigador analisa as transformações que o isolamento social trouxe ao nível da vivência da fé. Admite que há dinâmicas de comunicação que vão deixar “marcas importantes”, e considera que não poder cumprir os ritos fúnebres como é tradição tem sido “uma das zonas mais sombrias” da atual experiência.
Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia)
Fotos: Agência Ecclesia
Em tempo de pandemia, devido ao isolamento social, muita coisa se alterou na forma dos crentes viverem a sua fé. Estas mudanças são circunstanciais, ou em sua opinião na prática já nada voltará a ser como antes?
Julgo que a resposta não pode ser extremada. Nem o mundo se vai alterar de uma forma absolutamente radical, passando a ser outro em relação àquilo que conhecíamos, nem podemos dizer que uma crise como a vivemos não deixe marcas em particular nestas gerações que a estão a viver. Há algumas coisas que porventura irão permanecer como rastos e uma transformação de comportamentos, outras são ajustes circunstanciais que num clima de normalidade voltarão a ser reajustadas.
E o que é que em sua opinião poderá permanecer?
De uma forma geral parece claro que as pessoas estão a descobrir que se podem relacionar e vincular de formas diferentes. Aquilo que a geração dos mais novos – os chamados nativos digitais – conhecia, que eram formas de presencialidade através do continuo tecnológico, é uma experiência que hoje está muito mais partilhada, embora as diferentes gerações se relacionem com isso de forma diferente. É curioso observarmos, por exemplo, como a geração dos mais velhos por vezes usa este tipo de comunicação digital: os avós beijam o ecrã do telemóvel, enviam beijos aos seus netos, ou acariciam o ecrã do tablet para ficcionar um contacto que presencialmente não existe. Para não falar de contextos de trabalho, onde de alguma forma as pessoas fizeram a experiência clara de que é possível trabalhar de outra maneira, e por vezes melhor.
A situação de crise provoca experiências que, na medida em que as pessoas as descobrirem como uma possibilidade, como uma vantagem para vários aspetos da sua vida, incluindo a sua vida religiosa, podem potenciar essas experiências no futuro e promover ajustes naquilo que é a sua experiência social em termos gerais, mas também do ponto de vista religioso.
O ‘Inquérito sobre as Identidades Religiosas em Portugal’, que dirigiu em 2011, apontava para uma transformação nas formas de pertença dos fiéis e para uma progressiva valorização das lógicas de afirmação individual. Neste contexto em que a fé se vive muito com recurso ao digital, e o acesso às celebrações é feito de forma individual, às vezes também família, será que vai acentuar-se esta dimensão pessoal face à celebração comunitária?
Eu diria que aquelas identidades mais estruturadas a partir desse ponto de vista, ou seja de uma organização do seu vínculo, valorizando sobretudo a iniciativa pessoal, essas pessoas estavam mais preparadas para enfrentar uma situação dessas, e portanto neste contexto isso pode acentuar-se. Mas parece-me arriscado dizer que as pessoas com uma religiosidade mais tradicional venham a alterar profundamente o seu comportamento no fim de um período que claramente vivemos como crise.
Eu não penso que se possa dizer que estamos a viver uma mutação civilizacional, as mutações civilizacionais e sociais não acontecem com esta rapidez. Estamos a viver como as sociedades têm vivido desde que existem crises deste tipo. Nós, talvez porque somos uma sociedade que lida com alguma dificuldade com a memória, perdemos de vista que estas situações críticas de epidemias, de pandemias, acontecem à humanidade desde que nos conhecemos. Deixam marcas, é óbvio, mas não somos outra humanidade depois de elas terem acontecido, somos a mesma humanidade que procurou encontrar respostas para este acontecimento. Eu diria que na situação das pessoas que vivem desse ponto de vista uma religiosidade mais vinculada comunitariamente, aquilo que acontece neste momento é claramente uma espécie de diáspora, de um certo sentimento de exílio espiritual, em que as pessoas estão na expetativa de voltar a reatar esses laços assim que puderem.
Há um aspeto que me parece mais relevante, que é o problema da casa e da família, aliás a sua pergunta a dado momento aludia a essa questão. Penso que pode haver uma diferença substancial entre as comunidades em que a identidade religiosa está muito vinculada a uma identidade familiar. Isso acontece, por exemplo no contexto islâmico, onde grande parte das observâncias são de natureza doméstica e familiar, e acontece também em alguns contextos evangélicos, onde a identidade religiosa se estrutura muito a partir de uma identidade familiar, o pai, a mãe e os filhos. Diria que nesse contexto, esta situação crítica que vivemos deu possibilidade às pessoas, ou se quiser, as pessoas tiveram recursos. A religião já era vivida neste contexto doméstico e familiar de uma forma mais vinculada.
