D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga, foi o anfitrião de Bento XVI em Portugal, entre os dias 11-14 de maio de 2010, na condição de presidente da Conferência Episcopal Portuguesa
Agência ECCLESIA (AE) – Como começou a visita de Bento XVI a Portugal?
D. Jorge Ortiga (JO) – Tudo começou com um ato de coragem e de fé. Pedimos ao Santo Padre que efetuasse esta visita pastoral situando-a no âmbito dos 90 anos do Santuário de Fátima.
Quisemos também colocar a Igreja portuguesa em movimento para que se pudesse acolher verdadeiramente o Santo Padre, num período muito complexo e conturbado da história da Igreja mundial.
Pretendíamos também proporcionar-lhe um momento de alegria e até de descanso, na oportunidade que iria ter de contactar com multidões de fiéis que o acolhessem com toda a espontaneidade, como de facto veio a acontecer.
O convite surgiu igualmente da convicção de que o Santo Padre nos poderia ajudar na aplicação de um programa pastoral que vínhamos a realizar após a última visita “ad limina” [deslocação dos bispos portugueses ao Vaticano para falar com o Papa sobre as dioceses e a Igreja em Portugal, de 3 a 12 de novembro de 2007], o que também se concretizou.
No discurso de saudação que proferi na visita “ad limina”, enquanto presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, fiz uma referência aos 90 anos [das aparições da Virgem Maria na Cova da Iria] e disse que a mensagem de Fátima, entre outras características, tinha uma dimensão de apelo à conversão, que se estende também à Igreja. Na resposta o Santo Padre disse que a Igreja em Portugal teria de se reorganizar e adaptar-se muito mais à realidade do Concílio Vaticano II [1962-1965]. Recordo que alguma comunicação social, na minha maneira de ver, não entendeu bem esta posição de Bento XVI. O que é certo é que nós a assumimos como uma das consequências a extrair da visita “ad limina”.
A vinda do Santo Padre ao nosso país foi muito importante porque constituiu um estímulo ao processo “Repensar a Pastoral em Portugal”, que a Igreja estava a fazer naquela época e que continua atualmente.
AE – Além do processo “Repensar a Pastoral da Igreja em Portugal” que efeitos da visita de Bento XVI se fazem sentir hoje?
JO – Creio que as principais coordenadas estão no discurso que fez aos bispos de Portugal [Fátima, 13 de maio de 2010], quando apelou a uma maior consciência missionária e nos pediu um laicado adulto, integrado na Igreja e implicado na transformação do mundo.
Em Lisboa o Papa falou da presença dos cristãos nas realidades terrestres e no Porto voltou a insistir na mesma questão, sublinhando que não podemos perder a capacidade de estarmos presentes no mundo, não impondo mas propondo com ousadia e coragem.
No encontro no Centro Cultural de Belém [Lisboa, 12 de maio], que foi maravilhoso, o Papa salientou que é importante não olhar para as coisas penúltimas mas para as últimas, tendo também pedido ao mundo da cultura a coragem de não apenas fazer coisas belas mas de fazer da vida uma experiência bela. Penso que estes apelos são realidades que não nos deixaram de marcar.
Um aspeto que me impressionou neste Papa foi o sentido de proximidade. Ele, que era considerado uma pessoa muito afastada, soube estar presente e sentiu em Portugal uma experiência tranquilizante e de profunda alegria.
Pareceu-me que o Santo Padre estava preocupado quando chegou ao nosso país. Não esqueçamos que na viagem de avião para Lisboa ele disse que o mal também existe dentro da Igreja, uma expressão maravilhosa que muita gente não entende mas que é a grande verdade. Por isso ele trazia todo esse peso. Quando partiu de Portugal creio que levou a consolação pelo facto de se ter encontrado com um povo que não se envergonhou de dizer “Nós amamos o Sucessor de Pedro, nós testemunhamos a nossa fé e a nossa comunhão”.
AE – Surpreendeu-o o acolhimento que Bento XVI recebeu em Portugal?
JO – Nunca tivemos medo. Aliás, tenho de dizer que dentro da organização nunca fizemos grande publicidade. Claro que procurámos mobilizar as nossas comunidades mas não sentimos receio. O povo português sempre teve, e tem, um amor muito grande ao Papa, seja ele qual for. Hoje reconhecemos que Bento XVI foi uma figura ímpar, que deixou ficar a sua marca na história da Igreja.
AE – Como descreve Bento XVI?
JO – Parece uma pessoa tímida mas, no contacto, verificamos que não o é. Ele é um intelectual, algo introvertido, mas muito próximo e muito conhecedor da realidade, não só doutrinal mas também das dioceses, como pude verificar durante a visita “ad limina”. Esta conjugação entre o intelectual e a realidade concreta é fundamental, e o mesmo se diga da síntese entre fé e ciência que Bento XVI procurou realizar. Por isso temos de dar graças a Deus pelo Papa que tivemos.
AE – Que momentos mais o sensibilizaram durante a visita de Bento XVI a Portugal?
JO – Um dos problemas com que nos defrontámos foi o facto de muita gente ter pretendido que houvesse um encontro específico para os jovens. Chegámos à conclusão que não era possível, assim como a ida a Braga, que eu inicialmente pretendia que estivesse no programa. Depois pensámos que o encontro em Lisboa poderia ser, de modo muito particular, para a juventude, mas acabou por ser para toda a população. Mas o que os jovens fizeram na presença do Santo Padre foi maravilhoso. Recordo especialmente a manifestação espontânea junto da Nunciatura e a simplicidade e espontaneidade do Papa, quando pediu, numa linguagem própria dos jovens, para o deixarem descansar.
Conservo também um episódio que manifesta o temperamento de Bento XVI e que significa muito para mim. Quando ele saiu do Centro Cultural de Belém, de carro, deparou-se, junto à estrada, com um grupo de crianças acompanhado de religiosas e educadoras. O Papa saiu da viatura para estar um pouco com as crianças, deixando-lhes uma palavra de alento e de coragem, num gesto muito espontâneo e natural que também constituiu um sinal para quem pensava que ele era de outro mundo.
Recordo igualmente os encontros em Fátima com os agentes da Pastoral Social, com os sacerdotes e os padres, bem como com os bispos, a quem deixou uma mensagem marcante. Talvez ainda não tenhamos sido capazes de colher todos os frutos da semente que ele aqui deixou.
AE – D. Jorge Ortiga é atualmente presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana; que orientações deixadas por Bento XVI no discurso que fez a este setor continuam a ser hoje prementes?
JO – Bento XVI deixou um apelo às instituições ligadas à Igreja para que mantivessem a preocupação pela excelência mas sem perder a sua identidade. Que não fossem uma simples associação filantrópica mas uma experiência de fé. São prioridades que a Igreja deve continuar a assumir: procurar empenhar-se na qualidade e na transparência, num serviço que seja sinal do amor de Cristo e não mera assistência paternalista de resposta ocasional. Não se trata de proselitismo mas da simplicidade e naturalidade de um amor que não se fica pelas obras que se oferecem mas que se expressa, sobretudo, no espírito que se vive.
RJM