As nossas pequenas “fake news”

Jorge Pires Ferreira, Diocese de Aveiro

As “fake news” são uma praga que corrói a democracia, a cultura e até o convívio popular, como quando alguém mostra no telemóvel um vídeo e logo se gera uma discussão sobre o que é real ou não, o que é gerado por IA para iludir, o que, de facto, corresponde a factos. Frequentemente, o virtual, o gerado e o inventado são melhores do que a coisa real. E passam por reais.

As “fake news” sempre existiram. Mas hoje propagam-se com mais facilidade num contexto de erosão da verdade. A verdade – ou a convicção de que a verdade importa – começou a esboroar-se nos ambientes universitários estruturalistas e pós-estruturalistas, onde pontificavam as ideias Foucault e Deleuze, em contextos mais à esquerda, digamos. Mas quem retira mais dividendos do pós-verdade e das fake news, por estes dias, são as correntes mais à direita.

O cristianismo tem origem numa “good new” que, desde o início outros classificavam como “fake”. A Ressurreição, claro. E ainda por cima a Ressurreição de alguém que se classificou a si próprio como Verdade. Por esta ou outras razões, o cristianismo é a grande corrente histórica da defesa da verdade. As heresias, os concílios, as divisões e mesmo as guerras religiosas não são mais do que a busca da verdade, mesmo que por caminhos equivocados e com consequências trágicas – uma delas, pensar que não há verdade a alcançar. E não é por acaso que a ciência moderna, positiva, nasce na mundividência cristã.

Foi e é a busca da verdade que levou, por exemplo, a ler e reler os textos bíblicos, distinguindo os géneros literários. Nem tudo é facto. Nem tudo pode ser levado ao pé da letra. Se quisermos ser anacrónicos, podemos dizer que a Bíblia está cheia de “fake news”, quando dizemos que Jesus nasceu em Belém, foi visitado por Magos, foi levado para o Egito, para ficarmos nos Evangelhos. São coisas que nenhum exegeta sério pode dizer que aconteceram mesmo, mas que têm um sentido simbólico, transmitem uma mensagem. São “fake news”? Não são porque no tempo em que foram escritas o conceito de verdade não era a correspondência com os factos, mas o sentido mais profundo das coisas e a ligação ao passado e ao futuro. Mas continuamos a fazer desses episódios um uso estranho. Dizemos que os Magos visitaram Jesus, mas depois devíamos acrescentar que não foi bem assim (ou não foi nada assim), só que, provavelmente, não admitimos perante um alemão que o relicário que está em Colónia não tem nada a ver com os Magos. Tal como não dizemos a um compostelano que o túmulo não é de certeza de São Tiago. Aliás, a nossa história cristã está cheia de relíquias falsas. Precisaríamos de um exército de bolandistas se quiséssemos distinguir o que é verdadeiro e falso. Que com a canonização de Carlo Acutis tanto se tenha falado tanto de relíquias (cabelo, uma parte do coração, o casaco azul… – são mais de duas mil distribuídas pelo mundo), não sei se é um bom sinal. Parece ser um realce do acessório. E que que por estes dias se tenha voltado a falar da liquefação do sangue de São Gennaro, em Nápoles (festa a 19 de setembro), como um milagre, quando pode ser simplesmente o bem conhecido processo de tixotropia, é mais um indício de que preferimos as “fake news” à verdade. Pela minha parte, gostaria que um grupo de cientistas credíveis estudasse o fenómeno e dissesse se é realmente sangue ou se é uma substância química (que dizem ser comum na zona do Vesúvio) que quando se agita deixa o estado sólido e passa a líquido. Em relação a este e a tantos outros “milagres”.

E temos depois as nossas pequenas “fake news” eclesiais.

Dizemos que o cristianismo é essencialmente uma adesão pessoal a Jesus Cristo, um encontro. Mas batizam-se crianças, naturalmente (ainda) incapazes de uma relação de fé.

Dizemos que há uma igualdade fundamental dos cristãos, mas depois há sete sacramentos para uns e seis para outras. Devíamos mudar o número dos sacramentos e dizer que são 13, sete para homens e seis para mulheres. Ou então, rever o que impede as mulheres de receberem o sacramento da Ordem.

E continuamos a falar do diabo (no rito do Batismo, por exemplo), como se esse mito que entrou na Bíblia vindo do oriente correspondesse a um ente sobrenatural que de vez em quando interfere no natural. O diabo é tão “fake” que a maior astúcia do diabo não é, como dizia Beaudelaire, crermos que ele não existe, mas acreditarmos que ele existe. Os ateus não sofrem possessões. A propósito do diabo, veja-se o excelente artigo do P.e Vítor Pereira, nesta secção da Ecclesia, “E se deixássemos o diabo em paz?”, no dia 20 de fevereiro de 2025).

E quando vamos à Missa, começamos por confessar os pecados. Mas é uma confissão “fake”. Só a outra, perante um padre é que vale. A linguagem litúrgica tem muitas incongruências e arcaísmos, a começar pelo uso da segunda pessoa do plural, que embora ainda se ouça em algumas regiões do norte, soa a antigamente de Aveiro para o sul. É curioso que há temos eliminou-se o “eis”[o Mistério da Fé] por ser arcaico e agora introduziu-se o “pelos séculos dos séculos”… Nem tudo se pode ou deve mudar, mas talvez a sinodalidade se possa usar nas decisões de liturgia, em vez de ficar só pelos conselhos pastorais.

 

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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