Mas não houve também uma redescoberta?
Nalguns casos, talvez, e este é um aspeto que queria sublinhar: talvez no contexto católico esse tenha sido o aspeto mais interessante de observar, embora obviamente não tenhamos ainda dados para poder fazer uma avaliação global disto, mas a experiência que aqui e ali se observa é que algumas famílias fizeram coisas que nunca tinham feito em casa, uma espécie de liturgia das casas, que passou por este trazer a experiência cristã, mesmo na sua dimensão de oração comum, para dentro de casa. E esta é uma marca que está na génese do próprio cristianismo, basta pensarmos nas comunidades paulinas, e percebemos que de facto a Igreja era a casa, e grande parte das dinâmicas de oração comum, de partilha, viviam-se a partir da casa, portanto isso está no ADN do cristianismo, mas por razões históricas, de transformações muito amplas na sociedade, e em particular no catolicismo, nas últimas décadas acentuou-se muito a dinâmica da religião do indivíduo, algumas dinâmicas pastorais acabaram por acentuar muito essa dimensão da religião do indivíduo, desvalorizando a religião da família, ou a possibilidade da religião se viver em família. Nesse sentido é provável que em alguns contextos católicos se possa falar verdadeiramente de uma redescoberta, a possibilidade da família como tal ser protagonista da própria vivência religiosa.
Sobre o ir à missa: é sabido que nos últimos anos a prática dominical tem estado em decréscimo, mas nesta fase em que tantas paróquias procuraram estar próximas das pessoas, e há muitos padres que garantem que nunca tiveram tanta gente a participar na missa na igreja, como têm tido a acompanhar as celebrações que transmitem através dos meios digitais. O que é que isso poderá significar? Será, de facto, pontual este desejo de ir à igreja quando ela está fechada, ou poderá acontecer que se passe a valorizar mais a celebração em comunidade?
Penso que não são exclusivas essas direções, sendo que hoje a regularidade tem às vezes medidas diferentes. Uma das coisas que estudei em 2011/2012 foi, precisamente, verificar que há católicos que recompõem a sua regularidade (em ir à missa) num quadro que não é o que a instituição esperaria. Ou seja, houve pessoas que responderam de uma forma consistente que iam uma a duas vezes à missa por mês, mas percebemos, quando analisámos o seu perfil, que se tratava de um comportamento estável, havia uma regularidade. Não era a regularidade esperada pela instituição, mas era a forma como se vinculavam à comunidade católica.
Penso que de alguma maneira este contexto vai tornar mais visível que hoje, em particular no universo católico, quando falamos de pertença temos de falar necessariamente de uma realidade que pode ter muitos matizes, e que quem continua a ter a experiência católica como uma referência, mesmo que a alguma distância – pessoas que porventura estavam um pouco distanciadas dos dinamismos comunitários católicos -, na medida em que há outras possibilidades de aceder a essas dinâmicas por outros meios, precisamente porque o catolicismo continua a ser para elas uma referência, de alguma maneira viram outras oportunidades de manterem essa memória de relação com o catolicismo, de manterem isso de uma forma viva.
Diria que no fim disto tudo não vamos ter necessariamente mais pessoas a ir à missa do que iam, também não vamos ter menos pessoas a ir à missa do que iam, mas se eventualmente algumas destas experiências se estruturarem como formas de as comunidades estarem presentes noutro tipo de sociabilidades e habitats, podemos ter claramente o início de qualquer coisa diferente.
Vários bispos já elogiaram a criatividade que tem havido nas paróquias, e por parte de alguns sacerdotes, para estarem próximos das comunidades, utilizando os meios digitais. São formas de comunicar que a Igreja não deve desprezar no futuro?
Sim. De uma forma geral a Igreja tem acompanhado as mutações tecnológicas, do ponto de vista da comunicação. Recordo-me quando há uns anos os noticiários abriram com a notícia de que o Papa Bento XVI tinha feito o seu primeiro tweet! O uso instrumental destes meios é algo que de uma forma geral as comunidades religiosas fazem desde há muito tempo. O problema é que estes meios não são apenas instrumentos, constituem-se como contextos de novas formas de relação, novas formas de estabelecer vínculos.
Esta experiência aquilo que mostra às comunidades é que, de facto, uma coisa é ter um site informativo, uma espécie de placard que passou da entrada da igreja para a internet, outra coisa é habitar estes contextos de vida digital. E habitá-los implica, obviamente, conhecer e falar a sua gramática, e eu julgo que a experiência que algumas comunidades fizeram vai ajudar nesta mutação, deixar de pensar nestes meios apenas nessa lógica instrumental, de meios de comunicação, para os pensarmos como contextos vitais, onde a vida acontece. Nesse sentido, penso que pelo menos em alguns contextos comunitários e instituições religiosas esta experiência poderá deixar marcas importantes.
