Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real
Nos últimos dias, levantou-se alguma polémica e alguma resistência à declaração “Fiducia Supplicans”, do Dicastério para a Doutrina da Fé, sobre o significado pastoral das bênçãos. Honestamente, parece-me que a polémica não faz sentido porque o Cardeal Víctor Manuel Fernández tem logo o cuidado de deixar bem claro que a “Declaração permanece firme na doutrina tradicional da Igreja em relação ao casamento, não permitindo qualquer tipo de rito litúrgico ou bênção semelhante a um rito litúrgico que possa criar confusão”. Mas se procurou evitar algumas confusões, pelos vistos suscitou outras. Com que motivação apareceram, só Deus, e até quem sabe o diabo também, saberão. Custa ver a Igreja dilacerada por ideologias, querelas doutrinais, poeirentos tradicionalismos, questiúnculas e lutas de poder, diatribes e catilinárias contra o Papa e entre bispos e cardeais.
O que a declaração vem propor é a possibilidade de se dar uma simples bênção espontânea a casais irregulares e a uniões do mesmo sexo, bênção que deve ser dada num contexto muito próprio, como diz a Declaração: “Tal bênção pode, pelo contrário, encontrar o seu lugar noutros contextos, como uma visita a um santuário, um encontro com um sacerdote, uma oração recitada em grupo ou durante uma peregrinação. Com efeito, através destas bênçãos que são concedidas não através das formas rituais próprias da liturgia, mas como expressão do coração materno da Igreja – semelhantes às que emanam do núcleo da piedade popular – não se pretende legitimar nada, mas antes abrir a vida a Deus, para pedir a sua ajuda para viver melhor, e também para invocar o Espírito Santo para que os valores do Evangelho sejam vividos com maior fidelidade.”.
Penso que a Declaração não podia ser mais clara. E penso também que a bênção de Deus dada pela Igreja não deve ser negada a ninguém, que se aproxime dela para pedir a ajuda e a presença de Deus na sua vida. Se a Igreja abençoa pedras de construções, objetos, imagens, animais, não vejo como pode negar a sua bênção a pessoas que querem praticar o bem e se entregar ao amor por outra pessoa, mesmo que não preencham todos os requisitos, que se postulou serem os regulamentares.
No caso das uniões homossexuais, quer uma parte da igreja aceite, quer não a aceite, elas estão aí. De nada adianta continuarmos a condená-las ou a julgá-las, quase as obrigando a se ajoelharem para pedirem uma migalha da salvação de Deus como a cananeia do Evangelho, a não termos uma palavra fraterna, com um tratamento humano e digno para essas pessoas. Pelo contrário, acho que a Igreja fará melhor em tentar evangelizá-las, dando-lhes acolhimento e dignidade. E não ficará bem dizer: “abençoo-te a ti, mas não à tua união ou orientação sexual”. Hoje é um dado assente que há pessoas que têm atração pelas pessoas do mesmo sexo. Só nos resta acolher e respeitar essas pessoas na sua forma de ser. Como a ciência o confirma, a homossexualidade não é uma doença, nem é uma desordem sexual, por isso também não deve ser entendida como pecado. Não está em causa o conceito de matrimónio, que não pode deixar de ser a união de um homem e uma mulher. Uma união homossexual não é nem pode ser um casamento na verdadeira aceção da palavra, como muitos defendem, como tal não se devem promover confusões e equiparar o que não é equiparável.
Dentro da Igreja, muitos ainda não querem aceitar as uniões homossexuais, são uma transgressão, um grave desvio do plano criador de Deus, viver uma união homossexual é viver uma situação pecaminosa, é um amor indigno e desordenado, que não merece nem pode ter, por isso, uma bênção de Deus. Esta visão gera muita incompreensão e uma forte repulsa dos homossexuais e de grande parte da comunidade científica. Numa carta aberta dirigida ao Papa Francisco, um clérigo homossexual expressa a sua total discordância em relação à doutrina e à decisão da Igreja, doutrina que agora procura novos caminhos, e fê-lo com palavras duras: «Minha Igreja, Senhor, é aquela que continua a discriminar homossexuais, mulheres e leigos. É a megainstituição incapaz de se mover um milímetro, com medo de perder o poder terreno, aquela que esconde abusos e se corrompe pelo dinheiro. É a Igreja dos cavalheiros padres e freiras, do feudalismo contemporâneo, da servidão, do “cala a boca, tu não és padre”, dos púlpitos das arengas políticas». A partir do momento que se reconhece que é normal a inclinação homossexual de algumas pessoas e que se tem o dever de as aceitar como tal, na minha modesta opinião, existindo um compromisso com direitos e deveres e a devida maturidade humana, acho que ficaria bem à Igreja dar dignidade a esse amor ou a essa relação com uma bênção, por muito simples que fosse, do que se ficar apenas pela simples demonstração de acolhimento e respeito, quase dando a entender que tem pena delas. Jesus pediu-nos para nos amarmos, não fez referência a condutas sexuais. O amor pode ser vivido e partilhado de muitas formas. «Onde há caridade verdadeira, aí habita Deus». Não vejo Deus a recusar abençoar uma união homossexual onde haja um verdadeiro compromisso de amor.
Resta-me, por isso, abençoar, com a consciência de que estou a realizar um ato criador, profundo e de grande significado. Marie Noel terá deixado escrito nas suas “Notes Intimes”: “Se tivesse que escolher entre o mais inspirado e poderoso profeta e o padre mais miserável, iria ter com o padre e pedir-lhe-ia a sua bênção”. Escreve o Padre e teólogo Elmar Salmann no seu livro “A Vitalidade da Bênção”: “E que mais poderíamos nós implorar a Deus e d’Ele esperar como apoio para as vicissitudes da nossa pequenina existência? De facto, a bênção é a razão de ser da religião, a sua força e o seu charme”. (…) Se tivesse que escolher entre o mais imponente dos profetas, a mais inteligente das ideologias, a mais eficaz de todas as políticas, a moda de maior sucesso, iria talvez ter com o padre, pedir-lhe a bênção do seu Deus, maior e mais humilde do que todos os profetas, filósofos, políticos e fazedores de opinião juntos…um autêntico conforto”. Que assim seja.