O catolicismo em particular tem vivido momentos inéditos. Estou a lembrar-me das cerimónias presididas pelo Papa Francisco, no Vaticano, sozinho numa Praça de São Pedro vazia. Em Portugal neste período de confinamento foram canceladas muitas procissões, vias sacras, as cerimónias da Páscoa foram muito diferentes, teremos agora o 12 e 13 de maio em Fátima assinalado sem peregrinos. Que marcas é que isto poderá deixar?
Estas excecionalidades, esta espécie de vivência de grandes acontecimentos religiosos a partir de uma linguagem simbólica e inédita, é no fundo uma espécie de metamorfose da experiência de solidão como experiência de comunhão, que é um aspeto muito curioso. O impacto que aquelas celebrações do Papa Francisco tiveram no mundo diz respeito ao facto de, naquela situação, todos se sentirem numa forte comunhão.
Como a situação no mundo era de confinamento, em que todos estávamos em isolamento – que tinha como objetivo não só a preservação de si, mas a preservação do outro, e nesse sentido com um grande significado social – ver uma celebração daquelas, que exprime o mesmo confinamento, acaba por trazer uma densidade de comunicação, de comunhão, que se calhar superou aquilo que teria acontecido numa celebração absolutamente normal. Estou convencido que aquela celebração do Papa teve mais impacto do que uma celebração ordinária com a praça de São Pedro a abarrotar. E porquê? Porque de facto aquele dispositivo em concreto teve uma relação de grande intimidade com todas as pessoas que estão a viver uma experiência semelhante.
E não só os católicos, neste caso.
Exatamente, porque é uma experiência universal. E esse é um aspeto muito interessante, porque de alguma maneira esse momento foi um momento determinante, ecuménico, porque teve como mediador não propriamente a explicitação de uma doutrina, ou um código ritual muito estrito, mas antes um significado humano extremamente aberto, que acabou por ter uma importância muito grande. É uma daquelas situações paradoxais onde algo que é vivido num contexto de excecionalidade acaba por nos fazer descobrir, talvez numa forma mais aguda, aquilo que é o centro de uma celebração. E muitos cristãos, muitos católicos, ao acompanharem aquela celebração, encontraram se calhar aquilo que por vezes está tapado por muitas outras camadas de acontecimentos, e neste caso o que encontraram foi a vivência de uma experiência ritual como comunhão, que é o fulcro da experiência ritual.
Em termos de afetos e de emoções, as alterações que tem havido também afetam as pessoas na sua vivência da fé. Um dos efeitos colaterais da pandemia foram as restrições na forma de se fazer o luto e lidar com a morte. Há traumas a este nível que custarão a passar?
É verdade, e penso que essa é uma das situações mais preocupantes. Essa e a situação dos mais idosos, em particular os que estão em contextos institucionais de acolhimento. O vazio que nesse contexto se vive é, de facto, preocupante. De uma forma geral, a religião, as comunidades religiosas têm um papel importante.
Os ritos funerários são dos ritos mais persistentes nas sociedades. Mesmo nas sociedades extraordinariamente secularizadas, como as sociedades europeias, os ritos funerários são em muitos casos os mais persistentes. E são persistentes porque de alguma maneira fazem aquilo mesmo que é suposto um rito fazer, que é preencher simbolicamente, através de uma linguagem recebida. Nós não fazemos os nossos ritos, nós recebemo-los, portanto, de alguma maneira temos ali uma linguagem que recebemos para viver um momento que é crítico, para o qual não temos palavras, não temos gestos, e as formas comunitárias de vivência desse momento, que em muitos casos são formas muito enraizadas nas tradições religiosas, acabaram por ver grande parte dos seus recursos desfeitos, diria quase demolidos por esta pandemia.
Parece-me seguro dizer que muitas famílias num contexto de perda viveram este problema com uma particular dificuldade e que deve ser acompanhada. Não tenho possibilidade de afirmar, mas talvez as comunidades de pertença religiosa não pudessem ter feito, ou não fizeram tudo aquilo que, se calhar mesmo assim, seria possível fazer. Julgo que será, com certeza, uma das zonas mais sombrias desta experiência.
Como antropólogo como vê o uso da máscara que, sendo obrigatória na maioria dos espaços fechados, poderá vir a sê-lo também, tudo indica, dentro das igrejas?
Será, com certeza, uma experiência de grande estranhamento.
Isto não faz parte do Ocidente?
Não, não faz, e, por outro lado, a minha experiência de investigação no terreno é que os contextos de reunião comunitária, os contextos celebrativos são, atualmente, contextos de reconhecimento. Ou seja, as pessoas vão a uma determinada comunidade, frequentam uma determinada celebração, porque se querem encontrar com os outros, querem encontrar determinadas pessoas. O reconhecimento a partir do rosto, essa expressividade, é de facto muito interessante.
Aliás, quando há uns anos fiz uma investigação, mais prolongada no tempo, numa comunidade paroquial, interessou-me muito perceber, por exemplo, a forma como dentro de um grande rito como o rito dominical paroquial, a assembleia litúrgica dominical – um contexto que aparece em muitos casos muito formal, muito hierático -, há uma comunicação expressiva, informal, entre as pessoas a partir de pequenos gestos, em muitos casos uma comunicação através do rosto, que acaba por ter um impacto muito grande nas pessoas. De facto, julgo que essa será uma aprendizagem que todos irão fazer, mas certamente uma aprendizagem difícil.
As consequências do confinamento afetam também outras religiões, como é o caso dos muçulmanos, num momento em que se celebra o Ramadão. Em termos de investigação, este período de mudanças pode vir a ser alvo de estudo?
Penso que sim, há algumas iniciativas que se estão a preparar já, nesse contexto. Um dos centros de estudos da Faculdade de Teologia, o CITER, propôs precisamente – no recente concurso da Fundação para a Ciência e a Tecnologia – um projeto que visa perceber algumas transformações que esta experiência pode ter desencadeado na vivência do religioso.
Diria que, neste momento, ninguém tem ainda muita capacidade de fazer um retrato… A História ensina-nos algo que parece importante: há muitos imaginários religiosos, muitas narrativas que, no passado, foram construídas em contextos críticos, como este. De alguma forma, estes contextos de uma forte experiência de vulnerabilidade humana foram sempre contextos de forte elaboração simbólica, sob o ponto de vista religioso. A sociedade em que vivemos, no entanto, é desse ponto de vista uma sociedade diferente, em que a religião não tem a capacidade de ser o centro da cultura ou de ser o único centro da cultura, como foi no passado. Portanto, é preciso não perdermos de vista que a sociedade em que vivemos é uma sociedade que vive numa cultura onde as propostas de sentido, as dinâmicas sociais são plurais. Por exemplo, neste momento as pessoas têm também uma forte confiança nos resultados do trabalho dos cientistas… Todos ouvimos permanentemente discursos acerca das expectativas que os cientistas têm para encontrar tratamentos, ou possivelmente uma vacina. Há um forte investimento, porque vivemos numa sociedade de mercado, onde também a ciência fica envolvida.
As expectativas das pessoas não estão centradas apenas na resposta religiosa a esta experiência. Na nossa cultura, é essa sintaxe, um pouco complexa, que traz alguma coisa de novo, porque a pergunta é esta: Quem é que pode responder à situação crítica que vivemos? É uma pergunta legítima. Poderia parecer que a verdadeira resposta, que todos esperamos, é uma resposta de caráter científico-tecnológico, mas eu penso que essa resposta seria superficial. Não há dúvida de que ela é essencial, mas basta observarmos o que acontece à nossa volta para vermos que essa resposta, só por si, não chega. Aliás, é muito importante observar, neste período, a importância que a cultura, as artes, os discursos, as narrativas tiveram. Penso, por exemplo, desde jornalistas que tiveram enorme protagonismo, nalguns formatos informativos em que criaram narrativas, discursos, que no fundo visavam interpretar e propor sentidos para a realidade que vivemos; penso na quantidade de iniciativas musicais, e outras, que preencheram os nossos quotidianos; na própria televisão tivemos espaços noticiosos a abrir com canções, feitas em confinamento.
O tempo que vivemos é um tempo que mostra a complexidade das nossas referências culturais. Nós, hoje, não encontramos resposta para a nossa vida apenas num único lugar, num único contexto. As ofertas de sentido são múltiplas e os indivíduos, os grupos, as comunidades inscrevem-se nessa complexidade. Falar, neste contexto, numa espécie de dialética entre religião e ciência, por exemplo, parece-me ser bastante descabido, porque o que as pessoas estão à procura é de uma resposta plural para aquilo que vivem, na sua complexidade, e que não pode ser resolvido apenas numa dimensão.
Mesmo que tenhamos amanhã uma vacina ou um tratamento eficaz, fica a pergunta acerca daquilo que vivemos e como o vivemos. Que significado tem a morte de todos estes que, para muita gente, são próximos? E uma morte vivida em circunstâncias inéditas…
São situações que nos mostram que a resposta para estes problemas é uma resposta sempre polifónica, porque nós próprios somos, de facto, seres polifónicos.